Nota Técnica - 2020 - Maio - Número 65- Diset

21/05/2020 10:21

Nota Técnica - 2020 - Maio - Número 65- Diset

A Proposta de Adoção de Fila Única nas Unidades de Terapia Intensiva e nas Demais Internações Hospitalares, Durante A Pandemia de Covid-19 no Brasil: Considerações Teóricas do Campo da Economia da Saúde Sobre as Alternativas Disponíveis

Autores: Alexandre Marinho

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Esta nota técnica tem o objetivo de analisar, de modo exploratório, algumas vantagens e desvantagens da eventual adoção de uma fila única, conforme vem sendo proposto, para organizar as internações, inclusive em unidades de terapia intesiva (UTIs), em todos os hospitais públicos e privados brasileiros, no contexto da atual pandemia do novo coronavírus (Sars-COV-2), causador da Covid-19. A análise utiliza elementos teóricos, e de resultados práticos, observados em economia da saúde e, de modo complementar, em teoria das filas (Queueing Theory). Essa análise se justifica em função da gravidade da situação atual e da possibilidade de que a fila única seja adotada na presente pandemia, ou que venha a ser novamente objeto de debate, em eventuais futuras pandemias, ou em epidemias que ocorram no país.

De fato, as possíveis interações entre hospitais públicos e hospitais privados que compartilhem, ainda que parcialmente, uma mesma clientela é bastante complexa. As consequências dessas interações podem ser observadas em vários indicadores: nas quantidades totais de pacientes atendidos ou recusados; na qualidade dos desfechos clínicos; e, até mesmo, na situação econômica e financeira dos hospitais (Marinho, 2003; Marinho, 2004b; Marinho et al., 2009). Essas complexidades são muito amplificadas na presença de uma pandemia potencialmente catastrófica, como a de Covid-19.

A capacidade de atendimento aos brasileiros contaminados pelo novo coronavírus, em leitos de internação usuais e em UTIs, poderá, em diversas localidades, superar as necessidades da população (CNS, 2020; Costa e Lago 2020; Noronha et al., 2020; Rache et al., 2020). Além de quantitativamente insuficiente, a distribuição de leitos é desigual entre os entes federados (estados, Distrito Federal e municípios) e entre as regiões do país, em desfavor das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Portela et al., 2020). Existem também desigualdades entre a disponibilidade de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS), onde os leitos são insuficientes, e a disponibilidade na rede assistencial da saúde suplementar (planos e seguros de saúde), onde os leitos são relativamente mais abundantes, embora sem grandes excessos. Para tentar minimizar o problema dessas desigualdades surgiu, no decorrer da atual pandemia, a proposta de criação de uma fila única para atendimento em hospitais públicos e nos hospitais privados. Esta proposta foi divulgada em nota técnica elaborada pelo Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Universidade de São Paulo (GEPS/USP) e pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES/UFRJ) e no Manifesto Leitos para Todos + Vidas Iguais. O manifesto foi assinado (até o momento – abril de 2020) por dezenas de entidades da sociedade civil organizada e por mais de 1.100 médicos, profissionais de saúde, pesquisadores e cidadãos com as mais diversas formações profissionais. O referido manifesto está disponível na internet.

Em termos bastante gerais, de acordo com a proposta de fila única, a gestão do acesso aos leitos públicos e privados de internações e de UTIs no Brasil seria feita pelo setor público, independentemente de os pacientes terem ou não, preteritamente, direito ao acesso via planos e seguros de saúde, ou da capacidade de pagamento no momento da internação (out-of-pocket).

A proposta de fila única suscitou manifestações na imprensa, tanto de apoiadores, como a professora da UFRJ, Dra. Ligia Bahia,3 quanto de detratores, como o Dr. Henrique Neves, vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP),4 ambos no jornal Folha de São Paulo (2020). Outros órgãos da imprensa também publicaram manifestações sobre o tema,5 como o jornal O Globo, em mais de uma ocasião. Voltaremos ao debate em torno da proposta mais adiante, nesta nota técnica.

Um ponto interessante a ponderar é que tanto a proposta da nota técnica GEPS e GPDES (2020) como o Manifesto Leitos para Todos + Vidas Iguais (2020) se concentram nas vagas hospitalares contratadas pelos planos de saúde. Nenhum dos documentos menciona os hospitais de clientela fechada (militares, sindicatos, igrejas etc) que, eventualmente, também possam receber, direta ou indiretamente, benefícios, tais como subsídios diversos; empréstimos de bancos oficiais com condições especiais; investimentos públicos federais; e recursos dos erários municipais, estaduais ou federal. Seria importante tornar clara a contribuição que esses hospitais estão dando para a população em geral na presente pandemia, além de sua clientela fechada habitual. Mas essa é uma tarefa que está além do escopo desta nota técnica.

Além da presente apresentação, esta nota técnica possui mais seis seções. A seção 2 apresenta uma breve descrição do tratamento dado às filas em saúde pela economia da saúde. A seção 3 descreve, sucintamente, a proposta da fila única geral (FUG), conforme descrita por seus defensores, que abrangeria todos os leitos de internação, inclusive UTIs, no âmbito do SUS, e os leitos dos hospitais contratados por seguros e planos de saúde (assistência suplementar), que não são contratados pelo SUS. A seção 4 apresenta justificativas de caráter legal, ou normativo, para implementação da fila única. A seção 5 explicita um modelo de fila que chamamos de fila única parcial (FUP), que seria menos abrangente do que a FUG. A FUP somente englobaria os leitos hospitalares que estivessem vagos nos hospitais fora do SUS, após a internação dos pacientes beneficiários de planos e seguros de saúde. A seção 6 discute questões operacionais favoráveis, ou desfavoráveis, à implementação da fila única. A seção 7 contém as nossas considerações finais. O apêndice A apresenta um exercício exploratório, muito preliminar, de aplicação de teoria das filas em dados da presente pandemia no Brasil.