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Trabalho - Corporação de informais

2005. Ano 2 . Edição 9 - 1/4/2005

Os flanelinhas de Brasília são um exemplo de organização social espontânea que, de certa forma, replica a estrutura da sociedade formal.
 


Por Pedro Ivo Alcântara, de Brasília

trabalho

É sabido que o Brasil tem uma frota imensa de automóveis, que a maior parte dela está nas grandes cidades e que estas não foram projetadas para abrigá-la e permitir a fluidez do trânsito. Esse é um problema comum que as prefeituras enfrentam. Decorre dele um outro, social: a multiplicação dos guardadores de carros em áreas públicas que não foram planejadas para funcionar como estacionamentos. Em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador e em Belo Horizonte esse fenômeno pode ser observado sem maior dificuldade. Em Brasília, no entanto, o caso é mais grave.

Cidade planejadana década de 50 para acolher a burocracia governamental, quando a indústria automobilística mal se instalara no país, ela tem poucas vagas para estacionamento nas áreas comerciais da zona central. Em mais de 40 anos sua população - e o número de veículos - cresceu exponencialmente. Os guardadores de carros, ou flanelinhas, ali, são personagens essenciais para o bom funcionamento da máquina pública - são eles que garantem que os funcionários consigam estar em seus gabinetes no horário de trabalho.

Por ser um caso exemplar, os flanelinhas de Brasília têm sido estudados por gente da academia. E as pesquisas têm revelado fatos interessantíssimos. O principal deles é que, na informalidade, os guardadores de carros reproduzem muitas das características da sociedade e do mercado formal de trabalho.

A análise é significativa porque os flanelinhas compõem boa parte dos 52,6% (cerca de 36,3 milhões de pessoas) da população brasileira que exerce algum trabalho remunerado - mas sem o registro, a documentação e o respaldo previstos nas leis trabalhistas. Não recolhem impostos, não possuem Fundo de Garantia e muito menos direito a aposentadoria. Segundo a professora Angélica Duarte de Aguiar, autora da dissertação de mestrado "A lógica doméstica do espaço público de Brasília: flanelinhas no setor informal de trabalho", pela Universidade de Brasília (UNB), "os guardadores de carros criam em suas áreas de trabalho pequenas sociedades com suas próprias regras e leis".

Estas, segundo a pesquisadora, que também é professora do Instituto de Ensino Superior do Acre, são estratégias de "sobrevivência" das classes mais pobres e excluídas do mercado. A pesquisa trata da cena urbana brasiliense e não representa necessariamente o que ocorre com os demais trabalhadores informais. Contudo, é um exemplo da organização de alguns setores da informalidade no Brasil.

Hierarquia No Setor Bancário Sul (SBS) de Brasília, a informalidade se debruça sobre o espaço público, transformado em estacionamento, dividido em pequenas glebas, territórios em que os trabalhadores possuem referenciais éticos e regras de conduta próprias. O sentimento de propriedade é tão acentuado que, segundo o estudo feito pela professora, alguns deles se dispõem a alugar sua área - que é, como já se viu, pública - por algo em torno de 400 reais, ou até mesmo a vendê-la.

A cotação varia de dois a seis mil reais. Mais comum é que flanelinhas sem ponto fixo, mas que possuam algum vínculo de amizade ou parentesco com um guardador, lavem carros para seus companheiros - e dividam o lucro obtido com o "dono" do local, numa espécie de terceirização de serviços.

Os trabalhadores criam laços de confiança sociais em seu universo profissional. "Aqui todo mundo é amigo e se respeita", diz William Campos, 25 anos, guardador de carro há cincos anos. Segundo o estudo de Aguiar, há uma rede de solidariedade muito forte no dia-a-dia dos guardadores, o que gera "certa estabilidade informal". Ou seja, existe uma política de cooperação mútua que se resume em ajudar para ser ajudado, como define o estudo, "dar-receber-retribuir".

Assim, por exemplo, cada um respeita e preserva a clientela do outro e, sobretudo, seu espaço territorial. Com um comportamento ético, eles evitam conflitos entre si e invasões de pessoas estranhas ao local. Para Christiane Girard, socióloga e professora da UNB, "a rede criada em torno da informalidade é uma maneira de afirmar a inclusão e, também, de garantir a renda e a tradição. Tudo está ligado também a uma relação de proteção. A informalidade é muito mais organizada do que se imagina".

Segurança Uma das conclusões de Aguiar é que são justamente os vínculos de amizade e os códigos em relação ao território que reforçam a segurança nas áreas em que os flanelinhas atuam. Como eles têm a preocupação de preservar a clientela, a vigilância do ambiente é sempre uma questão prioritária. "Os guardadores não permitem que pessoas suspeitas circulem pelos estacionamentos", diz a pesquisadora. Já as autoridades policiais tratam a questão com um pouco mais de cautela.

Segundo Haendel Silva Fonseca, delegado da Polícia Civil, deve-se analisar o problema de dois pontos de vista: "Há regiões onde os flanelinhas estão envolvidos em delitos e há outras onde eles desenvolvem uma atividade idônea. Neste último caso, em geral, constata-se menor índice de criminalidade". No ano passado a Polícia Civil do Distrito Federal realizou o cadastramento desses trabalhadores em várias localidades da capital. Além disso, foram promovidas palestras com assistentes sociais sobre como tratar a clientela, os antecedentes criminais foram verificados e a documentação daqueles que não possuíam cédula de identidade foi tirada.

Os guardadores de carros são ferrenhos defensores de seus canteiros. "Aqui ninguém chega e vem lavando carro", diz Campos, que em dezembro tirou um mês de férias para viajar ao Maranhão e deixou um primo como substituto. Uma das formas de concessão do espaço é o parentesco, ou seja, é comum que o ponto seja passado de pai para filho, que ambos dividam o trabalho ou que irmãos e primos trabalhem juntos. Além disso, se um flanelinha fica doente ou precisa se ausentar, só é permitido que alguém da família ou de muita confiança o substitua, caso contrário os colegas cuidam do ponto até que ele possa retornar.

É interessante constatar que nem sempre há marcos físicos (como árvores e placas de trânsito) que delimitem os territórios: muitas vezes linhas imaginárias demarcam as áreas sem deixar margem de dúvida quanto aos limites de cada um. "O espaço conquistado é o maior bem que os flanelinhas possuem. É ele que garante a clientela e, conseqüentemente, os ganhos financeiros", diz Aguiar.

Controvérsias Observado como um fenômeno social, o arranjo dos guardadores de carros parece bastante interessante. Mas não deixam de existir controvérsias em torno do tema. Há os que consideram a atividade como uma privatização irregular dos estacionamentos públicos. "Eu particularmente me sinto lesada e extorquida por ter de pagar para estacionar meu carro em uma área pública. É, para mim, uma coação", diz a publicitária Fernanda Junqueira, usuária dos estacionamentos do SBS.

Aguiar explica que os guardadores "são, primeiramente, vistos como marginais e tratados com desdém pelos motoristas que não os conhecem. Depois, com a rotina, criam-se vínculos e a mentalidade muda". E há um senso comum de que em muitas situações os motoristas pagam para que seus automóveis não sejam danificados. "Ninguém é obrigado a pagar, mas é claro que ajudamos mais aqueles que têm o hábito de contribuir para o nosso trabalho", diz Campos, trazendo à tona a lógica do ajudar para ser ajudado.

Leonardo Fernandes, funcionário do Banco do Brasil, tem uma relação mais amistosa no convívio com os flanelinhas. Não é adepto das gorjetas, mas semanalmente encomenda a lavagem do carro a um deles. "A gente é obrigado, devido à convivência diária, a estabelecer uma relação com eles", explica. Mas é cauteloso ao discutir o trabalho: "Ele tem um lado bom e outro ruim. De qualquer maneira, considero a segurança dos automóveis uma parte importante do serviço prestado, já que o Estado é omisso nesse caso". A troca de confiança chega a níveis pouco imaginados em uma cidade grande. Os guardadores de carros contam que um antigo flanelinha se tornou motorista da família de uma de suas clientes: leva os filhos na escola, vai ao banco e faz compras para ela.

Multiplicação Ao menos no Setor Bancário Sul de Brasília, os flanelinhas prestam um serviço essencial, pois não existem vagas suficientes para atender à população motorizada que trabalha nos escritórios. O SBS é composto de duas quadras. Numa delas, com cerca de 25 mil metros quadrados, só existem duas vias de acesso. Ali funcionam as sedes de instituições financeiras importantes, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, além do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde está sediada a revista Desafios.

Milhares de pessoas trabalham nesse espaço. E muitas se movimentam de automóvel. Existem garagens subterrâneas nos diversos prédios, mas são usadas para carga e descarga, por caminhões com malotes de dinheiro e por automóveis de dirigentes das instituições. A área conta com algumas poucas vagas de estacionamento aberto, mas com os flanelinhas - cerca de 50 que trabalham na quadra - o espaço para carros se multiplica várias vezes, já que os veículos são deixados em filas duplas ou triplas em toda a área disponível.

Fica livre apenas um estreito corredor para trânsito, o que causa enormes congestionamentos. Para atender à demanda corrente de automóveis, segundo o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), seria necessário um número pelo menos três vezes maior do que as 1.150 vagas existentes na região, que não mais comporta a criação de estacionamentos abertos. Enquanto o caso não se resolve, o Detran costuma fazer vista grossa e multar apenas os que inviabilizam o trânsito.

Numa caminhada é possível entender a lógica do estacionamento do lugar. A equação é simples. Como há muito mais pessoas querendo estacionar seus automóveis do que vagas disponíveis, a presença dos flanelinhas acaba se configurando como uma peça-chave na situação caótica. "Eles organizam o espaço", explica Aguiar. Ou seja, determinam onde se deve ou não estacionar e realizam o milagre da multiplicação. A fórmula? Os motoristas param seus carros onde for possível e deixam solto o freio de mão.

Quando necessário, o guardador empurra os automóveis como num jogo de quebra-cabeça e desobstruem a passagem dos que desejam sair. Muitos ficam com as chaves dos veículos para estacioná-los conforme surjam novos espaços, embora, surpreendentemente, nem todos tenham carteira de habilitação. Nesse particular, ocorreu um caso que vale registro. Um flanelinha que trabalhava numa área próxima ao prédio do Ipea não tinha licença de motorista nem sabia dirigir. Para ficar mais tranqüila quanto à integridade de seu veículo, uma funcionária do instituto pagou a auto-escola e os custos da carteira de habilitação para o guardador.

Renda Com os trocados recebidos pela guarda e pela lavagem de automóveis, os flanelinhas garantem uma renda mensal praticamente fixa. Segundo a pesquisadora, há nesse setor um bom grau de previsibilidade dos rendimentos. Em média, os trabalhadores faturam de 400 a 600 reais mensalmente. "Um valor bem superior ao que conseguiriam, com a capacitação que possuem, no mercado formal", explica a socióloga Girard.

Isso porque, em geral, esses trabalhadores não têm escolaridade suficiente para conseguir um emprego formal com renda similar. A grande maioria cursou apenas as primeiras séries do ensino fundamental. "O que pude constatar é que os flanelinhas apenas trocariam os estacionamentos por um emprego com os registros legais se obtivessem uma renda melhor", diz Aguiar. Normalmente o serviço de guarda diária do carro e de uma lavagem semanal custa cerca de 40 reais mensais.

Brasília é um pólo de atração de imigrantes de todas as regiões do país. Pelo levantamento feito na dissertação de Aguiar, boa parte dos flanelinhas vem de outros estados em busca de oportunidades de emprego, de habitação e de melhores condições de vida. Muitos chegam à cidade com pouco mais do que a roupa do corpo e apostam nas chances - muitas vezes fantasiosas - que uma metrópole possa lhes oferecer. Para alguns, esse sonho acaba em desencanto, enquanto outros poucos conseguem alcançar seus objetivos. Segundo Aguiar, pode-se dizer que os flanelinhas são bem-sucedidos na Capital Federal. Não que cheguem a acumular patrimônio, mas guardam certa sensação de êxito, conseqüência da formação de família e da obtenção dos recursos mínimos para garantir sua qualidade de vida.

Respeito A falta de oportunidades em bons empregos resulta na criação de um forte vínculo com o trabalho informal - que no caso em foco funciona quase como uma corporação. A maioria dos guardadores de carros está há muitos anos no mesmo ponto. Os mais novatos, no SBS, chegaram há mais ou menos cinco anos e já contam com clientela fixa. Francisco Fonseca Sobrinho, ou seu Francisco, veterano no local, atua no mesmo ponto há mais de 18 anos. Hoje, aos 63 anos de idade, conta que conseguiu uma verdadeira proeza: criou oito filhos com o que ganhou vigiando e lavando carros nas áreas públicas de Brasília. A professora explica que esse vínculo com o espaço de trabalho afirma a sensação de "pertencimento" a um sistema social. Assim, os guardadores de carros não se sentem excluídos da sociedade.

Organizados, os flanelinhas brasilienses trabalham na esperança de alcançar o respeito da comunidade que utiliza seus serviços. "Ninguém está nem aí para a gente nem para a nossa relação. Nós estamos aqui para trabalhar e não para ficar tirando proveito dos outros", protesta Campos. E isso foi constatado no estudo de Aguiar. "O que eles menos gostam é da indiferença e da falta de atenção. Sentem-se humilhados quando motoristas nem sequer abrem o vidro e ignoram sua presença."

Uma questão de logística urbana e um reflexo das disparidades sociais brasileiras, o fato é que o fenômeno da existência dos flanelinhas nas grandes cidades brasileiras está posto. Algum dia terá de ser solucionado. Mas, no momento, vale a pena observar como pessoas sem nenhum recurso não só conseguem perceber oportunidades de trabalho, como se organizam e obtêm rendimento suficiente para sua sobrevivência - sem nenhum apoio estatal. São empreendedores. E por esses feitos merecem respeito.

 
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