2010 . Ano 7 . Edição 63 - 19/11/2010
Por Marina Nery e Marcelo Flaeschen - do Rio de Janeiro
Assim como outras comunidades do Rio de Janeiro e do Brasil, o Complexo do Alemão é uma área que não foi planejada e alcançou altos níveis de violência. Os técnicos do Ipea foram a campo e subiram morros do Alemão para realizar uma pesquisa que busca radiografar os impactos de intervenções urbanísticas no Complexo, gerando um modelo para ser utilizado na avaliação de outros assentamentos precários
Retirar o Complexo do Alemão das páginas policiais, e incluí-lo nos exemplos de práticas de intervenção sócio-urbanísticas para áreas de assentamento precário. Este é um desejo antigo de moradores, governantes, líderes comunitários e da própria população carioca: aproximar o morro do "asfalto", e levar infraestrutura urbana, gerando oportunidades e melhor qualidade de vida para os moradores do local. Para tanto, são necessárias não só obras de intervenção urbana, que estão sendo feitas no morro, mas uma avaliação precisa do impacto destas na comunidade, para que este tipo de intervenção possa ser bem avaliada, e reproduzida em áreas com características semelhantes.
UMA "FEDERAÇÃO" DE FAVELAS O Complexo do Alemão é um conjunto de 12 favelas, construídas sobre a Serra da Misericórdia, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Morro da Baiana, Morro do Alemão, Itararé/Alvorada, Morro do Adeus, Morro da Esperança, Morro dos Mineiros, Nova Brasília, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Reservatório de Ramos e Casinhas fazem parte do Complexo, assim chamado devido à grande quantidade de favelas ali concentradas.
Quando foi reconhecido oficialmente como bairro, em 1993, envolvia uma área de 186 hectares, ocupados por 56 mil pessoas, com densidade de 302 habitantes por hectare, seis vezes superior à densidade média do município do Rio de Janeiro, de 49 habitantes por hectare, segundo o Instituto
Pereira Passos. Dados do Censo das Favelas (2008/2009), realizado pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do Estado do Rio de Janeiro (EGP-Rio), estimam que a população do Complexo do Alemão supere as 85 mil pessoas.
Conhecida hoje devido à violência de seus conflitos, a história das favelas da região começa no início do século XX. A primeira que surgiu foi a Grota (ou Joaquim de Queiróz), em 1928. A região recebeu o nome atual em alusão às características físicas do proprietário de parte das terras, Leonard Kaczmarkiewicz, que na década de 1950 dividiu o terreno em lotes, dando início à ocupação do morro. Uma curiosidade: Kaczmarkiewicz não era alemão, mas sim polonês.
A maior parte das favelas do Complexo tem origem similar: loteamentos irregulares. "O Complexo do Alemão é um bairro segregado, tanto do ponto de vista das estruturas físicas como das características sócioeconômicas de seus moradores. Os equipamentos e bens públicos existem de maneira precária e insuficiente. Por outro lado, a ocupação do solo aconteceu de forma espontânea e não planejada, fruto da ausência do Estado na região, sem a preocupação em deixar espaços não construídos para calçadas e ruas suficientemente largas para facilitar a circulação", afirma o relatório inicial da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre a Intervenção Sóciourbanística do Complexo do Alemão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, assinado por Alexandre Manoel da Silva, Cleandro Krause, João Carlos Magalhães, Maria da Piedade Morais, Maria Martha Cassiolato, Roberta Vieira, Rute Imanishi e Vanessa Nadalin, técnicos em planejamento e pesquisa do Ipea.
Em consequência da precariedade das infraestruturas e da ocupação do solo não planejada, a população residente no Alemão está exposta aos vários riscos sociais e ambientais, como a possibilidade de deslizamento e alagamento de suas casas. Outro agravante é o tratamento inadequado do lixo e do esgoto, que resulta em ambiente propício à proliferação de doenças de veiculação hídrica, assim como a falta de ventilação e iluminação das moradias, que pode aumentar a incidência de doenças respiratórias. Por outro lado, o crescimento urbano espontâneo e não planejado, ressaltado pelo fato de se tratar de áreas de alta declividade, levou à dificuldade de acesso e à redução da mobilidade.
Como evidência dessa situação desfavorável, o índice de desenvolvimento social (IDS) calculado para o Complexo é 0,474, deixando-o na 149o posição dentre os 158 bairros cariocas. Este é um indicador que abrange as dimensões: acesso a saneamento básico, qualidade habitacional, grau de escolaridade e disponibilidade de renda. "Em relação às condições de saúde, a esperança de vida no Complexo é de 65 anos, enquanto a média para a cidade do Rio de Janeiro é de 72 anos", constata o relatório.
INTERVENÇÃO E OBRAS A Intervenção Sócio- Urbanística do Complexo do Alemão, em andamento, tem como executores o governo do estado do Rio de Janeiro e a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, que firmaram contratos de repasse com o governo federal, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os recursos são repassados pela Caixa Econômica Federal (Caixa) e, acrescidos das contrapartidas de ambos os executores, chegam a um total de R$ 827.721.089,17. Estão em construção um teleférico, uma biblioteca, duas escolas, uma unidade médica de pronto atendimento, um centro de artes cênicas, e novas unidades habitacionais para os moradores realocados, dentre outras ações do projeto.
Para resolver parte das dificuldades de mobilidade, está sendo construído um sistema teleférico, inspirado em uma experiência bem-sucedida de intervenção urbanística em Medellín, na Colômbia. As comunidades ali residentes também viviam em condições precárias, com problemas de mobilidade e altos índices de violência. "A localização das seis estações perto do cume dos morros foi algo que aprendemos com a experiência da Colômbia. O alto dos morros é o lugar mais difícil para o transporte alternativo chegar - como as Kombis, no caso do Alemão.
Dentre as opções para resolver o problema de acessibilidade em áreas muito adensadas, a questão da desapropriação para abrir vias de acesso é crítica, pois mexe com a vida de uma quantidade enorme de pessoas. O teleférico é a alternativa que minimiza tais problemas, pois o número de famílias que tem que se deslocar é menor. Mesmo assim, foram afetadas com a construção do teleférico cerca de 1800 famílias", diz Bento Lima, Diretor de Engenharia do Metrô da Rio Trilhos, Cia de Transportes sobre Trilhos do Estado do Rio de Janeiro.
Com a construção do teleférico, o tempo de deslocamento até o ponto mais alto do Complexo do Alemão vai ser reduzido das atuais duas horas para 17 minutos, detalha Márcia Kumer, superintendente nacional de assistência técnica e desenvolvimento sustentável da Caixa. O preço da tarifa do trajeto ainda não foi fixado, mas a área social do governo do Rio de Janeiro e representantes das comunidades do morro discutem a possibilidade de trocar a passagem por lixo reciclável, aumentando a sustentabilidade do processo de transporte. Mas, há também críticas em relação à opção pelo teleférico, que consome 32% de todo o orçamento do projeto.
Para a construção da biblioteca pública foi destinado um espaço multifuncional de 1.540 metros quadrados de área construída. Quando concluído, tem previsão de atender 600 pessoas por dia, com dois pavimentos para artes cênicas, salas para estudos de música e teatro, sala de informática com cem computadores, e videoteca.
O Alemão é um território excluído "bastante diferente dos municípios, que, embora apresentem assentamentos precários, são integrados com o restante do espaço", reconhece Antonio Parente, da Agência 21, responsável pelo desenvolvimento, manutenção e metodologia do PAC social do estado do Rio de Janeiro. "O objetivo das obras é permitir que estas pessoas também desfrutem de uma cidade, pois hoje elas estão segregadas", acrescenta Márcia. O desafio agora, emenda Inês Magalhães, Secretária Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, é "criar condições mínimas, gerais, para quebrar o ciclo de violência, inibidor do desenvolvimento das pessoas, e consolidar a presença do Estado".
A PESQUISA Com o objetivo de avaliar o impacto destas obras no Complexo do Alemão, a Caixa firmou um acordo de cooperação técnica com o Ipea, em setembro de 2009. A avaliação dos dados originará o estudo Implementação de metodologia para avaliação da intervenção urbanística no Complexo do Alemão (RJ), com coordenação do técnico em planejamento e pesquisa do Ipea, Renato Balbim. "Trata-se de um estudo-piloto, por meio do qual se pretende que a metodologia seja incorporada, tanto pelo Ipea como pela Caixa, para a avaliação de outros projetos", afirma Balbim.
Ele destaca que um dos principais objetivos da pesquisa é tomar conhecimento detalhado do modelo de intervenção urbanística e associá-lo à capacidade já instalada na elaboração de modelos de avaliação de políticas públicas. "Vale lembrar que essa é a primeira vez que o Ipea aplica esse tipo de metodologia em um projeto de urbanização, que envolve uma gama grande e diversificada de ações, incluindo a área social, de geração de emprego e renda, de implantação e qualificação de infraestruturas e demais temas correlatos. O Ipea já tinha expertise na elaboração do Modelo Lógico de programas do Plano Pluri-Anual (PPA), mas a aplicação a um projeto é inédita", esclarece.
O modelo lógico propõe retratar uma realidade complexa por meio de uma cadeia de informações conectadas, para evidenciar a expectativa de funcionamento de um programa ou projeto na obtenção dos resultados desejados. Assim, o modelo serve como um organizador, para desenhar avaliação e medidas de desempenho, com foco nos elementos importantes da intervenção em pauta (seja programa ou projeto), e identificando quais questões de avaliação devem ser colocadas e quais medidas de desempenho são relevantes.
Para Balbim, após o trabalho no Complexo do Alemão, o Ipea possuirá mais elementos para contribuir com o aprimoramento das ações de urbanização de assentamentos precários do governo federal, em especial com a avaliação dessas intervenções. Um bom diagnóstico é fundamental não apenas para medir o grau de sucesso da intervenção, mas "sobretudo para que as políticas públicas possam ser sustentáveis e estruturadas no tempo, efetivando a necessária e profunda transformação na vida das famílias que moram nesses assentamentos e que durante décadas não obtiveram o apoio do Estado para sua inserção na cidade, como aconteceu com as demais áreas e bairros de maior renda", diz.
Na primeira etapa da pesquisa, a equipe de pesquisadores do Ipea e da Caixa levantou um banco de dados da área, e sistematizou as informações relevantes para a documentação oficial sobre o projeto do Alemão, que está inserido no programa federal "Urbanização, Regularização Fundiária e Integração de Assentamentos Precários". A sistematização das entrevistas resultou em um documento de trabalho de cerca de oitenta páginas, que resultará no Relatório Final, a ser encaminhado à Caixa.
A segunda etapa da pesquisa se baseia em grupos focais e irá abordar questões sobre as expectativas em relação ao projeto de intervenção sóciourbanística e as percepções sobre o trabalho técnico e social. O primeiro encontro destes grupos ocorreu em setembro deste ano, com representantes do Ipea, da Caixa, e de moradores do Complexo do Alemão que foram realocados para os conjuntos habitacionais.
Segundo a coordenadora dos grupos focais e pesquisadora bolsista do Ipea, Carla Coelho de Andrade, o objetivo destes encontros é "captar as expectativas em relação ao projeto de intervenção, colher informações sobre a obra, e saber como anda a mobilização comunitária". A proposta da Caixa é capacitar os seus profissionais em todo o país para a aplicação desta metodologia nas demais intervenções do gênero. "Com a implementação da metodologia de avaliação nas diversas localidades, a Caixa espera verificar o alcance dos resultados e metas propostas, as modificações provocadas nas cidades e comunidades onde forem realizadas as intervenções", afirma o gerente nacional de planejamento e avaliações das ações de desenvolvimento sustentável da Caixa, Emmanuel Carlos de Araujo Braz.
No final do ano, está previsto um seminário para expor à sociedade os resultados da parceria. "Esperamos que a consolidação dessa iniciativa como uma política de Estado venha a estruturar um programa multi-setorial e transversal de urbanização de favelas", afirma Balbim.
IMPACTO NA COMUNIDADE Segundo dados do projeto, em torno de 70% da mão de obra é oriunda da própria comunidade. As obras prevêem, dentre outras medidas, o alargamento de ruas, e, para tanto, muitos comerciantes foram realocados ou receberam indenizações. Emilson de Oliveira, 46 anos, foi um dos indenizados com esta medida. "Ofereceram até R$ 15 mil pela minha loja", diz Oliveira. Aqueles que não aceitaram a negociação, caso da família de Adão Ferreira Pinto, 50 anos, do Morro da Grota, tiveram suas lojas derrubadas mesmo assim. "Não sou camelô. Colocaram a indenização muito baixa. Disseram para eu ir para a parte alta do morro, mas lá se concentra o pessoal que mais passa necessidade e não tem condições de compra", argumenta Adão.
A negociação de indenização é feita pela Secretaria Municipal de Habitação, com o auxílio de técnicos, engenheiros e arquitetos. "Aqui se fez negociações à exaustão. Não tem razão prejudicar uma comunidade com milhares de pessoas que serão beneficiadas pela obra em detrimento de 15 pessoas apenas", destaca Alex Costa, secretário especial da Ordem Pública do Rio. No caso de Adão, a assessora do secretário, Ana Carvalho, informa que foram oferecidos até R$ 38 mil por loja. "Só a família dele tem cinco lojas aqui. É um empresário. Foi para a Justiça e perdeu a liminar", resume.
A realocação das famílias para novas habitações envolve algumas etapas, explica Marcela Moreira, arquiteta urbanista e assessora da coordenação do PAC Social. Após uma primeira conversa com o morador, a equipe faz uma visita a casa deste e realiza um levantamento físico fotográfico do imóvel (desenho esse que subsidia o cálculo da benfeitoria).
Em seguida, cada um dos moradores é chamado individualmente para fazer sua escolha, a partir de três valores calculados para as benfeitorias, com base no desenho. E o resultado final não é uma unanimidade. "No início nos deram a opção de dois apartamentos, e agora disseram que só dão um. A minha família é grande", protesta a cozinheira Maria da Luz Félix, 52 anos, que faz doces para o marido vender e mora numa casa com outras 14 pessoas.
Uma das participantes do estudo, a técnica de planejamento e pesquisa do Ipea, Rute Rodrigues, aponta a necessidade de aumentar a participação social no programa. Segundo ela, os setores mais organizados do Complexo do Alemão deveriam ter sido informados mais detalhadamente sobre todo o projeto, e lembra que algumas ONGs redigiram um documento demandando mais acesso às informações. "A falta de envolvimento no processo pode levar a atrasos da obra, sobretudo no caso das realocações. Além disso, sem informação sobre o projeto não há como as pessoas cobrarem que ele seja executado da melhor maneira possível." A técnica cita como exemplo as melhorias habitacionais que estão previstas: "como são obras dentro das casas das pessoas, estas ações dependem da participação social, seja para esclarecer os critérios de escolha das casas beneficiadas, seja para viabilizar as obras".
Iracema Gonçalves, de 73 anos, recebeu um apartamento de dois quartos no novo conjunto habitacional conhecido como Itaoca. Ex-moradora do Morro do Adeus, a aposentada afirma que optou pela casa oferecida: "antes eu morava com uma filha e dois netos, hoje, sozinha", diz. Há 30 anos ela mora em um dos cumes do Complexo do Alemão, e lembra que, quando chegou ao local, não havia água encanada e esgoto, só instalados na década de 1980. Atualmente a taxa da água (R$ 16) é subsidiada e única para todos os moradores. O mesmo não ocorre com a conta de luz, que é cobrada individualmente, de acordo com o consumo.
Por enquanto, a aposentada possui apenas um documento confirmando a posse do apartamento, mas deve receber o título de propriedade da casa após cinco anos. Este prazo, de cinco anos, "é necessário para impedir a revenda dos imóveis ou aluguel dos mesmos de forma que a família atendida faça do benefício um fim lucrativo", explica Marcela Moreira. E mesmo assim, o programa não consegue impedir a valorização dos imóveis beneficiados.
As obras têm gerado uma especulação imobiliária, principalmente com casas que ficam próximas às maiores intervenções. "O valor das casas triplicou. Em média custavam R$ 18 mil, e agora estão em torno de R$ 60 mil", observa Alan Brum Pinheiro, coordenador do Instituto Raízes em Movimento, organização não-governamental (ONG) que atua no Complexo. O projeto prevê a regularização fundiária (inclusão de quem está na clandestinidade ou irregularidade no contexto legal e urbano da cidade) e o título de propriedade aos moradores.
Pinheiro foi o primeiro gerente técnico de trabalho social do projeto no Alemão, com uma equipe de 27 pessoas. Foi o único que veio da própria favela para ocupar um cargo em comunidades com obras. Uma das medidas do então gerente técnico foi tentar unificar as ações do estado e do município. "Em 2009, acreditamos que conseguiríamos unificar o trabalho social, mas não deu", lamenta Pinheiro. Ele destaca que um dos aspectos positivos das intervenções é que "alguns moradores acabam preferindo trabalhar nas obras em vez de continuar no tráfico".
Já Jorge Jauregui, arquiteto responsável pelo Projeto IUCA (Intervenção Urbanística do Complexo do Alemão) lembra que a segurança não é o único problema. "Eu diria que nem sequer é o principal. O problema da favela é sua condição marginal em relação ao resto da cidade, o fato de não ter direito de residência, direito de posse, não ter uma situação de fornecimento de serviços normais, como escola, educação, trabalho, transporte, infraestrutura", sentencia. Ele acrescenta que "o Estado não tomou posse do problema, deixou que a população resolvesse isso por seus próprios meios. Claramente, então, há um déficit da presença do poder público. Este tipo de trabalho [do Ipea e da Caixa, além das obras] implica fazer e pensar e pensar e fazer ao mesmo tempo. Não há tempo para primeiro pensar e depois fazer. Esta é a diferença entre trabalhar na cidade informal e trabalhar na cidade formal", conclui.
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