Habitação e Saneamento
As informações no bloco sobre Habitação e Saneamento são resultado do questionário aplicado pela Pnad Contínua a cada primeira visita realizada aos domicílios selecionados em sua amostra. Apresentam-se aqui informações a respeito do abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, acesso à energia elétrica, utilização e tipo de combustível utilizado para preparação de alimentos, domicílios com adensamento excessivo, tipo de propriedade do domicílio e comprometimento de renda familiar com aluguel e com prestação do domicílio.
O adensamento excessivo, caracterizado pela presença de mais de três pessoas por dormitório no domicílio, tem relação direta com as questões de acesso à moradia em condições consideradas aceitáveis no Brasil e de seu processo histórico. A partir de 1850, com a Lei de Terras, o acesso à terra estava vinculado à sua propriedade via compra, o que rompe um processo anterior no qual o acesso à terra se dava por meio de doação. Como a população negra brasileira, naquele momento em sistema de escravização, não dispunha de renda pelo trabalho assalariado, os grupos acabaram por encontrar outros modos de morar. De lá para cá, movimentos migratórios internos, como nos anos 1970 em função de crises econômicas e crises climáticas, assim como movimentos mais contemporâneos coerentes com processo de gentrificação, contribuíram para grandes dificuldades e desigualdades no acesso a moradias em grandes cidades, resultando na concentração de populações negras em determinadas situações habitacionais, sabidamente mais precarizadas. É nesse sentido, que a financeirização da moradia por meio, principalmente, de especulação imobiliária, grosso modo, expulsa e, portanto, mantém populações negras em um morar mais vulnerável.
Os dados de adensamento excessivo evidenciam uma parte deste problema. A proporção da população negra em domicílios com adensamento excessivo é o dobro da população branca e essa desigualdade se mantém estável ao longo dos anos. Em 2019, enquanto 4,2% dos domicílios com responsável negro estavam em situação de adensamento excessivo, esse valor cai para 1,7 quando se tratam dos domicílios com responsável branco. A concentração é ainda mais visível nos domicílios “chefiados” por mulheres negras da região Norte (8,6%).
A existência de serviços de saneamento e infra-estrutura habitacional adequados é outro elemento que confere luz às desigualdades no acesso a moradias consideradas de qualidade. O acesso a esgotamento sanitário adequado é, nesse sentido, um dos desafios estruturais no Brasil. Ainda que seja possível identificar, ao longo das últimas décadas, uma tendência de avanço na abrangência da população que é cliente de esgotamento sanitário adequado, este movimento tem se dado de forma lenta nos anos mais recentes, parecendo indicar uma tendência mais de estabilização na proporção de domicílios com acessa a estes serviços. Não existem diferenças expressivas entre os domicílios com responsáveis homens ou mulheres, mas entre as populações negras e brancas o acesso é diferenciado, bem como entre as populações que residem em diferentes regiões do Brasil. Cerca de ¾ dos domicílios urbanos brasileiros contam com rede geral, rede pluvial ou fossa ligada à rede para escoamento do esgoto. Outros 15% contam, para tanto, com fossa não ligada à rede
O acesso ao abastecimento adequado de água segue no mesmo sentido, ainda que este seja um serviço ofertado de forma quase universal para a maior parte do Brasil urbano. No caso dos domicílios localizados nas cidades, as diferenças mais expressivas estão entre o Sudeste, onde o serviço está quase universalizado com taxa de cobertura acima de 96%, e o Norte, no qual o acesso é um desafio com cobertura de somente 67,5%. Não existem diferenças significativas entre domicílios com “chefia” masculina ou feminina e negra ou branca, a não ser quando se considera a disponibilidade da rede de abastecimento. Neste caso, uma proporção maior de domicílios com responsáveis brancos tem rede disponível diariamente (93%, contra 85% dos negros), desigualdade que se aprofunda com o recorte regional. No meio rural, por outro lado, a taxa de cobertura vai a apenas 76% dos domicílios e o cenário de desigualdades é um pouco mais evidente, seja no que se refere às regiões, seja entre domicílios com responsável branco e negro. A disponibilidade diária de rede também está presente em menos domicílios (75%, contra 89% no urbano), sendo que em 12% das residências brasileiras, ou 20% das do nordeste, a disponibilidade é de 1 a 3 dias na semana apenas.
No caso da disponibilidade de coleta de lixo adequada nos domicílios, este é um serviço que abrange a quase totalidade da população residente no espaço urbano brasileiro. Entretanto, nos domicílios rurais, a cobertura cai de forma muito expressiva, ficando pouco acima de 40%, com importantes desigualdades no acesso conforme a localidade, a raça/cor e o sexo do responsável pelo domicílio. São os domicílios localizados na região norte os que contam com menor cobertura – apenas 17 em cada 100 residências – e são os da região sul os que estão em melhor situação, com taxa de 61% de atendimento por este tipo de serviço. Nesse caso, são os domicílios rurais chefiados por mulheres e por brancos os que contam com maior taxa de cobertura. Na intersecção entre estes dois marcadores, tem-se que 56% das residências de chefia feminina branca contavam com coleta de lixo adequada em 2019, ao passo que apenas 32% das de chefia masculina e negra estavam na mesma situação.
Os dados indicam, portanto, que, no que refere ao acesso a serviços de coleta de lixo, esgotamento sanitário e abastecimento de água adequados, as principais referências para as desigualdades estão na raça/cor dos residentes no território e região que habitam. O acesso à energia elétrica, por sua vez, é um serviço universalizado, tal como já apontava o Censo Demográfico de 2010, sem variação entre a população residente no rural e no urbano, grupos populacionais de negros e de brancos, homens ou mulheres. No caso da energia elétrica, as questões centrais estão menos o acesso e mais no tipo de energia ofertado à população e na sua adequação às necessidades dos diferentes grupos, bem como no custo do serviço que interfere de forma decisiva no orçamento familiar, especialmente para grupos de baixa renda.
A energia elétrica como combustível para a preparação de alimentos tem ganhado relevância ao longo dos anos no Brasil. Em 2019, pouco mais de 58% dos domicílios já faziam uso deste tipo de combustível para cozinhar, valor que alcança 72% no sul e cai para menos da metade no Norte (35%). Não há diferença entre domicílios com responsáveis do sexo feminino ou masculino, mas entre os domicílios com responsável negro o uso de energia elétrica para preparação de alimentos é menos expressivo, o que possivelmente tem relação com a renda mais baixa destas famílias. O combustível mais utilizado no Brasil, contudo, é o gás, que se faz presente em quase a totalidade das famílias do país, razão pela qual os sucessivos aumentos no custo deste produto têm potencial de impactar de forma muito expressiva o orçamento das famílias. Uma possível alternativa é a substituição deste combustível por outros mais baratos, como a lenha ou o carvão que estão mais presentes nos domicílios rurais que urbanos. Em 2019, 65% dos domicílio rurais faziam uso de lenha/carvão para cozinhar e 12% dos urbanos estavam na mesma situação. É possível notar, contudo, uma tendência de elevação no uso desse combustível para preparação de alimentos entre 2016 e 2019, o que deve ser observado com cuidado nos próximos anos de modo a se identificar se é uma tendência com certa estabilidade ou apenas uma variação sazonal na série.
Por fim, a PNAD contínua também traz informações sobre a propriedade do domicílio em que as pessoas residem, que podem ser imóveis próprios já pagos, imóveis próprios em pagamento, alugados ou outros (cedidos por empregador ou familiar, por exemplo). Cerca de 73% das famílias no Brasil residem em imóveis próprios – que se desdobram em 66% já pagos e 6% em pagamento – e outros 18% em imóveis alugados. Não existem variações expressivas segundo raça/cor ou sexo do responsável pelo domicílio. Ainda que a moradia de aluguel não seja o tipo de propriedade dominante no país, ela traz impactos significativos nos orçamentos familiares. Entre 2016 e 2019, aproximadamente 1/3 das famílias comprometiam mais de 30% da renda familiar em gastos com aluguel, valor considerado limite para manter o orçamento familiar equilibrado. As famílias com responsáveis mulheres estavam sobrerrepresentadas nesta situação – 36% delas comprometiam mais de 30% da renda com aluguel, enquanto entre os homens essa taxa cai para menos de 25%, ainda assim muito expressiva. Vale lembrar que a maior parte das famílias chefiadas por mulheres era do tipo “mulher com filhos”, enquanto as chefiadas por homens eram do tipo casal (com ou sem filhos), o que significa que as mulheres responsáveis pelos domicílios em sua maioria não tem cônjuge, contando com uma fonte a menos de renda que, na média, ainda é inferior à masculina. A pressão do aluguel sobre o orçamento familiar é, assim, sentida mais pelas famílias de chefia feminina. Já entre aquelas famílias que viviam em domicílios próprios em pagamento, apenas 1,3% comprometia a renda familiar com 30% ou a mais para pagamento do imóvel.
De forma geral, os dados indicam que a situação social relacionada ao acesso a serviços para infraestrutura no domicílio ainda é uma questão que demanda atuação incisiva de políticas públicas com perspectiva regional, racial e de sexo. Acesso a abastecimento água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, energia elétrica e habitação são problemas importantes para o debate das desigualdades entre os grupos populacionais brancos e negros no Brasil. Com os dados de pesquisas domiciliares a exemplo da Pnad Contínua, mas, mais especialmente com o Censo, há a possibilidade de aprofundar as análises em escalas municipais e mesmo nos setores censitários de modo a que seja possível planejar e executar de maneira mais precisa políticas públicas direcionadas ao território.