Ao longo da história brasileira, existiram várias provisões legais garantindo o direito à assistência jurídica gratuita para a população que dela necessitasse, tanto em casos penais como em casos civis. Um marco importante é a Lei Federal n. 1.060/1950, que estabeleceu que "os poderes públicos federal e estadual concederão assistência judiciária aos necessitados nos termos da presente Lei" (art. 4º)1.

Com a Constituição de 1988, o país adotou um modelo de abrangência nacional para organizar a provisão de tais serviços sob uma lógica pública-estatal (Rocha, 2009). Além de incorporar a legislação pregressa, ao estipular que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (art. 5°, LXXIV), a Constituição também estabeleceu a Defensoria Pública como "instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV" (CF, art. 134, sem destaques no original). Em 2004, a Emenda Constitucional n. 45 assegurou às defensorias públicas estaduais autonomia "funcional" e "administrativa", dando-lhes tratamento equiparável ao da Magistratura e do Ministério Público.

No plano internacional, o modelo adotado pela Constituição Brasileira tem obtido importante reconhecimento. Em 2011 e 2012, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou por unanimidade duas resoluções – AG/RES. 2714 (XLII-O/12) e AG/RES 2656 (XLI-O/11) – recomendando a todos os países-membros a adoção do modelo público de Defensoria Pública, com autonomia e independência funcional.

Mas apesar das previsões legais e do reconhecimento internacional como boa prática do modelo adotado no Brasil, a criação e a implementação de Defensorias Públicas têm sido um processo lento e intrincado, tanto em nível estadual como em nível federal (Santos, 2007)2 . O gráfico abaixo ilustra essa afirmação. Antes de 1990, havia Defensorias Públicas em apenas sete estados brasileiros. Esse número cresce de modo substancial a partir dos anos 1990, quando mais dez estados estabelecem essas instituições3. Os outros oito estados criariam as suas defensorias públicas apenas nos anos 2000, com as duas últimas delas tendo sido criadas por lei apenas em 2011, no estado do Paraná, e em 2012, no estado de Santa Catarina4.

 

Gráfico 1 - Criação das Defensorias Públicas no Brasil: uma cronologia

grafico1
Fonte: III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil/MJ e Leis Orgânicas das
Defensorias Públicas de Goiás, Paraná e Santa Catarina.

O estado de São Paulo oferece um exemplo dos obstáculos verificados nesse processo de consolidação institucional. Por quase duas décadas após a promulgação da Constituição e a expressa previsão de que a Defensoria Pública seria a responsável pela "orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV" (art. 134), São Paulo manteve uma estrutura controversa para a provisão de tais serviços legais, a qual era baseada em advogados públicos designados para atuar em uma unidade específica da Procuradoria-Geral do Estado – a "Procuradoria de Assistência Judiciária" (PAJ) –, com o suplemento de advogados trabalhando no âmbito de convênios celebrados entre o Estado e a OAB/SP.

A crítica contra essa estrutura era intensa e vinha de muitas direções (Cunha, 2000, Haddad, 2011). Alguns destacavam que advogados públicos poderiam estar sujeitos a potenciais conflitos de interesse na oferta de serviços de assistência jurídica a pessoas carentes, pois não se sentiriam confortáveis em atuar contra o próprio governo se, diante de uma demanda concreta de uma pessoa atendida, essa viesse a ser a medida mais adequada. Da mesma forma, os críticos realçavam que em caso de escassez de recursos, o governo do Estado estaria naturalmente mais inclinado a garantir a provisão de serviços para si próprio, em detrimento dos direitos dos cidadãos: os "mais fortes", mais uma vez, "sairiam na frente" (Galanter, 1974). Ainda assim, a proposta de criação da Defensoria Pública para suplantar o modelo da PAJ e dos convênios enfrentou fortes resistências do governo estadual e da OAB/SP5 .

Curiosamente, essas resistências acabaram por catalisar ampla mobilização social. Em 2002, São Paulo assistiu à criação de um Movimento pela Defensoria Pública, o qual veio a envolver nada menos que 440 (quatrocentos e quarenta) instituições e deu início à organização de petições e manifestações públicas, além da busca de apoio para a causa em setores importantes da comunidade jurídica e do sistema político.

A lógica de mobilização social que marcou a implantação da Defensoria Pública em São Paulo se disseminou pelo país, configurando, assim, uma consciência social sobre o direito de acesso à justiça para todos: nos estados nos quais não havia defensoria pública, os movimentos sociais, sindicatos e grupos da sociedade civil passaram a se organizar para exercer pressão contra os governos, reclamando essa implantação. E – talvez mais importante – esses movimentos e grupos acompanharam diretamente e, em alguns casos, participaram ativamente da redação dos projetos de lei que estavam sendo apresentados nas assembleias legislativas estaduais a fim de criar as defensorias; além de colaborarem continuamente com as lideranças e membros das defensorias, uma vez que vieram a ser implantadas.

 

Figura 1: Símbolos de mobilização social em favor da Defensoria Pública no Brasil
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Artes dos Movimentos pela Defensoria Pública de São Paulo (2002), com o slogan "Defensoria Pública: para quem é carente de justiça"; no Paraná (2010), com o slogan "Defensoria Já"; e em Santa Catarina (2012), com o slogan "Defensoria Pública: um direito sonegado".


Essa trajetória peculiar da Defensoria Pública no Brasil, a qual se mostrou capaz de transformar resistências iniciais em oportunidade para a obtenção de apoio político, "fazendo de um limão uma limonada" (Boutcher, 2005), teve importantes consequências para a sua institucionalização.

Um primeiro exemplo disso está no desenho institucional da Defensoria Pública, o qual é bastante inovador e democrático. Tome-se uma vez mais, a título de ilustração, o caso de São Paulo. Por lei, a Defensoria Pública desse estado desfruta de autonomia administrativa e funcional, mas também tem uma ouvidoria independente, que serve de interface entre a instituição e entidades da sociedade civil. Além disso, lei previu que a Defensoria de São Paulo deve organizar um plano de ação por meio de conferências públicas6.

Um segundo exemplo está nas áreas e métodos de trabalho da Defensoria, em geral bastante alinhados a uma perspectiva inovadora de serviços jurídicos6. No caso de São Paulo, também por força de lei, a Defensoria deve trabalhar com ferramentas tanto legais quanto extralegais, e tem função institucional de defender interesses coletivos e difusos (função que ganhou mais peso depois que o Congresso Nacional aprovou lei estendendo a prerrogativa de ajuizamento de ações coletivas para as Defensorias Públicas). No plano nacional, o Conselho Nacional de Defensores Públicos-Gerais criou comissões temáticas para elaboração de estratégias de atuação uniformizada para a Defensoria Pública dos estados e da União, em temas como sistema penitenciário, defesa dos direitos da mulher, infância e juventude, moradia, entre outros. No plano internacional, a ANADEP indicou dois indivíduos para atuarem como Defensores Públicos Interamericanos. Tais defensores são responsáveis por representar pessoas carentes que tenham sido vítimas de violações de Direitos Humanos perante os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Em 2007, o Congresso aprovou a Le Federal n. 11.448, que incluiu a Defensoria Pública no rol de instituições com legitimidade para ajuizar ações coletivas sob as hipóteses da Lei Federal n. 7.347/1985 – a Lei da Ação Civil Pública. Contra essa disposição legal, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou ação de inconstitucionalidade (ADI n. 3943). De acordo com a CONAMP, a Lei Federal n. 11.448/2007 fere tanto as prerrogativas constitucionais do Ministério Público quanto as atribuições constitucionais da Defensoria Pública – ou seja, prover serviços jurídicos à população carente. Do ponto de vista da entidade, nos casos que buscam a proteção a "direitos coletivos e difusos", não há como separar claramente os que podem e os que não podem pagar advogado.

A ADI n. 3943 gerou crítica e reação das Defensorias Públicas; e os embates jurídicos têm envolvido pedidos de admissão de amici curiae e a produção de "pareceres" de juristas de prestígio. A ação ainda não foi decidida, mas é útil para ilustrar outro conflito do qual a Defensoria Pública tem participado, na perspectiva de sua consolidação institucional: o conflito dentro do campo jurídico em torno da legitimidade para a representação de interesses coletivos e difusos e, em alguma medida, do "interesse público".

 

Em terceiro lugar, por se tratar de um verdadeiro processo de construção social, a institucionalização das Defensorias Públicas deu ensejo a identidades mais fortemente conectadas com as agendas do acesso à justiça e da mobilização jurídica, o que na visão de Katz (1982) tende a ser um fator fundamental na prosperidade de organizações voltadas à defesa jurídica de população em condições de vulnerabilidade. Por meio de associações de classe, conexões com grupos e organizações da sociedade civil e concursos públicos capazes de atrair quadros identificados com sua missão, Defensorias Públicas têm sido capazes de disseminar suas práticas e abordagens sobre o acesso à justiça, influenciando a agenda nacional de políticas públicas para este setor.

Um exemplo notável, referido na nota 4, foi a (até agora) bem-sucedida campanha das Defensorias Públicas contra a necessidade de celebrar convênios com as seccionais da OAB no intuito de recrutar advogados privados que desejam trabalhar em casos de pessoas carentes. Além de obterem decisão favorável do STF, as Defensorias Públicas saíram desse processo com grande base de apoio de organizações da sociedade civil, com as quais colocaram em marcha uma estratégia bastante concertada a fim de obter um pronunciamento favorável da Corte.

Por todo esse histórico, não há dúvida de que dando força normativa à Constituição, as Defensorias Públicas passaram a representar um ator e um elemento central para as políticas de acesso à justiça no país. Da mesma forma, não há dúvida de que a sua consolidação enfrenta obstáculos das mais diversas ordens. As próximas seções deste Mapa ajudam a ilustrar um pouco dos resultados desse embate, assim como dos desafios e das oportunidades com as quais essas organizações se defrontam no território nacional.

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1 Esta narrativa está baseada em Sá e Silva (2012)

2A distinção se refere ao fato de que há diferença de competência entre a justiça federal e a justiça estadual.

3Também nos anos 1990 foram implementadas as primeiras unidades da Defensoria Pública da União (DPU).

4A Defensoria Pública de Santa Catarina foi criada em 2012 por força de decisão do STF, que fixou o prazo de um ano para a substituição do modelo de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Santa Catarina, pelo modelo previsto na Constituição Federal.

5Tais convênios permanecem operando, agora em caráter suplementar ao trabalho da Defensoria, que passou a ser gestora dos recursos utilizados na contratação. Decisão recente do Supremo Tribunal Federal liberou a Defensoria Pública da obrigação de contratar advogados privados que querem prestar esses serviços exclusivamente por meio da OAB. Assim, a Defensoria Pública de São Paulo será capaz de contratar serviços jurídicos diretamente dos advogados e, portanto, ter mais controle sobre o trabalho e a remuneração desses profissionais. Para uma bela crônica sobre esses convênios, ver Almeida (2006).

6Lei complementar estadual n. 988/2006-SP, disponível eletronicamente em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/23/Documentos/Lei%20Complementar%20988%20de%2009_01_06.pdf, último acesso em 27 de fevereiro de 2013. Para uma boa descrição sobre como esses mecanismos de participação funcionam, ver Cardoso (s.d.).
Para análises mais gerais sobre os “serviços legais inovadores” que emergiram como categoria social e sociológica nos anos 1980, ver Thome (1984); Hurtado (1988) e Campilongo (1994).