Créditos: Ramon Vellasco
Militantes e estudiosos da agenda racial brasileira estiveram presentes no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nesta terça-feira (3) debatendo o novo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 18 sobre Igualdade Étnico-racial no evento ‘Agenda 2030 e ODS 18: Construindo Futuros Racialmente Justos e Inclusivos’. Dialogar e trazer o Ipea como espaço de escuta pública ativa sobre os desafios da implementação do novo objetivo e avaliar os compromissos institucionais do governo federal foram destaques no encontro.
Os militantes de organizações e coletivos também evidenciaram a maior urgência de diálogo com movimentos sociais sobre a racialização dos ODS e aproximação destes com o Ipea. Preocupações com temas como racismo ambiental e políticas criminalizantes de segurança pública foram alguns dos temas debatidos. Ruth Salles, ex-representante do Fórum de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, expressou preocupação sobre a questão estrutural do racismo brasileiro. “Vejo a organização nas favelas, que é onde o nosso povo continua sendo assassinado todos os dias com um estado que realmente continua racista, além do encarceramento em massa. É preciso pensar uma política de fato que vá mudar essa estrutura de um Estado racista, que encarcera e que mata o nosso povo, eu acho que isso é muito urgente nas políticas. Hoje mesmo, nós estamos vendo várias intervenções do Estado dentro das nossas famílias, arrastando corpos de jovens dentro das nossas favelas”, relatou.
Para Antonio Teixeira, técnico de pesquisa e planejamento da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais e um dos organizadores do encontro, ‘não se faz política pública e, aliás, nenhuma política de Estado, seja ela qual for, sem imaginação política’. E completou: “Também não se constrói política sem conhecimento embasado que, fundamentalmente, é ação pública. No linguajar da militância, a gente costuma dizer que a técnica qualifica a política, mas é a política que confere sentido à técnica. Esse trabalho, se traduzir apenas em aprimoramento técnico daquilo que já existe, se converte em uma tarefa meramente burocrática. Por isso, imaginar futuros é um elemento fundamental para quem quer debater política pública no sentido transformador. A gente tem um outro desafio, porque veja, quando a agenda negra antirracista provoca o conjunto do Estado brasileiro a não deixar ninguém para trás olhando para a população negra, essa mesma agenda precisa refletir hoje o desafio de não deixar nenhum de nós para trás. Nós também somos desiguais entre nós”, declara o pesquisador.
Na abertura do encontro, estiveram presentes representantes do Ipea e demais instituições parceiras. “Se a gente quer realmente ser um país desenvolvido, a gente tem que enfrentar o racismo, a gente tem que enfrentar as discriminações, porque a gente está perdendo com isso. Estamos perdendo como sociedade, perdendo como país, perdendo inclusive como economistas que sou, e alguns de nós somos aqui, porque a gente não está alcançando todo o potencial da nossa população por discriminação e por racismo. Eliminar o racismo é um desafio que a nossa sociedade tem que enfrentar. A ousadia de colocar a eliminação como meta num ODS é uma ousadia imensa. Porque a gente sabe que, historicamente, essa é uma luta”, afirma Luciana Mendes Santos Servo, primeira presidenta negra do Ipea, que celebra 60 anos de existência em 2024.
Símbolo de inovação e racialização dos objetivos sustentáveis da Agenda 2030, o ODS 18 é fruto de articulação entre o Ministério da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e Cidadania e do Ipea. Tatiana Dias Silva, diretora de Avaliação, Monitoramento e Gestão da Informação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Igualdade Racial, destacou que todas as políticas de igualdade racial devem estar no centro das demais políticas públicas, e enfatizou o Brasil no G20.
“É importante essa força que as estratégias internacionais têm, mas também fazer essa reflexão das políticas de igualdade racial, como os movimentos sociais sempre têm colocado, e como a gente também tem pontuado como uma política de desenvolvimento, e a gente está falando de políticas que são necessárias, como dentro de uma visão do que é necessário, do que é fundamental e do que é essencial para a gente pensar a política de desenvolvimento. E desenvolvimento que não deixa ninguém para trás, para todos e para todas. Deliberadamente pensadas em como elas estão atuando com, sobre e acerca das populações negras, das populações indígenas, das populações quilombolas”, afirmou.
Os participantes celebraram o novo ODS também como uma oportunidade inovadora frente às falhas do estado brasileiro, e essencial para o enfrentamento de desigualdades. “Acreditamos que este é um momento crucial para fortalecer a agenda antirracista como parte fundamental das discussões sobre desenvolvimento sustentável, reconhecendo a centralidade da população afrodescendente no enfrentamento às múltiplas crises que desafiam o mundo contemporâneo. Apreciamos a iniciativa do governo brasileiro com o ODS 18, pois demonstra como a Agenda 2030 pode ser customizada para enfrentar desafios que historicamente não tiveram a devida centralidade na luta pelo desenvolvimento sustentável. É um exemplo do racismo ambiental e a constatação do que é uma demanda global”, declarou Ester Carneiro, assessora de clima e racismo ambiental de Geledés - Instituto da Mulher Negra.
Memória e democracia
A jornalista Miriam Leitão esteve presente no encontro e sinalizou a necessidade da criação do objetivo 18 na Agenda 2030 como essencial para a democracia no país. “Era o ODS que faltava de fato, pois nós não teríamos desenvolvimento sustentável no Brasil [sem ele]. Não é possível pensar sem uma política muito forte de inclusão racial e de combate ao racismo. Então, isso só poderia acontecer realmente no governo democrático, pois no governo anterior, era hostil essa pauta e era hostil a pauta da democracia, não por acaso, porque essa discussão da questão racial, ela se inclui na democracia, por isso ela é tão transversal. Houve transversalidade porque ela está exatamente nesse projeto de ampliação da democracia, de o Brasil se tornar uma verdadeira democracia”, declarou.
Também na mesa intitulada ‘Lembrar o Passado para não Esquecer do Futuro: O ODS 18 e a Longa Jornada da Agenda Antirracista’, a também jornalista Luciana Barreto, que hoje atua como âncora e diretora na Empresa Brasileira de Comunicação, trouxe seu relato enquanto mulher negra para instigar a importância da memória no debate.
“Acho que é muito melhor falar que eu sou semente. Não sou fruto de políticas públicas, mas sou semente de políticas públicas, e por que digo isso? Eu sou fruto de pré-vestibular para negros carentes na década de 90. O que eu sou é muito mais importante do que o que eu falo nesse momento. Quando a gente fala de pressão social, de pressão com políticas públicas, eu estou dizendo que essa mesa hoje é também uma mesa histórica discutindo o ODS 18 e daqui a 30 anos a gente pode estar falando de uma evolução um tanto maior do que o que eu represento hoje aqui”, afirma.
Autor do projeto que originou a série Resistência Negra (Globoplay, 2024), o Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos trouxe também relato de sua história de vida e ressaltou: “Memória, lembrar para não esquecer, também tem a ver com as próprias memórias familiares. Porque tem gente que se deu bem na vida e esquece. Então tem que entender um pouco também das construções coletivas. A memória tem a ver com coletividade, a ancestralidade tem a ver com coletividade. Você não nasce como indivíduo nas tradições africanas. Isso é a continuidade, isso não é indivíduo”, explica o também pesquisador e coordenador de área de pesquisa no Laboratório de História das Experiências Religiosas da UFRJ.
Racismo e doença social
No seminário, o técnico de pesquisa e planejamento do Ipea, Alexandre Marinho, apresentou o estudo ‘Utilizando modelos SIR no estudo da propagação e da prevalência do racismo no Brasil’, em que situa o racismo como doença social e indica as perdas do PIB do país diante da discriminação racial. “O racismo é elemento desorganizador da sociedade, porque ele discrimina pessoas, ele não organiza direito o processo produtivo, ele não dá reconhecimento equânime para cada um. Então, isso é uma disfunção. O racismo é uma disfunção social. Uma sociedade racista é uma sociedade doente”, explica.
O modelo SIR tenta explicar, matematicamente, como uma doença infectocontagiosa se propaga e evolui em uma população, a partir do contato entre indivíduos suscetíveis e infectantes. Em resumo: algumas pessoas "doentes" contaminam pessoas "saudáveis", segundo Marinho. “Com o passar do tempo (que pode variar muito, dependendo da dinâmica do racismo) algumas pessoas se recuperam, e após um certo período de tempo (mais ou menos longo), nos modelos mais simples, a doença tenderia a desaparecer pois todos os sobreviventes adquirem alguma imunidade. Em nosso caso, os doentes seriam os racistas e os saudáveis seriam os não racistas. Mas a cura do racismo, que é difícil e demorada, somente será possível se toda a sociedade for tratada”, exemplifica. Para o pesquisador, a atuação estatal deve ser multifatorial, pois o racismo é estrutural e multifatorial.
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