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Congresso amplia protagonismo sobre leis e orçamento e desafia coordenação de políticas públicas

Estudos do Ipea apontam que Legislativo concentra quase um quarto das despesas discricionárias via emendas

Foto: Leonardo Sá/Agência Senado

O Congresso Nacional vem ocupando um espaço cada vez maior na definição do rumo das políticas públicas brasileiras, e isso não se restringe à aprovação de leis. Atualmente, quase um quarto das despesas discricionárias do Orçamento Federal está sob controle direto de parlamentares, por meio de emendas. O dado, apresentado em seminário do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em Brasília, serviu de fio condutor para um debate que reuniu pesquisadores, professores e gestores públicos.

O encontro mostrou que a ascensão do Legislativo tem remodelado a dinâmica de pesos e contrapesos entre os Poderes. Se antes o Executivo concentrava a iniciativa legislativa e o comando orçamentário, agora vê sua primazia dividida com um Congresso fortalecido. A mudança, segundo os participantes, impõe novos desafios à coordenação e à efetividade das políticas públicas.

Reorganização dos poderes

“O que está em jogo é qual Estado Democrático a gente está construindo e como a organização dos poderes se estabelece para o fortalecimento da democracia”, afirmou a presidenta do Ipea, Luciana Servo. Ao abrir o seminário, ela destacou que a análise sobre emendas orçamentárias é apenas a face mais visível de um processo mais amplo: a redistribuição de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Luciana lembrou que, em áreas sociais como saúde e educação, essa redistribuição já produz efeitos concretos. “Nós precisamos olhar para essa relação entre os três poderes e como ela se estabelece ao longo do tempo, no processo de organização das políticas públicas”, reforçou.

Essa inversão histórica foi detalhada pela diretora de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea, Luseni Aquino. Segundo ela, até meados dos anos 2000, 80% das leis tinham iniciativa do Executivo. Agora, é o Congresso que lidera. “Não se trata da legitimidade das emendas, que são constitucionais, mas dos efeitos de seu crescimento e da mudança de natureza, agora impositiva”, afirmou. Para Aquino, se os parlamentares assumem papel central na alocação de recursos, suas decisões precisam estar informadas por evidências.

O técnico de planejamento e pesquisa Acir dos Santos Almeida apresentou dados que mostram como esse protagonismo se consolidou: “Até o início dos anos 2000, a dominância era do Executivo. O que a gente vê depois é uma inversão, em que a dominância passa a ser do Congresso Nacional”, observou. Para ele, trata-se de um fenômeno transversal, que atinge desde pautas sociais até a agenda econômica.

O professor Lúcio Rennó, da UnB, relativizou a ideia de ruptura e provocou o debate. Para ele, a nova centralidade do Legislativo pode ser vista como uma “agenda compartilhada” entre Executivo e sua base no Congresso, e não apenas como oposição de poderes. Ele lembrou ainda que episódios como o julgamento do Mensalão, em 2007, e mudanças na tramitação das medidas provisórias alteraram o equilíbrio de forças no presidencialismo de coalizão.

Do ponto de vista pragmático da gestão, Leandro Couto, diretor do Ministério da Saúde e ex-pesquisador do Ipea, avaliou que a distinção entre emendas impositivas e não impositivas perdeu relevância, já que todo o orçamento passou a ser de execução obrigatória. “A diferença hoje está na gestão da coalizão. As emendas não impositivas não são distribuídas igualmente e funcionam como moeda de negociação política”, explicou. Ele também chamou atenção para o enfraquecimento dos instrumentos de planejamento do Executivo, o que compromete a ideia de que os gastos centralizados seriam, por definição, mais racionais.

Impactos sobre as políticas sociais

Na análise setorial, os efeitos ficaram mais claros. A especialista do Ipea Fabíola Sulpino Vieira mostrou que, na saúde, 91,7% das emendas em 2024 foram destinadas a custeio, reforçando a dependência de repasses de curto prazo. Na educação, segundo o técnico do Ipea Paulo Meyer Nascimento, os recursos parlamentares têm compensado perdas das universidades federais, mas reduziram o espaço da educação básica. Já na assistência social, segundo a técnica Ana Cleusa Mesquita, o financiamento via emendas compromete o arranjo do Sistema Único de Assistência Social (Suas), que prevê critérios técnicos para uma oferta uniforme de serviços no território nacional.

A professora Lara Mesquita, da FGV-EESP, complementou que o Executivo também contribui estrategicamente nesse processo, direcionando parte das emendas para áreas prioritárias, como saúde, que absorve metade dos recursos individuais. Para ela, o ponto central não é apenas o protagonismo legislativo, mas o encolhimento das despesas discricionárias em razão das regras fiscais, o que acirra a disputa por espaço orçamentário.

Encerrando o debate, o consultor do Senado Marcos Vinícius Gonçalves Nihari abordou os números que dimensionam essa disputa. Embora as emendas representem menos de 1% do orçamento total, concentram quase 24% das despesas discricionárias, a fatia de livre alocação do governo. Ele ressaltou ainda as distorções regionais: em 2023, Roraima recebeu R$ 18,30 por habitante, enquanto São Paulo obteve apenas R$ 1,64. Entre municípios, os extremos vão de cidades sem qualquer repasse a outras que receberam até R$ 943 per capita.

O seminário consolidou uma agenda de estudos do Ipea sobre o tema, incluindo o Texto para Discussão nº 3163 – Revertendo a Delegação: O Crescente Protagonismo Legislativo do Congresso Nacional, além de pesquisas em saúde, educação, assistência social e trabalho. 

Essas análises buscam compreender como a ascensão do Legislativo na formulação de políticas e na definição orçamentária impacta a governança pública e a efetividade das políticas sociais no Brasil.

Leia os demais estudos sobre o tema:

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