Melhores Práticas - A coleta seletiva que traz dignidade, renda e proteção ambiental |
2015 . Ano 13 . Edição 88 - 23/11/2016
A coleta seletiva que traz dignidade, renda e proteção ambiental Dois anos após conquistar o Prêmio Objetivos de Des envolvimento do Milênio (Prêmio ODM), da Organização das Nações Unidas (ONU), o Programa Catavida – Gestão Social de Resíduos Sólidos supera barreiras. Ele consolida, em Novo Hamburgo (RS), uma das políticas públicas mais difíceis instituídas no país: a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Criado em 2010 com cerca de quarenta catadores, o programa emprega hoje mais que o dobro de mão de obra. E tem projetos de expansão. Atualmente, conta com 95 catadores, distribuídos em três unidades, os quais chegam a receber salário mensal de até R$ 1.500. A média salarial de catadores organizados nas 1.175 cooperativas existentes no Brasil não ultrapassa um salário mínimo e meio por mês. Para a Prefeitura de Novo Hamburgo é uma grande vitória. Afinal, trata‑se de uma das experiências de inclusão social e de cooperativismo com resíduos sólidos mais exitosas do país em uma área de difícil consolidação desse modelo de gestão. É também um exemplo de superação porque a Prefeitura tratou o problema dos resíduos sólidos e o da inclusão social como políticas de Estado e não como programa de governo. “É uma experiência bem‑sucedida em todos os sentidos. Sobretudo nessa área do cooperativismo, porque a mortalidade de empresas e cooperativas é muito alta no Brasil. Apenas entre 20% a 25% das cooperativas que se formam, realmente, conseguem atingir um patamar de operação interessante por ser um tipo de empresa que, quando começa, se não funciona rapidamente, cria desânimo entre os cooperados e acaba. As pessoas abandonam”, observa Albino Rodrigues Alvarez, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. PROBLEMAS ESPECÍFICOS As cooperativas têm dificuldades próprias. Muitas vezes são conduzidas por pessoas sem experiência de trabalho organizado e enfrentam uma série de problemas específicos que fazem com que poucas prosperem e operem bem. Diante desse quadro, as que sobrevivem, em geral, tiveram alguma assistência na parte organizacional. Existem até Organizações Não Governamentais (ONGs), no Brasil, especializadas em dar assistência para as cooperativas. “É uma experiência bem‑sucedida Albino Rodrigues Alvarez, técnico de A organização é uma das razões que fazem do Catavida um exemplo de sucesso. Mas há um conjunto de motivos que levou esse programa a se classificar na última edição do Prêmio ODM Brasil. Um deles foi o fato de ter sido uma experiência desenvolvida a partir da parceria entre municípios – a Prefeitura de Novo Hamburgo e a Cooperativa de Construção Civil e Limpeza Urbana (Coolabore) do município de Campo Bom – e também ser replicável em outras localidades. O programa de Novo Hamburgo pôs em curso um trabalho de gestão de resíduos sólidos que ensejou mudança conceitual sobre os temas dos catadores e dos resíduos sólidos na sociedade e entre os próprios trabalhadores. O programa, por sua vez, coloca Novo Hamburgo numa etapa avançada de consolidação da Política e do Plano Nacional de Resíduos Sólidos que a maioria dos municípios do país não conseguiu nem sequer implantar. LIXÕES FECHADOS Aprovada em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), criada para permitir o avanço necessário no enfrentamento dos principais problemas ambientais, sociais e econômicos decorrentes do manejo inadequado dos resíduos sólidos, enfrenta sérios problemas para ser implantada. Ela determinou que todos os lixões do país deveriam ter sido fechados até o dia 2 de agosto de 2014, o rejeito encaminhado para aterros sanitários adequados e, dentre outras ações, que os municípios deveriam elaborar seus respectivos planos para instituir a coleta seletiva. Levantamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA), de 2015, mostra que 40% dos municípios brasileiros (2.215) depositam seus resíduos em aterros sanitários e 60% (3.346 municípios), em lixão e aterro controlado até hoje. O estudo revela que 42% dos municípios (2.323) declararam ter planos de gestão integrada de resíduos sólidos, mas 58% (3.238), não têm plano. Que apenas 21% dos municípios (2.215) têm coleta seletiva e, dos resíduos coletados nesse grupo de municípios, apenas 1,8% é de fato reciclado. Aponta ainda que 79% dos municípios (3.346) não têm coleta seletiva. O Projeto de Lei nº 2.289/2015, em tramitação no Congresso Nacional, prevê o estabelecimento de novo prazo para fechamento dos lixões: até 31 de julho de 2018, para capitais e regiões metropolitanas se adequarem; até 31 de julho de 2019, para municípios com população superior a 100 mil habitantes. Para os municípios com população entre 50 mil e 100 mil habitantes, o prazo é até 31 de julho de 2020. E até 31 de julho de 2021 para aqueles com população inferior a 50 mil habitantes. Levantamento do Ipea, de 2011, e outro do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, de 2013, dão conta de que uma pessoa produz, por dia, em média, 1,02 quilo de resíduos e que 600 mil catadores integram 1.175 cooperativas ou associações de catadores, distribuídas em 684 municípios. Divulgação “Fizemos abordagens na rua Rúbia Goetz, assistente social do Catavida
A CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA A gestão de resíduos sólidos de Novo Hamburgo era realizada por um atravessador, que usava uma cooperativa e a estrutura da Prefeitura para fazer negociatas com o material coletado e mal remunerava os catadores. Em meados de 2009, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social passou a receber denúncias de que havia grande número de catadores no centro da cidade. Eram confundidos com a população de rua, pois grande parte deixava a periferia para coletar os resíduos no centro. Após a coleta, “passavam a noite pelas calçadas da cidade, protegendo o material coletado, e isso incomodava a população”, conta Rúbia Goetz, assistente social do Catavida. As denúncias contra os catadores levaram os gestores públicos da Secretaria de Desenvolvimento Social a investigar a situação e a implantar uma iniciativa intersetorial envolvendo as Secretarias de Estado do Meio Ambiente, da Educação, do Trabalho, do Turismo e a própria Secretaria de Desenvolvimento Social. “Fizemos abordagens na rua para conhecer aquela realidade e verificamos que não se tratava de população de rua. Descobrimos que a maioria desse pessoal tinha residência. Porém, usava a rua como lugar de trabalho pela ausência de um espaço formal, de uma estrutura de organização que pudesse absorvê‑la na realização dessa atividade. A partir da identificação dessas pessoas, debruçamo‑nos sobre como ocorria o trabalho com os resíduos da cidade”, conta a assistente social. Segundo ela, os gestores públicos sabiam da existência de uma coleta convencional e que o resíduo seguia para alguma central da cidade. “Conhecemos essa central. Deparamo‑nos com uma situação extremamente grave e identificamos uma série de direitos negligenciados”, diz Rúbia. Segundo ela, a Prefeitura havia cedido espaço para uma cooperativa que atuava nessa central. “Mas ela não atendia aos conceitos de cooperativa. Tinha um dono, que organizava os trabalhos e pagava cerca de R$ 100 mensais para as mulheres e R$ 200 para os homens. O trabalho não era organizado. Não tinha maquinário. Não tinha Equipamento de Proteção Individual (EPI). Os catadores simplesmente subiam nas montanhas de resíduos e dali tiravam tanto o material quanto seu sustento. Muitos deles retiravam, até mesmo, a própria alimentação daquele resíduo”, lembra. Divulgação Criado em 2010 com cerca de quarenta catadores, o programa emprega hoje mais que o dobro de mão de obra. E tem projetos de expansão. Atualmente, conta com 95 catadores, distribuídos em três unidades, os quais chegam a receber salário mensal de até R$ 1.500
DENÚNCIAS Se a preocupação da comunidade era o incômodo de ver essa população praticamente morando nas calçadas do centro da cidade, a do poder público passou a ser outra. A Prefeitura percebeu que as denúncias revelavam um problema social mais grave, relacionado à ausência de dignidade e cidadania dos trabalhadores que sobrevivem da coleta de resíduos sólidos. Observou que havia lacunas na efetivação de políticas públicas. A resposta a isso foi a criação de um grupo interdisciplinar de trabalho para subsidiar a elaboração do Programa de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos, fundamentado na Resolução nº 017/2001, do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). O grupo estudou o problema e pôs em curso estratégias de aproximação, como abordagens dos catadores de rua para a efetiva identificação deles; visitas à Central de Reciclagem no bairro de Roselândia para compreensão do processo de trabalho; e visitas às experiências exitosas realizadas em municípios da região para obter intercâmbios. Uma das mais importantes metodologias foi a visita à Central de Reciclagem, na qual foi constatada uma profusão de negligências trabalhistas e sociais, como exploração de trabalho, condições de trabalho subumanas e fortes indícios de uma metodologia totalmente em desacordo com os princípios do cooperativismo, confirmada por uma Comissão de Sindicância, o que levou ao cancelamento do Termo de Permissão de Uso do Local. Depois disso, a Prefeitura investiu recursos na implantação de uma política pública de gestão de resíduos sólidos atrelada à inclusão social dos catadores e à melhoria da qualidade de vida e ambiental em Novo Hamburgo. Conseguiu verbas de emendas parlamentares federais. Boa parte dos equipamentos das atuais três unidades foi financiada pela Fundação Banco do Brasil, por meio de projetos de captação de recursos. Recebeu também dinheiro da Funasa e da vinculação de recursos do Índice de Gestão Municipal dentro da política de assistência social que fomenta o empoderamento dos sujeitos e da inclusão no mercado de trabalho. Paralelamente, estabeleceu contato com a Coolabore, da Prefeitura do município vizinho de Campo Bom, que passou a ser, a partir de junho de 2010, a responsável pela gestão da Central de Reciclagem de lixo. A Coolabore trouxe sua expertise e passou a ser a principal parceira da Prefeitura de Novo Hamburgo na execução do Programa Catavida. O resultado é que o governo de Novo Hamburgo contratou a Coolabore e até hoje a parceria segue firme, com repasses de recursos financeiros para pagar o trabalho de triagem de resíduos. Além disso, os catadores que estavam em salas de aula foram todos vinculados ao trabalho. AVANÇAR E AUMENTAR Novo Hamburgo produz, atualmente, 4,5 mil toneladas de resíduos sólidos por mês. Desse total, 160 mil toneladas já são processadas na central de reciclagem do Catavida. O intuito é avançar e aumentar cada vez mais esse número. As novas instalações ampliaram o número de toneladas a serem processadas e aumentaram a contratação de catadores. “Atualmente, estamos com duas unidades conveniadas com a Coolabore. Uma unidade com 60 e outra com 25 trabalhadores. Em 2016 tivemos uma inovação com a contratação de uma terceira cooperativa, a Univale, na qual temos – 10 trabalhadores. Ela está recentemente conosco implantando a sua unidade. Temos projetos para ampliá‑la”, afirma Rúbia. O Catavida tem entre seus atuais desafios a implantação de outras centrais de triagem apresentadas no plano de intervenção, a ampliação do projeto e a efetivação do Programa de Coleta Seletiva Solidária em todo o município. O objetivo geral é desenvolver ações integradas que abranjam a sustentabilidade social, econômica e ambiental, levando em conta as medidas de enfrentamento da questão social do lixo, desde a geração dos resíduos até o destino final, potencializando o trabalho dos catadores. Apesar de o modelo de gestão de resíduos sólidos de Novo Hamburgo estar ainda em construção, nesses seis anos ele comprovou ser possível realizar um trabalho efetivo, capaz de romper com a lógica de trabalho setorial e fragmentado. Um documento do MMA sobre o Catavida ressalta os aspectos multiprofissional, intersetorial e interdisciplinar da iniciativa como características fundamentais que asseguraram os resultados exitosos e transformaram a atividade em exemplo para outros municípios. Não é à toa que o projeto recebeu vários prêmios, como o Selo Cidade Cidadã 2011, da Câmara dos Deputados; o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2011; o 10º Prêmio Gestor Público 2011 do Sindifisco; o Prêmio Boas Práticas em Sustentabilidade Ambiental Urbana 2012, da Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente; o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2013; o Prêmio Objetivos do Milênio, da Secretaria da Presidência da República e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em maio de 2014. “Talvez tenha sido essa ideia de intercâmbio com outra Prefeitura que valeu o Prêmio ODM Brasil. Não é algo comum uma Prefeitura aproveitar uma experiência de outra. Aliás, um dos grandes problemas que temos com essas políticas públicas é que, às vezes, há certa rivalidade entre os municípios, principalmente entre os que são muito próximos. Mas não foi o que aconteceu nesse caso”, comenta Albino Rodrigues Alvarez, da Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação, Regulação e Infraestrutura (Diset), do Ipea. CONSÓRCIOS INTERMUNICIPAIS Na avaliação do técnico do Ipea, esse conjunto de ações administrativas e a parceria com a Prefeitura do município vizinho contêm o embrião do Plano Nacional de Resíduos Sólidos que prevê a formação de consórcios intermunicipais para a gestão de resíduos, prática que não tem se disseminado com a força necessária e enfrenta problemas para a sua expansão, dentre vários outros motivos, pelas grandes distâncias entre os municípios e pelas rivalidades político‑partidárias entre gestores públicos de Prefeituras vizinhas. “Novo Hamburgo e Campo Bom mostraram que é possível. A Prefeitura de Novo Hamburgo estabeleceu contato com a Coolabore e organizaram uma experiência vitoriosa da coleta com a expertise, o conhecimento e a experiência do pessoal de Campo Bom. E assim houve uma aproximação entre as secretarias de governo de Novo Hamburgo e a cooperativa de catadores de Campo Bom. Isso deu início ao processo. Esse foi o segredo que levou à instalação desse modelo de coleta e ao prêmio”, assegura Albino Alvarez. Ele visitou o Catavida em 2013, juntamente com o também técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea Sandro Pereira Silva, após o programa ser indicado como uma das iniciativas do Rio Grande do Sul para receber o Prêmio ODM Brasil. Albino Alvarez afirma que esse tipo de experiência vale para quase todo o país. “É assim mesmo: começa pequeno, pelo centro da cidade, depois outro bairro e assim por diante. Quando estivemos lá, já havia 80 catadores. Esse processo de adesão é gradual porque, no primeiro contato, em geral, o catador tem certa resistência a fazer parte desse tipo de cooperativa, pois implica para ele certa organização, disciplina de trabalho e, entre outras coisas, uma disciplina até no momento de receber a remuneração a que, às vezes, o catador de rua não está acostumado”. Divulgação
A maioria de catadores é de
PAPEL FEMININO O técnico do Ipea destaca o papel feminino na constituição das cooperativas. “É importante porque, em geral, começa com as mulheres. Elas são mais receptivas a essa novidade porque, normalmente, significa uma melhoria nas condições de trabalho, uma diminuição da violência do processo. A maioria, portanto, é de mulher e, em razão disso, há uma divisão de trabalho bastante nítida: na esteira de separação trabalham as mulheres; muito aos poucos é que os homens vão começando a trabalhar nessa função de separar o lixo. Eles começam, normalmente, na parte mais pesada, a de enfardar o material, transportar, carregar e descarregar caminhão”, explica Alvarez. Em 2014 já se percebiam os resultados positivos. “A renda em relação ao pessoal que trabalhava na cooperativa anterior, envolvida com sérias irregularidades, aumentou bastante. Antes, os poucos catadores recebiam em torno de R$ 300 e, com a nova cooperativa, passaram para R$ 1.500 por mês. Além da cooperativa, o Catavida desenvolveu várias ações de educação ambiental, estabeleceu parcerias com órgãos do governo, escolas públicas e privadas, com a rede empresarial e bancos para realizar uma triagem nos próprios locais, uma separação dos resíduos já na origem, a fim de facilitar o trabalho dos catadores”, comenta Sandro Pereira Silva. Técnico de Planejamento e Pesquisa da Coordenação de Mercado de Trabalho, na Diretoria de Política Social, Silva focou sua visita ao Catavida na verificação das condições de trabalho e geração de renda. “O que me chamou atenção, positivamente, foi o fato de que tinha uma cooperativa em outra cidade e que a de Novo Hamburgo era só de fachada, na qual havia um dono e poucas pessoas trabalhando numa central de triagem e uma renda muito baixa. Era uma pessoa que intermediava os contratos com a Prefeitura e existia desvio de recursos financeiros. O potencial da cooperativa estava totalmente comprometido”, lembra. A superação dessa dificuldade foi uma das razões que o convenceram de que a Prefeitura de Novo Hamburgo merecia o Prêmio ODM Brasil. “Um pouco antes, em 2010, o governo federal, no último ano da gestão do ex‑presidente Lula, aprovou a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Essa lei trouxe uma inovação grande porque permitiu às Prefeituras desenvolverem grupos de catadores em cooperativas ou associações nos programas em que se faz gestão de resíduos sólidos”, afirma. Como esse tipo de serviço é de responsabilidade do Estado, Silva considera importante haver projetos inovadores nos municípios que sirvam de modelo para produzir outros projetos e sejam replicados em outros municípios para possibilitar melhorias em termos de gestão de resíduos sólidos. “Em Novo Hamburgo, uma cidade com mais de 250 mil habitantes, ou seja, relativamente grande e muito urbana, situada na Região Metropolitana de Porto Alegre, os impactos foram positivos, comprovados em números na época em que fomos lá, em 2013”, lembra.
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