2010 . Ano 7 . Edição 63 - 19/11/2010
David Leite Viana
A cidade-capital de Moçambique cresceu aceleradamente, configurando formas urbanas complexas, entre o compacto, a fragmentação e o informe, que têm vindo a consubstanciar um organismo urbano cuja forma apresenta (em partes) características próximas a uma estrutura rizomática. Trata-se de um conjunto com conformações diversas, de extensão ramificada em múltiplos sentidos, crescendo de acordo com a dinâmica das conexões e permitindo estratificações desmultiplicadas.
A sua condição urbana - em transição, indefinida - revela-se em representações fragmentadas e aparentemente desordenadas: esta situação degenerou na atrofia da relação estrutural entre projecto (planeamento) e forma urbana (como consequência), agravando a debilidade de nexos estabelecidos entre tipo-morfologias, programas e modos sociais plasmados na fluidez, fragmentação e no acaso não calculado - base de novas formas sociais de utilizar e criar espaço com um alto potencial criativo, induzidos por via da imaginação (necessidade de sobreviver) e espontaneidade própria da subjectividade.
Maputo é mais que um díptico: o somatório do processo colonial urbano e do pós-colonial perfaz múltiplas partes que se enquadram num mosaico urbano de geometria intrincada (entre a cidade compacta, difusa e sem forma) que já não espelha apenas a dicotomia "cidade de cimento" versus "cidade de caniço"1. Estas duas realidades tendem a desvanecer-se, cruzandose, sobrepondo-se, justapondo-se a outras que entretanto foram ganhando forma e expressão no espaço urbano. Este (englobando a "periferia de caniço", sua zona mais fortemente povoada) transpôs a coerência de imagem assente (morfologicamente) no espaço construído e no desenho do espaço público.
O mosaico urbano plural é o tabuleiro da imprevisibilidade e incerteza: a forma urbana tornou-se tão extensa e díspar que já não é mais possível abordá-la como uma unidade linear e polida. A boa forma da cidade diluiu-se numa composição híbrida e solvente, em que os contornos da capital como artefacto legível, identitário, límpido nos seus traçados - marcando a identificação da sua configuração, limites e centro - foram substituídos pela indefinição do espaço urbano. A forma urbana linear, clara, sequencial, estruturada, que caracteriza a narrativa citadina de origem colonial coexiste com outras estruturas abertas à expressão de múltiplas formas urbanas: multiplicaram-se as sequências e os enlaces possíveis.
A sua população redefine a matriz espacial, inventa e acrescenta outras funcionalidades, novas vias de actuação económica, de agregação residencial e fórmulas habitacionais, entre o formal e o informal. Espaço e citadinos lidam com pressões constantes, de sobrevivência, que perfazem "metamorfoses". Maputo sofre os efeitos de desdobramentos múltiplos do seu tecido urbano, transformando a sua forma e respectivos limites.
Da diversidade de modos de habitar, produzir, distribuir e consumir, e das múltiplas e contraditórias razões que informam o comportamento dos actores sociais, resulta o mosaico urbano [in]formal e extensivo (só aparentemente incompreensível e caótico) que já não se explica exclusivamente pela velha ordem urbana nem por princípios únicos de racionalidade e funcionalidade. Observando as formas urbanas de Maputo tornam-se perceptíveis micro-secções e respectivas [micro]estratégias de auto-organização na sua [sub]morfologia. O construído (a textura e respectivos padrões) raramente corresponde a configurações exclusivamente arbitrárias: cada forma construída traz consigo e induz significado(s) à cidade. Os seus conteúdos e significantes estão em constante construção e reconstrução através da acção da vida quotidiana.
Na capital moçambicana é inteligível a justaposição entre formas urbanas regulares, compactas e densas e outras, mais extensas e dispersas, não ordenadas e fragmentadas, para além das configurações que não apresentam forma específica, sem forma - a cidade vive nesta coabitação complexa de contrários: umas vezes de maneira mais concertada, às vezes em conflito. Assim, a sua planificação deverá consubstanciar uma cidade de morfologia aberta, expressa num mosaico urbano intenso e pulsante. Deste processo deverá resultar uma cidade cuja forma urbana se vai consolidando num tecido renovado - cada vez mais plural e solvente ao nível dos seus padrões.
É uma maneira de pensar o espaço urbano através de um conjunto de normas e procedimentos mais do que um modelo formal pré-concebido: mais do que um modelo, para a estrutura morfológica de Maputo é necessária a proposição de orientações urbanas de tipo «camaleónicas», isto é, abertas à interactividade, flexíveis, não estanques, com elevada adaptabilidade in situ. Para além da análise à constatação da regularidade e de processos que se situam no domínio da racionalidade, são necessárias leituras cruzadas sobre expressões não ordenadas da cidade. A planificação [In]formal da capital moçambicana deve estruturar-se no micro-múltiplo urbanismo, promovendo «morfologias ligantes» entre as diversas partes do seu mosaico urbano.
1 Em Moçambique chama-se "caniço" às plantas do género Typha - muito utilizadas na construção de casas tradicionais ou palhotas
David Leite Viana é investigador do Cicra (Centro de Investigação de Construções Rurais e Ambiente) e professor auxiliar do mestrado integrado em arquitectura e urbanismo da Escola Superior Gallaecia, Vila Nova de Cerveira, Portugal.
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