2005. Ano 2 . Edição 10 - 1/5/2005
"O Brasil teve em 2004 o menor coeficiente relativo de endividamento externo dos últimos 30 anos e a dívida interna indexada ao dólar está em via de desaparecer. Que racionalidade haveria numa moratória brasileira?"
Fabio Giambiagi
Imagine o leitor que um amigo (João) lhe peça 1.000 reais emprestados, a serem devolvidos na forma de 100 reais por mês num prazo de dez meses (para facilitar, vamos assumir que não haveria cobrança de juros). E que outro amigo (Pedro) lhe peça emprestada a mesma quantia, nas mesmas condições. Então imagine que após o pagamento de três das dez prestações, João tenha sido demitido, seu carro (sem seguro) tenha sido roubado e sua esposa esteja na UTI, ao custo de 50.000 reais não cobertos pelo plano de saúde. E que no mesmo período Pedro tenha sido promovido com aumento salarial de 20%. É razoável julgar que, se João chegasse à casa do amigo explicando que infelizmente se tornara impossível quitar a dívida, o leitor seria compreensivo. Já se Pedro tomasse a mesma atitude talvez fosse posto para fora a pontapés. A Argentina de Néstor Kirchner é o João da história. Pretender que o Brasil siga seu caminho é tão absurdo quanto Pedro declarar que não vai pagar sua dívida.
Quando, em dezembro de 2001, a Argentina se curvou diante da desvalorização cambial, decretou uma dupla moratória, inevitável nas circunstâncias. A primeira, externa: o país não tinha mais dólares com os quais arcar com os compromissos que venceriam em 2002. E a segunda da dívida pública: o dólar escalando rapidamente da paridade para valer mais de 3 pesos, a dívida pública, predominantemente assumida na moeda norte-americana, tornou inviável o pagamento do seu serviço. Quando um credor deve rolar os vencimentos da dívida, se esforça para conservar o crédito. Uma vez, porém, que constata a impossibilidade de pagamento, a lógica do processo negociador sugere que ele procure tirar o máximo proveito, o maior desconto possível. Foi o que ocorreu. É claro que ninguém gosta de estar na situação das viúvas e aposentados italianos que compraram papéis argentinos para complementar suas aposentadorias e se defrontaram com uma perda de capital - e de renda! - de 70%. O governo, entretanto, soube aproveitar um mercado pulverizado, em que os grandes investidores já haviam realizado suas perdas, para impor um desconto elevado. Essa foi uma atitude racional. Mas como disse corretamente o ministro da Economia, Roberto Lavagna: "Sabemos que muita gente teme que (nosso caso) sirva de exemplo... O preço que pagamos é tão alto que ninguém que for são vai querer ter a experiência argentina" (jornal O Estado de S. Paulo, 12 de abril de 2005).
O Brasil teve em 2004 o menor coeficiente relativo de endividamento externo (Dívida externa líquida/Exportações) dos últimos 30 anos. A dívida externa líquida caiu aproximadamente 40 bilhões de dólares em cinco anos, em função de pagamentos e do acúmulo de reservas. Já no caso da dívida pública, o país registrou em 2004 uma queda de 5 pontos do PIB, com o adendo de que os seus detentores são fundamentalmente brasileiros e que a dívida interna indexada ao dólar - um dos grandes problemas existentes em 2001/2002 - está em via de desaparecer. À luz dessas informações, que racionalidade haveria numa moratória brasileira?
Já se notam os protestos diante da possibilidade de o crescimento do PIB brasileiro ser da ordem de 3% em 2005. Pois bem, o PIB da Argentina - cuja economia tinha encolhido 8% no triênio 1999/2002 - caiu mais 11% em 2002, após a moratória. Que o coeficiente ainda elevado da relação Dívida pública/PIB leve setores políticos a falar em "seguir o exemplo argentino" não passa de irresponsabilidade. Primeiro, porque nas condições do Brasil, seria tão absurdo quanto o Pedro do começo deste artigo se recusar a pagar a sua dívida. E segundo porque "reestruturar a dívida pública" significaria fechar a porta de saída do sistema financeiro para impingir à população, que tem suas aplicações em fundos lastreados em títulos públicos, os títulos de prazos longos a juros baixos. Isso, na Argentina, tem um nome: chama-se "corralito". No Brasil a medida seria derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Seria também um passaporte para que a população saísse às ruas. "Corralito" derruba governo. Se alguém tiver dúvidas, que pergunte a Fernando De la Rúa.
Fabio Giambiagi é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
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