2004. Ano 1 . Edição 2 - 1/9/2004
Estudo do mostra que o Brasil lidera a lista dos países que criam maiores dificuldades para abrir uma empresa. É um dos grandes obstáculos para que pequenos negócios entrem na economia formal.
Por Clarissa Furtado, de Brasília
Abrir uma empresa, pequena, média ou grande, no Brasil, é como participar de uma gincana. É preciso ter disposição para cumprir cerca de 17 procedimentos, comparecer em até 15 órgãos do governo, ter tempo e dinheiro de sobra. Para se ter uma idéia da dimensão do problema da burocracia nesse campo, um estudo realizado pelo Banco Mundial esse ano, denominado Doing Business (fazendo negócios), indica que qualquer mortal interessado em abrir um empreendimento no Brasil tem de desembolsar, por baixo, 274 dólares em taxas e tributos, além de esperar uma média de 155 dias para abrir as portas.
O levantamento aponta que o Brasil ocupa o sexto lugar, entre 133 países pesquisados, em matéria de demora para a abertura de uma empresa. O tempo gasto nos trâmites burocráticos é o triplo da média mundial, que é de 49 dias. Na Austrália, por exemplo, em dois dias se abre um negócio, e nos Estados Unidos são necessários cinco dias (veja tabela na página seguinte). Para fechar uma empresa brasileira são necessários 10 anos. É o segundo processo mais lento do mundo. Perde apenas para a Índia, com 11,3 anos.
O estudo do Banco Mundial leva em conta a realidade dos principais centros financeiros de cada país. No caso do Brasil o cenário foi a cidade de São Paulo. A situação da capital paulista é emblemática e reflete muito do que acontece ao longo do território, embora em algumas capitais o problema esteja minimizado, como é o caso de São Luís, no Maranhão, onde é possível abrir um empreendimento em seis dias.
O périplo é longo não apenas por envolver várias etapas a serem cumpridas, mas também devido a inúmeros imprevistos que normalmente acontecem no meio do caminho. Um processo em fase final de deferimento pode retornar ao ponto inicial se uma assinatura tiver algum detalhe diferente da que consta na carteira de identidade, por exemplo, ou ainda se houver qualquer pequena rasura ou termo incorreto.
As dificuldades enfrentadas pelos empreendedores brasileiros não ocupavam a agenda pública desde o final da década de 1980, quando foi criado o Ministério da Desburocratização (leia o quadro na página ao lado). Agora, um grupo de trabalho do governo federal, capitaneado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), está incumbido de realizar um diagnóstico dos principais entraves no registro empresarial, e de implementar soluções que minimizem o martírio de potenciais empreendedores. O primeiro passo foi a realização de um workshop em maio, reunindo membros do governo federal e outros setores envolvidos no processo em instâncias estaduais e municipais. No evento foram debatidas experiências internacionais de desburocratização e iniciativas locais bem-sucedidas. Também foram esboçadas sugestões de atuação em nível federal.
"As exigências são repetitivas e falta orientação para o empreendedor", afirma Carlos Gastaldoni, secretário de Desenvolvimento da Produção do MDIC e coordenador do grupo de trabalho. Segundo ele, a legislação foi feita com foco em cada um dos órgãos envolvidos, sem uma visão geral do processo e sem pensar no cliente. Grande parte da demora deve-se ao fato de que os órgãos responsáveis por autorizar o registro não conversam entre si. Assim, o potencial empresário tem de fornecer os mesmos dados e documentos a cada um deles. E precisa esperar que se cumpra cada etapa para iniciar outra.
Burocracia Os contadores são as figuras que mais conhecem o duro dia-a-dia das filas da burocracia. "A sensação é de que a cada ano fica mais difícil abrir um negócio. Em Brasília, costumamos gastar de 40 a 60 dias para cadastrar uma empresa e outros 3 a 4 meses para que ela possa funcionar", comenta o contador Leo Arksy, da empresa de contabilidade Welmaso, de Brasília.
A questão é importante porque impacta a pauta de crescimento sustentável do Brasil a longo prazo. A burocracia é um dos motivos da alta taxa de informalidade dos negócios no país, hoje na casa dos 40% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o Banco Mundial. Segundo um estudo do Instituto Análise de Ribeirão Preto, realizado no final do ano passado a pedido do Ministério da Fazenda, de um total de 640 empreendedores informais do estado de São Paulo, 21,5% não pensavam em legalizar suas atividades por causa das dificuldades burocráticas, 24,6% devido ao alto custo financeiro e 18,5% devido ao tempo gasto no processo.
O argumento explica a ênfase especial ao tema pedido pelo ministro Luiz Fernando Furlan, do MDIC, ao grupo de trabalho interministerial, e também a inclusão do tema na lista de medidas da nova Política Industrial. "Mas não adianta esperar que o Estado sozinho conduza o processo de mudanças. A pressão da sociedade é fundamental", alerta o cientista político Sérgio Abranches. (leia o quadro na página ao lado)
Entidades representativas do público empresarial já estão se movimentando nesse sentido. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), por exemplo, elaborou um ante projeto de lei, a ser apresentando ao Congresso ainda em 2004, redefinindo o Estatuto das Micro e Pequenas Empresas e fazendo outras propostas. Interessados no assunto não faltam. O número de empreendedores no país é crescente. O Brasil passou de sétimo colocado, em 2002, para o 6º lugar, em 2003, na pesquisa Global Entrepreneurship Monitor, feita pela London Business School, sobre o nível da atividade empreendedora em todos os continentes. No ano passado, 12,9% da população estava envolvida em alguma ação empreendedora, formal ou informalmente.
A criação de um cadastro único de empresas, reunindo informações da Receita Federal e das secretarias de fazenda estaduais e municipais é o desejo daqueles que defendem um processo menos complexo na constituição de empresas no Brasil. O Sebrae, a Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis (Fenacon) e o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) já definiram essa demanda como a principal em sua pauta de reivindicações. O conceito one stop shop (algo como loja de parada única) já funciona em vários países desenvolvidos. A unificação das informações fiscais é, inclusive, uma exigência da Emenda Constitucional 42, aprovada na Reforma Tributária do ano passado.
A entrada única de dados cadastrais é a regra, por exemplo, no Canadá, que também já admite o preenchimento de formulários pela internet. Assim, em apenas dois dias, é possível obter o registro. O empreendedor se compromete a enviar, por correio, um único documento: o contrato social da empresa.
No Brasil, embora esteja previsto em lei, o cadastro único ainda está longe de se tornar realidade. Ainda está apenas no plano da discussão. Depois que a Receita Federal realizou, em julho, um encontro de administradores tributários, foram assinados dois protocolos estabelecendo metas e compromissos para viabilizar o projeto. Segundo o coordenador-geral de fiscalização da Receita, Paulo Ricardo de Souza Cardoso, estados e municípios terão até 30 de setembro para apresentar um diagnóstico da situação e o que seria necessário para a unificação. "Temos disparidades nas regras locais e também na estrutura tecnológica. Em São Paulo, por exemplo, o registro de empresa é regulado por lei estadual e, por isso, terá de ser aprovada uma nova lei que possibilite o cadastro único", explica.
A adoção de um código único de classificação econômica de empresas é outra medida fundamental para a viabilização do projeto. A Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE - Fiscal), criada em 1994 e atualizada em 2002, foi sendo paulatinamente usada pelos diversos ministérios. Ela torna possível o uso de um mesmo código de atividade em todo o país e viabiliza o cadastro único. A classificação segue o padrão da Organização das Nações Unidas, o que facilita a comparação de informações brasileiras com dados mundiais. Nem todas as cidades, porém, a utilizam e, naquelas em que já é empregada, falta uniformidade. Algunas aplicam os três primeiros algarismos da classificação, enquanto outras elencam até seis. Na Receita Federal o padrão é o uso dos quatro primeiros números. Na esfera federal, cogita-se que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) poderia coordenar uma central de codificação de atividades econômicas.
Unificação de códigos O código da CNAE também poderia ser usado para cruzamento com as atividades listadas nos planos diretores das cidades. Isso facilitaria a concessão dos alvarás de funcionamento e serviria para orientar a necessidade de fiscalizações e licenças específicas. Na cidade de São Paulo está sendo elaborado um software que determinará, por exemplo, a necessidade de uma vistoria ambiental com base no código.
Além do cadastro único existem outros problemas. Faltam informações sistematizadas e de fácil compreensão sobre o procedimento a ser adotado pelos interessados em abrir empresas, principalmente porque as regras variam de cidade para cidade, de estado para estado. O Sebrae tem desempenhado um papel importante nessa área. "É preciso unificar as regras", sugere o presidente do CFC, José Martonio Alves Coelho.
Como se não bastasse o tortuoso caminho até a obtenção do registro da empresa, os futuros empresários precisam munir-se de persistência para conseguir autorizações de funcionamento das instâncias locais, como a prefeitura, o corpo de bombeiros e a vigilância sanitária. Dos 152 dias registrados no estudo do Banco Mundial, 120 são gastos nos procedimentos de fiscalização e vistoria pra a obtenção das licenças vinculadas ao alvará de funcionamento. A falta de fiscais em muitas cidades adia a vistoria. Em Brasília houve casos em que, para agilizar o processo, o empreendedor teve de ir ao corpo de bombeiros com seu próprio carro para buscar o técnico, já que faltam viaturas.
Fiscalização Qual seria uma possível solução? Para André Spínola, consultor de tributos e desburocratização do Sebrae, deveriam ser criadas classificações mais precisas das atividades de acordo com o risco potencial que elas oferecem para a sociedade. Assim, as fiscalizações se concentrariam nos negócios em que há, de fato, perigo de acidentes. Outra hipótese seria dar ciência ao empreendedor de todas as obrigações a cumprir em relação à segurança da atividade. Ele assinaria um termo de responsabilidade comprometendo-se a executá-las em determinado período de tempo. Dessa forma, a firma poderia iniciar suas atividades mais rapidamente.
Não é apenas o nascimento de um empreendimento que envolve tantos meandros. Os processos de fechamento ou alteração das condições jurídicas são compostos por rituais ainda mais cansativos. O prazo de dez anos citado pelo Banco Mundial para dar baixa de um estabelecimento é conseqüência, em grande medida, da exigência de certidões negativas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, da Receita Federal e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Uma alternativa para resolver o problema seria a eliminação de todas essas certidões. O empresário daria baixa na Junta Comercial e avisaria aos órgãos envolvido que cobrariam eventuais dívidas.
A redução do prazo de abertura e encerramento de empresas no Brasil ainda vai demorar. Contando com aprovações de projetos de lei no Congresso, investimentos em informatização e, sobretudo, uma cooperação entre os governos, serão precisos pelo menos três ou quatro anos, se tudo correr bem. Mas questões complexas muitas vezes são resolvidas com soluções marcadas pela simplicidade, quase óbvias. Enquanto as mudanças estruturais não aparecem, foram criadas em dez cidades, com o apoio do Sebrae, as Centrais Fáceis, que reúnem escritórios dos órgãos envolvidos no registro num único local.
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