Política de defesa no Brasil contemporâneo: desafios e oportunidades em um sistema internacional em transição
A política de defesa é uma política pública com características especiais. Trata-se do arcabouço e aparato estatal que regula o uso da força militar, direciona o preparo e o emprego das forças armadas (em tempos de paz e de guerra e em operações domésticas e internacionais); conduz as prioridades de uma ampla rede de cooperação internacional; e define as preferências para desenvolvimento e aquisição de equipamento e tecnologia em segurança e defesa. Além disso, possui duas outras particularidades: localiza-se na interface entre os ambientes doméstico e no internacional e na intersecção entre política de governo e de Estado. Trata-se, portanto, de uma política pública de governo com horizonte de longo prazo com impactos diretos nos ambientes interno e externo.
Em um ambiente internacional em transição, refletir sobre as mais distintas dinâmicas da política de defesa é uma tarefa chave. Atualmente, a competição estratégica entre grandes potências tornou-se a nova tônica do sistema contemporâneo. A intensificação da disputa global entre Estados Unidos e China por influência político-econômica possui reflexos em diversas regiões, como é o caso da América Latina. Nesse contexto, o entorno estratégico brasileiro (composto pela América do Sul, o Atlântico Sul e países lindeiros da África Ocidental e a Antártica), encontra-se assimétrico, discordante e contestado. Se, de um lado, nota-se o aumento da presença e do interesse de atores externo na região, de outro, os mecanismos de cooperação e coordenação regional sul-americano (e.g., Unasul, Mercosul, CELAC etc.) perderam impulso nas últimas décadas. Em muitos casos, como o da Unasul, sucumbiram a disputas intrabloco e à polarização política no interior dos países.
A despeito da ausência de coordenação, as instabilidades regionais permaneceram. A transformação da região em palco de competição entre grandes potências, o impasse político interno na Venezuela, o aumento da polarização política interna e internacional na região, a transnacionalização do crime organizado, as novas tensões geopolíticas e disputas fronteiriças históricas têm gerado amplos desafios para a política de defesa do Brasil. Adicionalmente, outros desafios de segurança, como as consequências locais do aumento de fluxos migratórios, eventos climáticos extremos, crimes ambientais, segurança cibernética, difusão de desinformação e fake news também têm resultado em desafios para o Brasil e os países da região no que se refere ao papel das forças armadas e de suas agências de segurança.
Nesse contexto, o Brasil enfrenta dificuldades para responder aos desafios que se colocam em um ambiente de mudanças e instabilidades globais. Primeiro, é importante apontar que há avanços institucionais no setor de defesa do país. Desde os fins da década de 1990, os principais marcos desse setor foram a criação do Ministério da Defesa (MD), pela Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, a publicação da primeira Estratégia Nacional de Defesa (END), pelo Decreto nº 6.703, de 2008, e a consequente Lei Complementar nº 136, de 2010, que redefiniram as estruturas e prioridades do setor de defesa. Algumas das principais mudanças foram a criação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), com o intuito de coordenar atividades e planejamentos conjuntos; a revisão quadrienal dos documentos estratégicos, a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), que passaram a ser apreciados pelo Congresso Nacional; a publicação quadrienal de um Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) como mecanismo de transparência; a definição de setores estratégicos (Cibernético, Nuclear e Espacial); a e criação de programas estratégicos para reequipar as Forças Armadas brasileiras.
Outras mudanças relevantes, que contribuíram para a mudança do ecossistema do setor de defesa brasileiro, foram a criação de programas de pós-graduação em institutos civis e militares, contratação de professores civis tanto em Escolas de Comando e Estado-Maior quanto em novas instituições do setor (e.g., ESD, ESG, EGN, ECEME, UNIFA), e o incentivo à pesquisa em defesa em parceria com instituições de fomento do Governo Federal (e.g., Pró-Defesa, Pró-Estratégia, PROCAD, FINEP etc.), que produziram uma nova geração de especialistas e incentivaram a sociedade civil a tratar do tema. Ainda assim, esses avanços foram limitados. A construção de um setor de defesa mais eficiente, efetivo e condizente, adaptado às demandas internacionais ainda permanece incompleta.
O Ministério da Defesa, em seus 25 anos de existência, não possui uma carreira civil de especialistas em defesa em seu corpo técnico. De um lado, apesar de um ministro civil, o processo decisório e a priorização de programas estratégicos mantêm-se bastante concentrado nas Forças Singulares, carecendo de um corpo técnico permanente. Decisões chave do setor de defesa (e.g., planejamento, programas estratégicos, educação, treinamento etc.) ainda permanecem atribuídas ao EMCFA, órgão preponderante militar, ou aos chefes de Forças Singulares. De outro, as elites políticas civis permanecem desinteressadas no tema e pouco se engajam nos processos decisórios. O Congresso Nacional, por exemplo, não tem clareza sobre como tramitar os documentos de defesa e o interesse na discussão sobre defesa e forças armadas em comissões especiais é mínimo. Outro exemplo é que a discussão sobre o papel do setor de defesa e sua coordenação com outras agências de segurança do país (e.g., segurança pública, inteligência, meio ambiente etc.) permanece quase ausente no debate público. Desse modo, temas como coordenação regional em segurança e defesa, segurança ambiental e combate a crimes ambientais, segurança cibernética, combate à criminalidade transnacional, desinformação ainda carecem de uma ampla coordenação supraministerial e direcionamento político.
Como parte de um esforço para aprimorar a política de defesa brasileira, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) produziu diversos estudos recentes sobre o tema. Alguns exemplos foram o TD 2973 ‘O setor de defesa brasileiro no exterior: desafios, oportunidades e subsídios para a revisão dos documentos de defesa,’ de 2024, e os livros ‘Desafios Contemporâneos para o Exército Brasileiro’ (em parceria com o Exército Brasileiro), de 2019, e ‘Mapeamento da Base Industrial de Defesa’ (em parceria com a ABDI), de 2016 e Amazônia e Atlântico Sul : desafios e perspectivas para a defesa no Brasil, de 2015 (em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos do Exército).
Diante desses desafios, ‘Política de defesa no Brasil contemporâneo: desafios e oportunidades em um sistema internacional em transição’ é o tema do número 37 da Revista Tempo do Mundo, publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Convidamos os interessados a enviar artigos que abordem o tema, incluindo, mas não se limitando aos seguintes tópicos:
a) Os desafios para a institucionalização do Ministério da Defesa no Brasil;
b) Ameaças e desafios à política de defesa brasileira no século XXI;
c) A competição entre grandes potências e seus impactos para a política de defesa do Brasil;
d) Cooperação, construção da confiança e integração regional em segurança e defesa;
e) O Brasil, os novos conflitos internacionais, e a política de defesa;
f) Base industrial de defesa; ou
g) A relação forças armadas e sociedade no Brasil.
Este número será coordenado por Selma Lúcia de Moura Gonzales, professora e pesquisadora na Escola Superior de Defesa (ESD) e Raphael Camargo Lima, pesquisador do King´s College London. Os manuscritos podem ser enviados pelo site da Revista Tempo do Mundo até 31 de março de 2025.
As regras de submissão e diretrizes aos autores encontram-se no link https://www.ipea.gov.br/revistas/index.php/rtm/about/submissions