Perfil - O criador da Escola Nova |
2015 . Ano 12 . Edição 86 - 28/03/2016
Para o educador, apenas o sistema público seria capaz de vencer os desafios de uma educação assimétrica e desigual. Sua influência se estendeu por décadas e teve oposição aberta dos empresários da educação e das ordens religiosas cristãs, que viam a educação como negócio Daniel Cara Anísio Teixeira foi um homem incansável. O baiano, nascido na pequena Caetité, figura entre os principais pensadores brasileiros das ciências humanas. Nas políticas públicas educacionais e na teoria pedagógica produzida no Brasil, sua influência só pode ser comparada à do pernambucano Paulo Freire, que chegou a ganhar o mundo como nenhum outro. Nascido em 12 de julho de 1900, filho de Deocleciano Pires Teixeira e de Anna de Souza Spínola, Anísio é fruto de um casamento entre oligarcas. O pai era fazendeiro, médico e líder político local. A mãe era membro da família Spínola, com marcante influência em toda região sertaneja da Bahia. O rico anedotário político baiano conta que os Spínola eram tão “fortes” que o “hábil e sábio” Deocleciano se casou com três irmãs, sucessivamente. Com todas elas teve filhos. Anna, mãe de Anísio Teixeira, era a mais nova. E até seu rebento despontar como uma referência em administração pública e educação, os Spínola já contavam com alguns expoentes, como o abolicionista Aristides de Souza Spínola e o magistrado Joaquim Spínola. O HOMEM PÚBLICO Anísio Teixeira estudou em colégios jesuítas até iniciar o curso de Direito no Rio de Janeiro. Formado em 1922, já em 1924 iniciou sua carreira como administrador público, tornando‑se inspetor‑geral de Ensino da Bahia aos 24 anos, cargo equivalente ao do secretário de Estado da Educação nos dias de hoje. Graças à industrialização e à urbanização, as décadas de 1920 e 1930 foram efervescentes nas artes e nas ciências. O debate pedagógico mundial não fugia à regra: era intenso e consistente. Preocupado em atualizar o Brasil frente ao que se discutia e se praticava ao redor do mundo, Anísio Teixeira realizou viagens para a Europa, a partir de 1925. Visitou e estudou os sistemas de ensino da Espanha, Bélgica, Itália e França. Em 1927 foi para os Estados Unidos da América, onde conheceu o trabalho de John Dewey, filósofo e pedagogo que mais influenciou seu pensamento. O primeiro revés às ideias progressistas de Anísio Teixeira ocorreu em 1928. Naquele ano, ele se desentende com seus colegas no governo da Bahia. Setores da Igreja Católica e o conservadorismo político dominante pressionavam as autoridades baianas a vetar as políticas empreendidas por Teixeira, destinadas à democratização do ensino e à laicidade da educação. O pedido de demissão da Inspetoria de Ensino representa um divisor de águas na carreira de Anísio Teixeira. É nesse momento em que o administrador público abre espaço para o pensador. Anísio ingressa na Universidade Columbia, em Nova York, onde obtém título de mestre pelo Teachers College e firma de vez seus fortes e perenes laços intelectuais com John Dewey. No retorno ao Brasil, em 1931, estabelece residência no Rio de Janeiro. Lá ocupa a Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal. O educador procura estabelecer uma ponte para aproximar o ensino fundamental e a universidade, criando a rede municipal de educação carioca – ainda hoje uma das mais vigorosas do Brasil. Com reconhecimento nacional ascendente, Anísio Teixeira foi capaz de articular um grupo de intelectuais brasileiros com o objetivo de fazer da educação uma alavanca para remodelar o país. MANIFESTO DA ESCOLA NOVA Ele e seus colegas defendiam que apenas um sistema estatal de ensino, pautado pela liberdade e por uma pedagogia laica e contemporânea, daria as bases para a superação das desigualdades sociais brasileiras. Chamado de Escola Nova, esse movimento ganhou gradativamente força até se materializar em 1932, a partir do Manifesto da Escola Nova, também conhecido como o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”. Além de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo (1894‑1974), Lourenço Filho (1897‑1970) e a poeta Cecília Meireles (1901‑1964) eram alguns dos 26 intelectuais que assinaram o documento. Eles pregavam a universalização da escola pública, laica e gratuita. A atuação dos chamados “pioneiros da educação nova” se estendeu por décadas, não sem sofrer ataques dos empresários da educação da época e das ordens religiosas cristãs, que lucravam com a instrução. Entre tantos legados, sob a liderança de Anísio Teixeira, a Escola Nova formou uma nova geração de militantes da educação, com destaque para Florestan Fernandes (1920‑1995) e Darcy Ribeiro (1922‑1997), dois defensores incondicionais da educação pública, gratuita e laica – em que pese a atuação do segundo na relatoria da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em vigor desde 1996. Contudo, mesmo diante da proeminência, nem tudo eram flores para Anísio Teixeira. A criação da Universidade do Distrito Federal, em 1935, e o recrudescimento de suas críticas ao Estado Novo resultaram em um segundo revés. O Rio de Janeiro, então Distrito Federal, não estava preparado para ter uma universidade verdadeiramente aberta, pautada na ideia de que a educação é uma constante reconstrução da experiência. Assim, no mesmo ano em que funda a Universidade do Rio de Janeiro, um dos adversários mais elaborados do varguismo volta para sua Caetité, onde viveu até 1945. Foi uma espécie de exílio da administração pública, mas jamais da educação. Além de se dedicar à exploração e exportação de minérios, Anísio Teixeira aproveitou o período para estudar e solidificar algumas amizades, como o forte vínculo que estabeleceu com Monteiro Lobato. Em comunicação com o amigo, Lobato vaticinou: “[Anísio] só você tem a inteligência bastante aguda para ver dentro do cipoal de coisas engolidas e não digeridas por nossos pedagogos reformadores.” Em um exercício arqueológico, dedicado a analisar com os olhos do presente a herança do passado, é triste observar que a pedagogia brasileira permanece sendo uma das ciências humanas em que poucos possuem capacidade de digestão teórica. E é menor ainda o conjunto daqueles que possuem, pelo menos, alguma capacidade de proposição. FAZENDO ESCOLA Findos o exílio e as aventuras no mercado de minérios, Anísio Teixeira assumiu o cargo de conselheiro geral da UNESCO em 1946. No ano seguinte, foi convidado a retornar ao cargo de secretário da Educação da Bahia, posição que voltava a ocupar após 19 anos de sua saída da Inspetoria de Ensino. Empossado, mais arejado e experiente, criou a Escola Parque, em Salvador, no (já!) vulnerável bairro da Liberdade. Como experiência de política pública, a Escola Parque é a inspiração de diversos espaços educacionais contemporâneos, como os Cieps brizolistas da década de 1980, os CIACs do governo Collor (1990) e os CEUs paulistanos, inaugurados por Marta Suplicy no início dos anos 2000. Nomeada oficialmente como Instituto Educacional Carneiro Ribeiro, a Escola Parque instituiu a educação integral de forma nuclear, promovendo, em um mesmo local, diversos direitos de crianças soteropolitanas em situação de vulnerabilidade. Além de uma pedagogia inovadora no contexto brasileiro, a Escola Parque ofertava várias possibilidades de acesso à arte, educação física, oficinas culturais, etc. Com uma sensibilidade rara para a época, o equipamento abrigava crianças que não tinham onde morar, tornando possível a vivência de fato com a escola. Além de ser uma referência para políticas públicas atuais, o projeto influenciou instituições de ensino em tempo integral em todo mundo, superando as fronteiras do Brasil. Por seu pioneirismo – e graças à articulação internacional de seu idealizador –, a Escola Parque recebeu financiamento da UNESCO, tornando‑se um dos primeiros exemplos de políticas públicas cunhadas no país a ganhar reconhecimento global. Em 1951, Anísio Teixeira assumiu a função de secretário-geral da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), tornando‑se, no ano seguinte, diretor do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos) – órgão que desde o governo FHC recebe seu nome, o que é motivo de orgulho para os servidores da autarquia. Como militante, no final da década de 1950, Anísio Teixeira participou dos debates para a implantação da Lei Nacional de Diretrizes e Bases. Foi um incondicional defensor da educação pública. Anos depois, ao lado de Darcy Ribeiro, funda a Universidade de Brasília, da qual tornou‑se reitor em 1963. Próximo de sua morte, Darcy lamentava a situação em que se encontrava a UnB, anos-luz distante dos planos traçados por ele e por seu mestre e amigo. OPOSITOR DA DITADURA Em 1964, com o golpe militar, Anísio Teixeira afastou‑se da reitoria. Partiu para os Estados Unidos, onde lecionou nas Universidades de Colúmbia e da Califórnia. De volta ao Brasil, em 1966, aceitou colocar-se como colaborador e consultor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Relatos de colegas e amigos apontam sua tristeza e contrariedade com o regime militar. Anísio Teixeira morreu em 11 de março de 1971, em circunstâncias suspeitas. Seu corpo foi achado em um elevador em um prédio na Avenida Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Apesar do laudo de morte acidental (o elevador estaria quebrado), há fortes suspeitas de que o pensador e militante da educação tenha sido mais uma das tantas vítimas do governo do ditador general Emílio Garrastazu Médici. A PEDAGOGIA PROGRESSIVA Toda obra de Anísio Teixeira começa com uma observação. Ela pode ser elaborada de diversas formas, mas a mensagem é – inexoravelmente – a mesma: Anísio Teixeira era um homem à frente de seu tempo. A última edição de seu livro Educação para a democracia: introdução à administração educacional, lançado pela UFRJ, é exemplar. O editor inicia a “Nota da Coleção” explicando: “muitos dos problemas apresentados pelo autor [Anísio Teixeira] permanecem na agenda de discussões e na pauta de reivindicações das políticas públicas de educação em nosso país”. Figurando entre os mais elaborados tributários do liberalismo igualitarista de John Dewey, Anísio Teixeira defendia uma educação em que a escola deveria ser para todos, com a missão de educar em lugar de apenas instruir. Deveria se dedicar a formar homens livres, em vez de homens dóceis – como ele gostava de anotar. Precisava preparar cada estudante para um futuro incerto, em um mundo dinâmico. Não poderia parar na transmissão de um passado meramente cronológico – como ainda é prática na maioria dos estabelecimentos de ensino e livros didáticos. Anísio Teixeira era obsessivo: a missão do ensino só pode ser o desenvolvimento da inteligência, da tolerância e da felicidade. E era para dar conta disso que se fazia necessário reformar a escola e o sistema público de ensino. MODO DE AGIR A memorização, ainda tão em voga, deveria ser substituída pela compreensão e a expressão do que fora ensinado. Mas não só: para Anísio Teixeira, o estudante precisava conquistar “um modo de agir”. Para ele, só aprendemos algo quando assimilamos aquilo de tal forma que, quando chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com o aprendizado, orientados por ele, mas sabendo contextualizá‑lo. Para o educador pioneiro, a educação não ensina apenas ideias, conteúdos ou fatos cronológicos, mas também atitudes, ideais e – principalmente – o senso crítico. Para isso, a escola deve dispor de condições para realizar essa pedagogia, denominada de “progressiva”. Ao sistematizar e propor uma psicologia outra da aprendizagem, Anísio Teixeira obriga a escola a se transformar em um lugar onde se vive. Ou seja, é preciso experimentar, viver, e não apenas se preparar para a vida. Em consonância com o pensamento de Vygotsky, para ele o estudante só aprende o que quer aprender. Portanto, o interesse do aluno deve orientar tanto o trabalho do educador como o que ele vai aprender. Assim, ele deve participar na escolha de suas atividades escolares. PROJETO DOS ALUNOS Por tudo isso, na escola progressiva, proposta por Anísio Teixeira, as matérias escolares se submetem a uma atividade escolhida e projetada pelos alunos, fornecendo a eles formas de desenvolver sua personalidade no meio em que vivem. O estudo passa a ser um exercício para a resolução de um problema ou a execução de um projeto. Educar significa, assim, guiar o aluno em uma atividade, em uma trajetória de elaboração de saberes e experiências. Os estudos da pedagogia moderna e da didática, além da melhor pesquisa em neurociência, demonstram claramente a força científica das propostas de Anísio Teixeira. Suas ideias, recentemente, inspiraram a proposição de um mecanismo que busca universalizar equipamentos educacionais capazes de ofertar educação de qualidade. O nome do instrumento é Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi1), criado e desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação desde 2002. Segundo o Plano Nacional de Educação 2014‑2024, o CAQi deve começar a ser implementado até junho de 2016. Analisando a trajetória de Anísio Teixeira, seus feitos na administração pública e sua densa proposição pedagógica, a pergunta que fica é: Anísio Teixeira foi um homem à frente de seu tempo? Não há dúvida. Contudo, o Brasil, em matéria de direitos sociais, também está muito aquém de suas possibilidades e de seus compromissos constitucionais.
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