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Saúde - A vida que segue

2007 . Ano 4 . Edição 32 - 7/3/2007

O Brasil tem o maior sistema público de transplantes do mundo, que cobre 75% dos 15 mil procedimentos realizados anualmente no país. Porém, fora das salas de cirurgia, o sistema sofre com a falta de profissionais capacitados para detectar potenciais doadores, a concentração geográfica dos hospitais credenciados e a ausência de informações confiáveis

Por Sucena Shkrada Resk, de São Paulo

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Há oito anos, Luiz César Rossi, um paulista de 49 anos, passa três vezes por semana por sessões de hemodiálise que duram, em média, quatro horas cada uma. "Eu gostaria de sair da máquina, porque maltrata muito a gente", desabafa. Ele é um dos mais de 33 mil brasileiros que estão na fila do transplante à espera de um rim. Enquanto o tempo passa, Rossi luta contra o "fantasma da morte"e alimenta a expectativa de dias melhores. A história de Rossi não parece condizer com a realidade de um país que mantém o maior sistema público de transplantes do mundo, cobrindo 75% de todos os procedimentos realizados, e conta com um corpo médico da mais alta qualificação na especialidade. O problema é que, se a técnica é moderna, a gestão do sistema jamais atingiu o mesmo patamar de excelência. Muito pelo contrário. O estigma de uma fila de 68. 195 pessoas à espera de órgãos, de acordo com dados mais recentes do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que só vão até julho do ano passado; a subnotificação no registro de captação de órgãos e tecidos; e a disparidade de cobertura regional são considerados os principais obstáculos para que o sistema funcione de forma eficiente.

Óbitos "A média de espera, de acordo com o órgão a ser doado, varia de 5, 5 a onze anos. Muitos pacientes morrem antes disso", constata o economista Alexandre Marinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e responsável por estudos desenvolvidos sobre a eficiência do SNT, subordinado ao Ministério da Saúde (MS).

O SNT, entretanto, não mantém um controle de registro sistematizado desses óbitos. "Muitas vezes, descobre-se que o paciente faleceu quando ele é chamado para o transplante. No estado de São Paulo, o controle da mortalidade é um pouco melhor, principalmente em relação à fila de rins e à de fígados, que exigem exames periódicos dos pacientes", afirma a presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), a nefrologista Maria Cristina Ribeiro de Castro. Os dados, segundo ela, seriam importantes para melhorar os procedimentos adotados para a própria fila. "O ideal seria haver softwares específicos e analistas que pesquisassem os levantamentos para apontar alternativas viáveis para melhorar a sobrevida dos pacientes", considera.

Números Quando se observa o número de transplantes realizados pelo SNT em 2004 e 2005, o aumento é mínimo, foram respectivamente 11. 074 e 11. 095, segundo dados disponibilizados pelo próprio órgão. A ampliação é mais significativa na comparação com os anos anteriores. Em 2001, foram 7. 229; no ano seguinte, houve 7. 981 intervenções cirúrgicas; e 8. 544 em 2003. De acordo com o SNT, em situação regular de autorização hoje existem 211 estabelecimentos para transplante de rim, em 23 estados; 53 para transplante de fígado, em treze estados; 64 para transplante de coração, em dezoito; 701 estabelecimentos para transplante de córnea, em 22 estados, e oito para transplante de pulmão, em três. Ao todo, são 25 centrais de transplantes, que cobrem todas as unidades da federação, exceto os estados de Roraima e Tocantins, atendidos pelas demais referências da região.

"Considerando que muitos serviços realizam uma quantidade de transplantes aquém de sua capacidade, percebemos que o número de equipes e estabelecimentos é suficiente, embora haja concentração desses serviços nas regiões Sudeste e Sul . As exceções são o transplante pulmonar e o de medula óssea, com serviços em número insuficiente", diz Roberto Schlindwein, coordenador do SNT. Segundo ele, o SNT e as câmaras técnicas específicas de especialistas estudam a melhor estratégia para relacionar o número de serviços à concentração populacional e à organização de redes de referência para o adequado acesso do cidadão a esses serviços.

"O objetivo é estabelecer redes assistenciais que possam diagnosticar as necessidades de transplante e permitir um fluxo adequado de encaminhamento desses pacientes a um serviço de referência para sua inclusão na lista de espera, contemplando todo o território nacional", afirma Schlindwein. No processo de ampliação, as mais recentes Centrais Estaduais de Transplante foram implementadas no Acre, em Rondônia e no Amapá. "Já são realizados transplantes renais no Acre e existe autorização para o transplante de medula na região Nordeste", informa o coordenador do SNT.

Família dá palavra final na doação

Para entender como funciona o processo de doação de órgãos até a efetivação do transplante, é preciso dividi-lo em captação de órgãos de cadáver, que é o modo predominante, e de inter-vivos. Em vida, é possível doar rim, pâncreas, medula óssea, parte do fígado e do pulmão. O principal crivo é a compatibilidade sanguínea e o não-comprometimento da saúde do doador. A Lei Federal n. º 10. 211, de março de 2001, permite que o doador tenha até o quarto grau de consagüinidade com o receptor. Caso o doador não seja um familiar, o procedimento deve receber autorização da Justiça para ser liberado.

O marco legal no Brasil de transplantes com doador cadáver foi iniciado com a Lei Federal n. º 9. 434, de 4 de fevereiro de 1997, modificada pela Lei n. º 10. 211, em 2001. A alteração substituiu o critério do doador apresentar sua vontade presumida no registro de identidade ou na carteira nacional de habilitação pelo consentimento informado a seus familiares do desejo de doar seus órgãos após a morte. O responsável legal e mais duas testemunhas assinam a autorização. Segundo a ABTO, o corpo é liberado para a família, depois da providência da retirada dos órgãos, em cerca de vinte horas.

Para se tornar apto à doação, é necessário que seja constatada a morte encefálica ou do cérebro (baseada na ausência definitiva de todas as funções neurológicas), que é determinante nas funções vitais da pessoa. Diante da confirmação por exames feitos por dois médicos que não integram a equipe de transplantes, além de outros testes complementares, o tempo é determinante para o aproveitamento dos órgãos. A maioria só pode ser utilizada pelo possível receptor se for retirada enquanto há batimentos cardíacos que possibilitam a irrigação sanguínea. A única exceção são as córneas, que podem ser aproveitadas mesmo com a parada cardíaca.

Após o diagnóstico comprovado, cabe ao médico responsável ou à equipe de captação de órgãos comunicar à família e expor a possibilidade de doação. De acordo com o SNT, ao constatar-se que todas as condições determinam que o paciente falecido é um potencial doador efetivo, a Central de Transplantes (coordenada pela Secretaria de Saúde do estado em que houve o óbito) deve ser comunicada. Mediante o cadastro técnico dos pacientes que se encontram na fila do transplante, será definido quem deverá passar pela cirurgia. São respeitados critérios de ordem de inscrição, dados de compatibilidade entre doador e receptor, além do risco de morte. Vale lembrar que o comércio de órgãos é crime e pode resultar em pena de dois a seis anos.

 

Para manter o SNT em funcionamento, o Ministério da Saúde empenhou 521, 88 milhões de reais em 2005, o que representou 29, 11% mais que em 2004. Considerando que o número de transplantes realizados cresceu somente 0, 2% entre 2004 e 2005, percebe-se um aumento do desembolso sem um crescimento proporcional de eficiência. E a tendência é manter essa trajetória, já que de janeiro a julho de 2006 os gastos somaram 360, 15 milhões de reais, o que projeta um valor de aproximadamente 617 milhões de reais para o ano todo.

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Comissões Em junho do ano passado, o MS tomou uma iniciativa que promete melhorar muito o processo de captação de órgãos: regulamentou a implementação de comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos em todos os hospitais públicos, privados e filantrópicos com mais de oitenta leitos. Cada grupo deve ter no mínimo três integrantes com médicos e/ou enfermeiros, entre outros profissionais de nível universitário. Na avaliação de Schlindwein, uma das dificuldades do sistema é a falta de percepção de muitos profissionais da área de saúde de que a doação de órgãos e tecidos deve ser entendida como um direito de opção dos familiares do indivíduo falecido. Até hoje, muitos acreditam que a decisão precisa ter sido tomada em vida pelo doador . "A detecção de uma situação de potencial doação é uma atribuição da equipe de saúde, que deve estar preparada para, além de oferecer a possibilidade de doação aos familiares, por meio de uma entrevista, realizar uma triagem clínica adequada para garantir a segurança dessa doação", afirma.

Com a implementação das comissões intra-hospitalares, o coordenador do SNT espera um aumento significativo da oferta e captação de órgãos, possibilitando maior agilidade no atendimento à lista de espera. "Estamos concentrando os esforços na organização e no treinamento dessas comissões em todo o Brasil. Na área de captação, o Ministério da Saúde já promoveu 43 cursos de formação de coordenadores intrahospitalares em vinte estados e no Distrito Federal, com a participação 3 mil profissionais", conta Schlindwein, informando que foram implantadas 528 comissões no país.

A nefrologista Maria Cristina Ribeiro de Castro, da ABTO, explica que em muitas ocasiões não é levado em consideração o fato de que um único doador pode salvar até quinze vidas. "De uma pessoa é possível obter córneas, pâncreas, ossos, medula óssea, pele, válvulas cardíacas e órgãos vitais, como coração, fígado e pulmão. Em casos excepcionais, já são realizados no Brasil transplantes de intestinos. De maneira geral, falta uma cultura nos hospitais em relação ao tema", avalia. Mas ela chama a atenção para problemas específicos da portaria que instituiu as comissões. " O MS não definiu nenhum tipo de sanção para quem descumprir a determinação nem especificou de onde partirão os recursos para a formação dos grupos multidisciplinares, com dedicação exclusiva a esse trabalho. É importante destacar que são mais de 1. 000 instituições em todo o país", analisa Ribeiro de Castro.

Para o médico Milton Glezer, delegado regional do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), não basta formar as comissões intra-hospitalares, a modificação tem de começar nos cursos de medicina. "Culturalmente, o médico se sente incomodado em dar diagnóstico de morte encefálica. Pouco se fala sobre transplantes nas faculdades. Falta maior empenho nesse sentido. Deveria haver um treinamento nessa área nos cursos de graduação", considera.

Em 2005 e 2006, os gastos do sistema nacional de transplantes cresceram 29, 11% e o número de cirurgias aumentou apenas 0, 2%

Disparidades Como acontece freqüentemente no Brasil, o SNT apresenta desempenhos desiguais nas diferentes regiões do país. Atualmente, os estados da Bahia e do Rio de Janeiro representam duas grandes preocupações da ABTO. "São estados populosos e importantes, onde há uma disparidade enorme, com filas extensas e precária captação de órgãos", constata a presidente da entidade. O número de pessoas que aguardam por um transplante é, respectivamente, 3. 045 e 7. 561 (dados até julho de 2006). Nessas duas unidades da federação são encontradas as maiores desproporções entre demanda e oferta nas listas de rim, fígado e córneas.

Na outra ponta do ranking de desempenho, estão os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cujas filas de espera têm 1. 441 e 3. 743 pessoas, respectivamente. "No caso de Santa Catarina, são quinze doadores para 1 milhão de pessoas; no Rio Grande do Sul, são catorze ou quinze. Em termos nacionais, a média não passa de 5, 8", informa a nefrologista Ribeiro de Castro. Apesar de Santa Catarina ter o melhor desempenho no país, ainda é pouco se comparado à Espanha, que é uma referência mundial em transplantes. Lá são trinta doadores para 1 milhão, de acordo com dados da ABTO.

Por uma questão geopolítica e populacional, o estado de São Paulo figura como recordista em número de transplantes (representa cerca de 45% dos procedimentos no país), de pacientes e, conseqüentemente, de mortes na lista de espera. De janeiro de 2005 a julho de 2006, foram realizados 8. 318 transplantes no estado e, até julho do ano passado, eram 16. 081 pessoas na fila.

"Diante das estatísticas que mostram o baixo nível de oferta, não há como negar que a subnotificação é grave", afirma José Osmar Medina Pestana, presidente da Sociedade Latino-Americana de Transplantes e diretor do Programa de Transplantes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ao mencionar a subnotificação, Pestana quer dizer que há inúmeros casos de morte encefálica que não são notificados nos hospitais brasileiros, o que inviabiliza a doação. "Estatisticamente, nos hospitais com potencial de atendimento de urgência e emergência, de cada oito mortes encefálicas apenas uma é notificada à central de transplantes. Mas, quando a temática da doação é bem abordada com os familiares, 60% deles aceitam realizar o procedimento", diz. De acordo com Pestana, o preparo das equipes das comissões intra-hospitalares é hoje o melhor caminho para a solução desse problema.

Coração O diretor da Cirurgia Cardíaca Pediátrica e do Transplante Infantil do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, Miguel Barbero Marcial, reforça essa opinião. Ele lembra que a situação é mais grave ainda em unidades hospitalares da periferia e do interior, principalmente por entraves burocráticos e devido à sobrecarga de trabalho dos plantonistas. "Poderiam também ser montadas equipes móveis que visitassem as UTIs para fazer os levantamentos de morte encefálica. No caso de crianças, conseguir um órgão ainda é mais difícil, porque há menos óbitos do que entre os adultos. Hoje temos seis crianças na fila do transplante no Incor", diz.

A unidade é referência nacional e atende a pacientes de todo o país. Segundo Marcial, o tempo é precioso para o receptor, já que a média de resistência dos pacientes infantis atendidos pela sua equipe é de um mês a um ano, dependendo da situação clínica. "A gente acaba vendo infelizmente o quadro de saúde piorar pouco a pouco e, por causa dessa espera, a mortalidade chega a 60% dos casos", afirma.

Lista de transplante de fígado muda e prioriza gravidade

No Brasil, as regras para transplantes do fígado, que é um dos principais órgãos vitais, sofreram modificações no ano passado após um consenso entre o Ministério da Saúde e demais órgãos representativos de pacientes e médicos. Em maio de 2006, foi baixada uma portaria ministerial que modificou os critérios de distribuição de fígado de doadores para transplantes ao implantar e ampliar o critério de gravidade do estado clínico do paciente. Antes o procedimento ficava restrito principalmente à hepatite fulminante. A determinação foi recebida positivamente pela Associação Brasileira dos Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas (TransPática).

"O transplante de fígado tem sido descentralizado no Brasil, com o aumento da atividade na região Nordeste, principalmente no Ceará, e com a recente reautorização da atividade no Distrito Federal (que apresentava irregularidades administrativas). Entretanto, temos uma lista de espera de 7. 450 pacientes em diferentes situações de gravidade de seu estado clínico, o que levou o Ministério da Saúde, após estudos que se iniciaram em outubro de 2004, a rever os critérios de distribuição desses órgãos em julho de 2006", explica o coordenador do SNT, Roberto Schlindwein.

De acordo com Sidnei Moura Nehme, fundador e um dos conselheiros da TransPática, antes quem realmente precisava do transplante por causa da gravidade morria na fila. "Segundo levantamento do próprio SNT, em 2005, 60% das pessoas presentes na lista não precisavam com urgência da intervenção", afirma. Nehme cita como exemplo a história de sua vida, já que foi o primeiro paciente de transplante duplo de rim e fígado inter-vivos no Brasil (entre pai e filho), em 1998. Praticamente desenganado pelos médicos, aos 48 anos ele foi salvo pelos órgãos de seu filho Fábio, na época com 24 anos.

"Eu era o número 45 na fila do SNT e a previsão era de que eu conseguiria passar pelo transplante no mínimo em seis meses, mas não havia tempo para esperar a doação. Por duas vezes, entrei em coma", conta.

Sobreviver só foi possível porque ele tinha condições de pagar pela cirurgia inovadora em um hospital particular de São Paulo. Depois dessa experiência, decidiu fundar uma associação que desse assistência a milhares de pessoas que sofrem com a doença e não dispõem de recursos. "Assim nasceu a TransPática", conta.

Com os novos critérios na fila do transplante de fígado, a esperança tomou conta do baiano Antônio Carlos Martins dos Santos, de 51 anos, que desde o fim de 2006 está na fila do transplante duplo de fígado e rins, após ver seu quadro piorando desde 2003. Santos, que mora em São Paulo, submetese a diálises mensais e convive com a dor enquanto aguarda sua vez. "Ainda posso ser útil ao país. Quero voltar a trabalhar", afirma. Santos, que está afastado do cargo de supervisor ferroviário, espera ter mais sorte que um vizinho, que estava na fila do transplante de fígado há cinco anos, mas não resistiu e faleceu.

O cirurgião e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Silvano Raia, que coordenou o primeiro transplante bem-sucedido de fígado no país, em 1985, considera o critério de gravidade favorável. "A questão, entretanto, estimula uma análise mais detalhada. Hoje, a Fundação do Fígado, em São Paulo, realiza um estudo multicêntrico, com dezenove equipes, para esclarecer qual é a relação entre as duas variáveis, o critério cronológico e questão da gravidade", diz.

De acordo com Raia, nos últimos vinte anos verificou-se um evidente progresso tecnológico e sua sedimentação em muitas equipes de transplantes distribuídas principalmente no centro-sul e no nordeste do país. "O sistema se defronta, entretanto, com grande escassez de órgãos, o que explica mais de 60 mil candidatos inscritos atualmente em lista de espera. "

O cirurgião afirma ser favorável à instituição das comissões intra-hospitalares. " A Fundação do Fígado, em convênio com a Secretaria de Saúde de São Paulo, está patrocinando cursos para formação dessas equipes e criando condições financeiras de melhorar o desempenho de suas funções", informa. Segundo Raia, numa ação simultânea, também está sendo estimulado o uso da técnica inter-vivos para os transplantes de fígado e rim e, assim, contornar a dificuldade da falta de órgãos de doador falecido. "Em muitos centros já representam 50% dos transplantes de rim e 30% de fígado", diz.

 

 

Pulmão No caso da fila do transplante de pulmão no Incor, a mortalidade está no patamar dos 30% num prazo máximo de um ano. O esclarecimento é da pneumologista Marlova Caramori, chefe da equipe de Transplantes de Pulmão da instituição, que hoje conta com uma fila de quarenta pacientes. " Além da dificuldade de doação, por falta de esclarecimento e de conscientização das famílias dos doadores, enfrentamos a dificuldade de que o pulmão é o órgão que mais se inviabiliza para a cirurgia, por causa da morte encefálica. De cem órgãos, aproveita- se em média vinte, devido ao comprometimento com pneumonias ou excesso de água, por exemplo", explica a médica.

A pneumologista considera fundamental que haja mais campanhas de divulgação sobre a importância da doação, mas lembra que para sua área ainda há a necessidade do aumento do número de centros de transplantes de pulmão. "São nove ao todo, mas os que atuam com menor dificuldade ficam na Santa Casa de Porto Alegre, que é pioneira, e no Incor, além de duas outras unidades em São Paulo, no interior do estado, e no Rio de Janeiro", afirma.

O coordenador do SNT, Roberto Schlindwein, concorda que, do ponto de vista logístico, o transplante de pulmão é o que ainda apresenta maior dificuldades, devido à concentração nas regiões Sul e Sudeste e ao reduzido número de equipes médicas. O Rio Grande do Sul responde atualmente por 70% dos transplantes no Brasil.


 

saude3_30Em 2000, um grupo de pacientes do Hospital das Clínicas se reuniu para comemorar quinze anos de transplantes de fígado bem-sucedidos

Córneas Para Francisco Neto de Assis, presidente da Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote), é preciso reverter esse quadro. "A baixa notificação do diagnóstico de morte encefálica às centrais de transplantes é um ato médico que está sendo negligenciado. A expectativa é encontrar pelo menos sessenta casos por ano numa população de 1 milhão de pessoas. No Brasil, com cerca de 180 milhões de habitantes, calculam-se 10. 800 potenciais doadores anualmente", diz. A entidade considera a situação da doação de córneas a mais absurda, porque o potencial doador é qualquer pessoa com o diagnóstico de morte, desde que a retirada ocorra até seis horas após a parada cardíaca.

A Adote realizou um levantamento entre janeiro e setembro de 2006 numa cidade com 350 mil habitantes e chegou ao seguinte resultado. No período, pelo menos 460 pessoas entre 4 e 64 anos poderiam ter sido doadores do órgão, mas somente duas córneas foram captadas. Uma das metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde é zerar a fila do transplante de córnea no país. Mas as 26. 403 pessoas que estavam na fila da espera em julho do ano passado mostram que a meta ainda está longe de ser alcançada, apesar do número de pacientes à espera estar caindo.

Segundo Schlindwein, em 2005 e 2006 o Ministério da Saúde, em um trabalho conjunto com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e com o SNT, organizou treinamentos descentralizados para os servidores das vigilâncias estaduais e municipais para fiscalização em Bancos de Tecidos Oculares. Em dezembro do ano passado, foi promovido o primeiro curso de capacitação para profissionais em captação de córneas em parceria com os Bancos de Olhos do Distrito Federal e de Goiânia. A expectativa é organizar melhor a atividade nos Bancos de Olhos, o que possibilitará a redução gradativa do tempo de espera para transplante de córnea, principalmente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal. "Hoje, cerca de 83% da demanda anual é atendida por esse tipo de transplante no Brasil. O problema é que a procura aumenta significativamente a cada ano. Em 2006, foram realizados 10. 641 transplantes de córnea, mas 12. 886 novos pacientes ingressaram na fila", diz ele.

saude4_30O tratamento dos pacientes que estão à espera de um órgão é mais caro do que o valor dos transplantes

Imunossupressores Mas quem avalia o SNT olhando somente para as cirurgias enxerga apenas parte do todo. É importante destacar que o processo de transplante não acaba na cirurgia. Para garantir que não haja posterior rejeição do órgão, o transplantado tem de tomar pelo resto da vida os chamados imunossupressores, que também são bancados pelo SUS. "Apesar de haver certa deficiência na distribuição dos medicamentos em alguns estados, essa cobertura é atendida", afirma o presidente da Adote.

"Nesse aspecto, o Brasil é destaque, já que países desenvolvidos, como os Estados Unidos, só financiam os medicamentos por seis meses", esclarece a presidente da ABTO, Maria Cristina Ribeiro de Castro. De acordo com o coordenador do SNT, Roberto Schlindwein, atualmente os gastos com a aquisição de medicamentos imunossupressores têm ultrapassado os relacionados com os procedimentos específicos de captação e transplante.

Custo-benefício Na análise do economista Marinho, do Ipea, o elevado número de transplantes realizados no Brasil e de pacientes na lista de espera também reflete outro questionamento. "É um sinal de que as atividades de prevenção e promoção da saúde, que poderiam diminuir a necessidade de transplantes, precisam ser incrementadas", avalia. Segundo Marinho, a grande prevalência na população de doenças crônicas não transmissíveis que levam aos transplantes, como diabetes, hipertensão, hepatite e alcoolismo, deveriam estar sendo evitadas ou controladas no SUS de modo mais efetivo. "As ações deveriam ser realizadas preferencialmente na Atenção Básica (Unidades Básicas de Saúde e no Programa de Saúde da Família). Não será possível aprimorar o sistema sem melhorar o SUS, inclusive com a melhoria das emergências e das UTIs", diz o pesquisador da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea.

No estudo "Avaliação da Eficiência Técnica e da Eficiência de Escala do Sistema Nacional de Transplantes", elaborado por Marinho e pela assistente de pesquisa do Ipea Simone de Souza Cardoso, pode-se ver quanto custa o tratamento de quem está na fila da espera. Em 2005, os gastos com as chamadas terapias renais substitutivas somaram 1, 16 bilhão de reais. É um valor anual significativamente superior ao aplicado nos transplantes.

"Não há dúvida de que o custo do doente transplantado é menor do que o gasto terapêutico com o paciente crônico", afirma o delegado regional do Cremesp, Milton Glezer. Para o presidente da Sociedade Latino-Americana de Transplantes e diretor do Unifesp, o médico José Osmar Medina Pestana, é preciso ainda analisar que o paciente transplantado terá condições de retornar ao mercado de trabalho e melhorar sua qualidade de vida.

"Hoje, estatisticamente, o melhor resultado é do transplante de córneas, com cerca de 95% de sucesso após um ano da intervenção cirúrgica. Já o fígado, que é um órgão vital, resulta em 90% de sucesso no mesmo período. No caso do pulmão, por exemplo, o índice de eficiência é de 70% dos enxertos", explica Maria Cristina Ribeiro de Castro, da ABTO.

 

Informações Até aqui, esta reportagem procurou traçar um panorama das qualidades e dos problemas do SNT. Foi possível confeccionar um mosaico apresentando diversos aspectos do assunto, mas é praticamente impossível chegar a uma sólida conclusão. Essa dificuldade é enfrentada por todos os que se debruçam sobre o tema. " A falta de informações atualizadas sobre a estrutura do SNT, desde a capacidade de retaguarda até estatísticas de procedimentos e filas para transplantes, dificulta uma análise mais aprofundada da gestão dos transplantes no país", afirma Marinho, do Ipea. A mesma avaliação é feita pela Adote. "Reivindicamos maior transparência de dados no site do SNT", diz o presidente da entidade, Francisco Neto de Assis.

Em fevereiro deste ano, o banco de dados consolidado do Ministério da Saúde disponibilizava informações somente até julho de 2006. O SNT está implementando a rede de informação on-line nas 25 Centrais Estaduais de Transplantes distribuídas no país (com exceção de Roraima e Tocantins), sob coordenação das secretarias de Saúde, que são interligadas a 555 estabelecimentos hospitalares e a 1. 376 equipes médicas. "O sistema informatizado em rede desenvolvido pelo Datasus e pelo SNT encontra-se instalado em dezoito estados e no Distrito Federal, e deve atingir todo o território nacional até o final de março. Esse sistema permitirá o acesso a relatórios gerenciais com as mais variadas informações estatísticas tanto para os gestores de saúde como para a população", esclarece Schlindwein.

A ferramenta de comunicação via Internet viabilizará também, segundo ele, a implantação de um sistema adequado de alimentação de informações por parte dos profissionais, sobre o segmento de pacientes transplantados e a avaliação dos resultados dos transplantes. Tomara que esses avanços possam levar à melhor gestão de todo o sistema para salvar a vida dos 68 mil brasileiros que dormem e acordam, diariamente, à espera da chegada de um órgão salvador.

 

Saiba mais:

Sistema Nacional de Transplantes (SNT)
www. saude. gov. br/transplantes

Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO)
www. abto. org. br

Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecido (Adote)
www. adote. org. br

Assoc. Bras. dos Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas (TransPática)
www. transpatica. org. br

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
www. ipea. gov. br

 
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