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A guerra que orgulha a Bahia

2015 . Ano 12 . Edição 85 - 20/01/2016

Pouco conhecida dos brasileiros, a luta para livrar o país de Portugal deixou um legado de heróis para enriquecer o Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília

Liliana Peixinho

Os livros didáticos situam o dia 7 de setembro de 1822 como marco da Independência do Brasil, quando Dom Pedro I desembainhou sua espada, às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, para cortar o cordão umbilical que ligava o país à Corte lusitana. Como se tudo tivesse ocorrido de forma pacífica. A verdade, contudo, é que a separação de Portugal foi um processo histórico doloroso, marcado por revoltas e por uma guerra só encerrada no dia 2 de julho de 1823, quando foram expulsas do país as tropas portuguesas que haviam se aglutinado em Salvador para resistir às pretensões separatistas da Colônia.

Poucos brasileiros compreendem a importância que os baianos dão ao dia 2 de julho. É preciso voltar no tempo para descortinar os acontecimentos da época e colocar em seu devido lugar a importância da participação do povo no processo que consolidaria o país como nação e que daria início à construção de nossa nacionalidade. Sob este aspecto, pode‑se dizer que uma parte da história de nossa Independência, à margem da vida e das decisões palacianas, foi escrita com sangue, suor e lágrimas. E não faltaram mártires e heróis naqueles episódios.

CLIMA DE ÓDIO

A situação na Bahia era explosiva havia algum tempo. Duas décadas antes do Grito do Ipiranga, os baianos viveram um espisódio traumático. Intelectuais, pequenos comerciantes, escravos e ex‑escravos articulavam uma insurreição contra o jugo de Portugal. O movimento, conhecido como a Conjuração Baiana, ou Revolta dos Alfaiates, foi abortado e várias pessoas acabaram presas, algumas delas expulsas do país. A mando do governador da província, militares portugueses enforcaram, na Praça da Piedade, em Salvador, os revoltosos Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de Deus e Luís Gonzaga, todos negros. A repressão violenta deixou uma ferida que se abriria anos depois.

Diferentemente do que aconteceu em São Paulo, Rio e Minas, a Proclamação da Independência não produziu efeitos imediatos em províncias como a Cisplatina (atual Uruguai), Maranhão, Grão‑Pará e Bahia. Ao contrário, a opressão dos militares portugueses aumentou e foi preciso lutar para expulsá‑los do país. “Na Bahia, uma classe mercantil pujante conseguiu manter, em grande parte às suas expensas, tropas portuguesas fiéis ao governo de Lisboa. Para isso se fez uma guerra que, ao final, incorporou a Cidade da Bahia ao Império Brasileiro”, conta o professor Sérgio Armando Guerra Filho, mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBa) e autor da dissertação O povo e a guerra: participação popular nas lutas pela Independência na Bahia (1822‑23).

De fato, grandes comerciantes, quase todos lusitanos, e latifundiários brasileiros donos de extensas terras na província baiana, onde produziam açúcar e tabaco à custa do trabalho escravo, temiam os movimentos emancipacionistas, que àquela altura defendiam ideias progressistas, como a autonomia política do Brasil, a implantação da República, o fim da escravidão e a abolição dos privilégios sociais. O clima era de ódio na província. Populares em bandos atacavam os militares portugueses a pedradas em locais como a Baixa dos Sapateiros. Estes revidavam quebrando vidraças e lanternas nas ruas, conta o escritor Laurentino Gomes, autor dos livros 1808, 1822 e 1889.


Laurentino Gomes, escritor

Com a decisão de Dom Pedro de ficar no Brasil, em desafio às determinações das Cortes, Portugal passou a concentrar seus esforços militares em Salvador. Ao menos 2.500 homens vieram da Metrópole reforçar os contingentes da Bahia, aos quais se juntaram integrantes da Divisão Auxiliadora, que haviam sido expulsos pelo príncipe regente do Rio de Janeiro. A Metrópole pensava em dividir o Brasil em dois: Sul e Sudeste ficariam sob o governo de Dom Pedro; Norte e Nordeste sob o domínio português. Além disso, Portugal alimentava a ideia de que, dominada a Bahia, suas tropas poderiam atacar o Rio e sufocar de vez as pretensões separatistas, esclarece o escritor Laurentino Gomes, especializado em História. “A resistência baiana decidiu a unidade nacional”, acrescenta o historiador Tobias Monteiro.

MADEIRA DE MELO

Enquanto a Corte, no Rio, preparava a instalação da Assembleia Legislativa e Constituinte do Império, a fim de dar ao país um arcabouço jurídico‑institucional, chegava a Salvador, no navio Danúbio, enviado por Portugal, o brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, nomeado novo comandante das Armas da Bahia. Os ânimos se acirraram entre os nativos e os portugueses. Militares brasileiros do Regimento de Artilharia se aquartelaram no Forte de São Pedro e elevaram o coronel Manoel Pedro Freitas Guimarães à patente de general, aclamando‑o comandante das Armas da Bahia.

Irritado com a insubordinação, Madeira de Melo bombardeou o quartel rebelde e os militares brasileiros, em minoria e com pouca munição, se viram forçados a fugir para organizar a resistência no interior. Salvador virou uma praça de guerra, com confrontos violentos nas Mercês, na Praça da Piedade e no Campo da Pólvora. O caos se estabeleceu na cidade. Tumultos, saques e quebra‑quebras obrigaram moradores a abandonar a capital com as famílias. “Em poucos dias, as vilas e fazendas do Recôncavo se transformaram em imensos campos de refugiados brasileiros. O restante da Bahia aderiu em peso à Independência do Brasil, formando um cinturão de isolamento aos portugueses encastelados em Salvador”, relata o escritor Laurentino Gomes.

Soldados e marinheiros portugueses, embriagados, festejavam a ocupação da cidade praticando arbitrariedades e excessos. A pretexto de perseguir “revoltosos”, atacavam casas particulares. Em 19 de fevereiro de 1823, invadiram o Convento da Lapa atrás de soldados brasileiros. Ao tentar impedi‑los de entrar, a soror Joana Angélica, 60 anos, foi morta a golpes de baioneta, transformando‑se na grande mártir da guerra pela independência na Bahia. No convento, os invasores só encontraram o velho capelão Daniel da Silva Lisboa, que abateram a coronhadas. “Um mito recorrente sobre a Independência do Brasil diz respeito ao caráter pacífico da ruptura com Portugal. Por essa visão, tudo teria se resumido a uma negociação entre o rei D. João VI e seu filho D. Pedro, com algumas escaramuças isoladas e praticamente sem vítimas. É um erro. A guerra foi longa e desgastante. Durou 21 meses, entre fevereiro de 1822 e novembro do ano seguinte. Nesse período, milhares de pessoas perderam a vida em roças, morros, mares e nos rios em que se travou o conflito”, conta Laurentino Gomes, no livro 1822.

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A morte de Joana Angélica comoveu os baianos, que deixavam em massa a capital rumo ao interior da província. Cachoeira passou a atrair retirantes de Salvador e de municípios como Santo Amaro da Purificação e se transformou no centro da resistência aos portugueses. Na cidade, um ato público que declarava lealdade a D.Pedro foi interrompido a tiros por uma escuna portuguesa que subia o rio Paraguaçu, em cujas margens se situa a cidade. Revoltada, a população atacou a embarcação.

O conflito durou três dias, ao fim dos quais foi criada uma junta para defender a cidade. Várias pessoas perderam a vida, mas Cachoeira resistiu ao ataque. A euforia, contudo, logo deu lugar à preocupação. “Os soldados estavam descalços, famintos e com soldos atrasados. Muitos morriam de tifo e impaludismo, febres endêmicas no Recôncavo. Faltavam médicos, enfermeiros, remédios e hospitais. As armas eram fabricadas de forma improvisada pelos próprios oficiais e soldados”, conta o escritor.

QUITÉRIA

“Vossa Mercê acabará na forca”. A advertência foi feita por Braz Baltazar da Silveira ao amigo João Antônio da Silva Castro, sertanejo que se radicara em São Félix, onde instalara uma oficina de cartuchame para uso das tropas da revolução que se anunciava. Em vão. João Antônio estava decidido a ir à guerra. Enquanto chegavam reforços de Portugal e Dom Pedro I contratava oficiais estrangeiros para ajudar a expulsar os portugueses, o sertanejo chegava a Cachoeira com homens e farta munição. João Antônio, avô do poeta Castro Alves, montou por conta própria o Batalhão Voluntários do Príncipe, que ficaria conhecido como Batalhão dos Periquitos por causa do uniforme, que tinha colarinhos e punhos verdes.

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O corneteiro Lopes ganhou estátua em Ipanema, no Rio:
toque errado fez os portugueses abandonarem a batalha

O batalhão do comandante Periquitão faria história. Em visita ao acampamento dos soldados dele, o fazendeiro Gonçalo Alves de Almeida reconhece, uniformizada no meio da tropa, sua filha Maria Quitéria. Inflamada pelo ideal da independência, Quitéria cortara o cabelo bem curto, vestira as roupas do cunhado, José de Medeiros, e se alistara disfarçada de homem com os documentos do marido da irmã. Ela era o “soldado Medeiros”, respeitado pelos colegas pela bravura nos combates.

Gonçalo tenta levar a filha para casa, mas João Antônio não deixa. Quitéria se destacaria em combates como o da Ilha da Maré, da Barra do Paraguaçu, de Pirajá, Pituba e Itapuã. Quando o Batalhão dos Periquitos entrou na capital, em 2 de julho de 1823, foi aclamada pelo povo. Exemplo de coragem, recebeu a patente de cadete em 1823 do coronel Labatut e a medalha Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul das mãos do próprio Dom Pedro, em solenidade para a qual ganhou um uniforme especialmente feito para ela, com um saiote sobre a calça. De volta à Bahia, levou carta ao pai escrita pelo Imperador pedindo que a perdoasse pela desobediência.

Primeira mulher militar brasileira, Quitéria se tornou patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Em 1953, aos cem anos de sua morte, o governo brasileiro decretou que o retrato dela fosse inaugurado em todas as repartições, estabelecimentos e unidades do Exército do Brasil.

PIRAJÁ

A chegada do general francês Pierre Labatut e do almirante inglês Thomas Cochrane havia dado organização às tropas brasileiras e eliminado a supremacia marítima portuguesa. O bloqueio a Salvador se intensifica, os preços disparam e a fome assola a capital. O escritor Laurentino Gomes conta que uma galinha viva, avaliada em 880 réis no Rio, era vendida por 4.800 réis em Salvador. “Nossas privações vão crescendo, porque não entra para a cidade gênero algum de primeira necessidade”, reclamava, em carta a D. João VI, o general Madeira de Melo.

Marco da luta pela independência na Bahia, a Batalha de Pirajá é considerada “o maior embate militar das Américas” pelo historiador Cid Teixeira. O confronto, decisivo para o desfecho da guerra, contou com uma grande participação de negros, caboclos e índios, que se infiltravam à noite pela floresta e ao amanhecer se levantavam com flechas para atacar os portugueses.

“Teve muito corpo a corpo, muita gente morrendo por arma branca na Batalha de Pirajá, por baioneta, que era a grande arma. Isso aconteceu demais. Eles dispunham de arcabuz, bacamarte... Não era o fuzil de ferrolho. Isso não existia. Era arma de carregar pela boca, de tiro lento. Era disso que se dispunha. Inclusive teve militares de nacionalidade portuguesa, mas que já haviam se integrado no contexto da vida social, no desejo da independência do Brasil. E o grande exemplo é o corneteiro Lopes”, disse o historiador Cid Teixeira em documentário sobre o filme institucional do 2 de julho, feito pelo cineasta Lázaro Faria.

De fato, o corneteiro Luís Lopes protagonizou um episódio lendário na Batalha de Pirajá. Segundo o historiador Tobias Barreto, em seu livro A elaboração da Independência, Lopes teria recebido do major Barros Falcão, que comandava as tropas brasileiras, a ordem de soar o toque de retirada, já que a batalha estava perdida, mas, por engano, soou o “avançar cavalaria”, o que teria feito os portugueses fugirem, assustados com a perspectiva da chegada de um regimento de cavalaria brasileiro que não existia. “A façanha, boa demais para ser verdade, nunca foi comprovada”, observa Laurentino Gomes. O que não impediu o corneteiro Lopes de ganhar uma estátua em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Madeira de Melo também tentou romper o cerco a Salvador atacando Itaparica, mas encontrou resistência de soldados que haviam chegado de Alagoas e de um grupo de mulheres lideradas por Maria Felipa de Oliveira, uma negra marisqueira que se engajara na luta contra os portugueses desde que as notícias do Grito do Ipiranga chegaram à Bahia. Várias embarcações lusitanas foram incendiadas por aquelas mulheres, entre elas a Canhoneira Dez de Fevereiro, na praia de Manguinhos, e a Barca Constituição, na praia do Convento. Armadas de peixeiras e galhos de cansanção, elas surravam os portugueses que ousavam desembarcar na ilha para, depois, atear fogo aos barcos usando tochas de palha de coco e chumbo.

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Baianos comemoram, nas ruas, o 2 de julho: participação dos
índios na guerra é sempre lembrada pelo povo

“Apesar da historiografia da Independência não trazer muitos registros sobre isso, uma guerra das proporções da que ocorreu aqui na Bahia não poderia ser feita sem a participação das mulheres. Muitas delas se dedicaram a atividades de apoio às tropas. Mas houve muitos casos em que as mulheres lutaram corpo a corpo, como no caso da batalha de Itaparica, quando um grupo de mulheres impediu o desembarque de portugueses”, conta o historiador baiano Luís Henrique Dias Tavares, em seu livro Independência do Brasil na Bahia.

A FUGA

Sem suprimentos e abatido pelo fracasso das investidas de Pirajá e de Itaparica, Madeira de Melo deixa Salvador, na madrugada de 2 de julho de 1823, à frente de uma frota de 78 embarcações. Escoltados por 13 navios de guerra, 4.500 militares portugueses singram os mares em direção a Portugal, perseguidos por uma força naval comandada por João Francisco de Oliveira, o João das Botas. Na manhã do mesmo dia, entra em Salvador o exército brasileiro, com 8.700 homens, acompanhados por mais de mil mulheres que os ajudaram nos combates e em serviços de enfermagem e cozinha, oficializando a libertação da Bahia e sua adesão ao Império Brasileiro.

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Reverenciada no Curuzu e na Liberdade, bairros negros de Salvador, Maria Felipa deu nome a uma instituição de defesa dos negros e de pesquisas sobre a raça. João das Botas, que organizou e liderou uma flotilha de barcos pesqueiros com a qual combateu os portugueses, ganhou a patente de tenente durante a guerra e hoje é um dos heróis da Marinha brasileira. Felipa e João, juntamente com Maria Quitéria e Joana Angélica, terão seus nomes incluídos no Livro dos heróis e das heroínas da Pátria, guardado no Panteão Tancredo Neves, em Brasília, conforme projeto aprovado em caráter terminativo pelo Senado, em março deste ano. O 2 de julho, desde 2013, integra o calendário das efemérides nacionais, graças a um projeto assinado pela presidenta Dilma Rousseff.

“A Bahia saiu muito pobre da guerra, pois durante longo período ficou sem possibilidades de continuar o seu comércio, enquanto gastava recursos para formar tropas e apoiar o exército que chegaria, finalmente, do Rio de Janeiro”, comenta o historiador Luís Henrique Dias Tavares. Em compensação, a guerra até hoje é motivo de orgulho para os baianos. Todos os anos, no dia 2 julho o povo sai às ruas em uma festa que só perde para o Carnaval em participação popular, reproduzindo, nos cortejos, o Caboclo e a Cabocla matando a cobra, símbolos da vitória nativa sobre a opressão colonial

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