Créditos: Helio Montferre/Ipea
Mapear e desagregar dados, fortalecer a produção e o uso estratégico das informações. Essas foram propostas apresentadas no Seminário sobre Dados de Raça, Gênero e Clima para discutir caminhos possíveis diante do desafio climático – tudo sob uma lente interseccional: que considere classe, raça, gênero, idade e território.
O evento reuniu representantes de instituições públicas e organizações da sociedade civil no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos dias 20 e 21 de maio. O seminário foi promovido pelo Ipea e pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, em parceria com o Observatório do Clima, Instituto Alana, Instituto Pólis, Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA/UFRJ), Casa Fluminense, Observatório da Branquitude e a Rede por Adaptação Antirracista.
Entre os temas centrais, estiveram a identificação de lacunas na produção, coleta e análise de dados, a necessidade de georreferenciamento e a construção de indicadores que possam subsidiar políticas públicas efetivas.
A presidenta do Ipea, Luciana Servo, agradeceu a parceria com o Geledés e destacou o esforço contínuo para transformar o modo como se produz conhecimento e se estrutura a atuação do Estado. Ela lembrou que o Ipea já trabalha com a questão racial há décadas, o que contribuiu, por exemplo, para desmistificar a falsa ideia de democracia racial no Brasil, mas reforçou que ainda há muito a ser feito. “Como servidores, temos o dever e a obrigação de fazer com que a discussão sobre discriminação esteja presente em todas as políticas públicas. Isso exige mudança cultural e compromisso técnico, inclusive com a produção e uso qualificado de dados”.
Na mesa de abertura, a socióloga e coordenadora do Geledés Sueli Carneiro destacou a importância de colocar o racismo ambiental no centro das políticas públicas. Ela relembrou marcos históricos da atuação do movimento negro na pauta socioambiental, como a participação na ECO-92 e a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, que já evidenciavam que a destruição ambiental e a exclusão social afetavam de forma desproporcional a população negra.
Tatiane Dias, diretora de Avaliação, Monitoramento e Gestão da Informação do Ministério da Igualdade Racial (MIR), trouxe reflexões sobre a urgência de colocar a justiça climática na agenda governamental de forma interseccional e com base em dados desagregados, a fim de dar visibilidade às desigualdades vividas por populações negras, quilombolas e indígenas diante das mudanças do clima.
Para Dias, é necessário pensar coletivamente em estratégias de integração de dados que promovam essa transformação. Em sua apresentação, ela citou o Hub da Igualdade Racial, lançado pelo Ministério da Igualdade Racial, como exemplo de estratégia que aponta nesta direção. “É uma página da internet muito simples, mas que procura reunir várias bases de dados com recorte étnico-racial”, afirmou.
A coordenadora geral de Articulação e Planejamento da Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades (SNP/MCid), Joana Alves, destacou a urgência de repensar a forma como o Estado lida com os territórios periféricos. Ela lembrou que eventos extremos, como as recentes chuvas em Recife, escancaram a desigualdade no acesso à infraestrutura urbana e os riscos socialmente construídos. “O risco não é natural, ele é socialmente construído. Precisamos criar políticas públicas para eliminar o risco e não as pessoas”, disse.
Joana reforçou a necessidade de uma abordagem interministerial e integrada, com soluções que vão além de questões de infraestrutura. “Urbanizar favelas é parte da solução, mas precisamos levar muito mais do que obras para esses territórios”, afirmou.
Ela também reforça a necessidade de envolver a população como parte dos planos para redução de risco, ampliando o protagonismo das próprias comunidades. “A população das periferias também produz dados e orienta políticas. É hora de reconhecer e fortalecer isso.”
Denise Kronemberger, assessora especial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ressaltou a importância da desagregação de dados para ampliar a visibilidade das populações vulnerabilizadas e embasar políticas públicas eficazes. Segundo ela, esse ainda é um grande desafio enfrentado por diversos países, inclusive o Brasil. Kronemberger defendeu a necessidade de um esforço coordenado entre o IBGE, ministérios, agências, sociedade civil e setor privado para ampliar e qualificar a produção de dados.
Kronemberger destacou avanços como a inclusão dos territórios quilombolas no censo e a possibilidade de cruzamento de dados estatísticos e espaciais, mas alertou que ainda há lacunas relevantes. “A produção e a integração desses dados são essenciais para o enfrentamento das desigualdades e para orientar políticas interseccionais em áreas como clima, habitação e inclusão social”, disse.
O coordenador-geral do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (DPAR/MMA), Lincoln Alves, reforçou o papel central do enfrentamento das desigualdades sociais na agenda climática no Brasil. “Quando a gente fala de mudança do clima, já faz um tempo que não está se tratando exclusivamente do clima. A gente também fala de aspectos sociais e econômicos”, apontou.
Ele enfatizou que a crise climática está profundamente conectada à desigualdade de gênero e ao racismo ambiental. “Esperamos que o enfrentamento desses fenômenos ganhe relevância em escala a partir da implementação do Plano Clima, que tem como eixo norteador a promoção da justiça climática”, disse.
Integração de dados e avaliação de impacto das mudanças climáticas
Alexandre Nogueira, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afrocebrap), defendeu a necessidade urgente de territorializar os dados raciais no Brasil para compreender os impactos diferenciados das mudanças climáticas sobre a população negra. Para ele, pensar mudanças climáticas sem considerar raça e território é ineficaz: “É fundamental pensar territorialização racial se quisermos entender os impactos sobre diferentes grupos.”
Nogueira destacou iniciativas em andamento, como a construção de uma plataforma de visualização de dados raciais georreferenciados que cruze informações do Censo e do CadÚnico com áreas de risco ambiental. Ele afirmou que essa abordagem pode revelar quais tipos de riscos atingem com mais força determinados grupos raciais e territórios segregados. “Se pudéssemos localizar os domicílios do CadÚnico, seria um potencial enorme para pensar estratégias de mitigação com recorte racial”, ponderou.
Já o pesquisador Jacinto Pereira, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LASA/UFRJ), alertou para o aumento expressivo da frequência e da intensidade das ondas de calor no Brasil, destacando os impactos diretos e indiretos à saúde humana. “Eventos que ocorriam uma vez a cada 50 anos agora acontecem com cinco a dez vezes mais frequência — e as projeções indicam que podem ocorrer até 40 vezes mais nas próximas décadas”, afirmou.
Jacinto mostrou dados de um estudo do LASA que analisou o impacto das ondas de calor em 14 regiões metropolitanas brasileiras entre 2000 e 2018, revelando um aumento significativo desses eventos e um total de 48 mil mortes em excesso no período. “É fundamental olhar para os eventos compostos, como a seca extrema seguida de onda de calor no Pantanal em 2020, que gerou incêndios florestais com impacto na qualidade do ar e aumento da mortalidade em regiões distantes como São Paulo”, disse.
A secretária executiva da Rede por Adaptação Antirracista, Thaynah Gutierrez, defendeu a urgência de incorporar a interseccionalidade nas políticas climáticas brasileiras, destacando que o problema não está na ausência de dados, mas na dificuldade de conectar a produção de conhecimento com os tomadores de decisão.
Ela ainda criticou o modelo de políticas públicas top-down, que desconsidera saberes territoriais e ignora os impactos diferenciados das mudanças climáticas sobre populações racializadas. “A política climática não respeita fronteiras, setor ou território. É um problema complexo que exige respostas interseccionais”, argumentou.
Mesa de debates e formulação de agenda coletiva
Ao longo dos dois dias de evento, os participantes formaram grupos de discussão para aprofundar o debate sobre os desafios e as oportunidades para atuação conjunta na integração de dados qualificados de raça, gênero e justiça climática nas políticas públicas brasileiras.
Os grupos foram divididos em três temas: acesso a direitos (como saúde e educação); trabalho, renda e subsistência; e cidades. A proposta é que esses grupos contribuam para a formulação de uma agenda conjunta, voltada ao enfrentamento do racismo ambiental e à promoção da justiça climática com base em dados sólidos e racializados.