2010 . Ano 7 . Edição 62 - 23/07/2010 - Edição Especial
Marcia Sant'Anna
A Constituição Federal de 1988 firmou a idéia de que o patrimônio cultural é uma construção social, cabendo ao Estado reconhecê-lo e protegê-lo com o apoio e a participação da sociedade. Só mais recentemente, contudo, esse princípio constitucional foi absorvido nas práticas de preservação. Nesse processo, foi decisiva a promulgação do Decreto n° 3.551/2000 e a consolidação no Brasil da noção de patrimônio cultural imaterial.
Segundo este decreto, o patrimônio cultural imaterial se manifesta por meio dos saberes e modos de fazer, das celebrações, das formas de expressão e dos lugares de concentração de práticas culturais coletivas, que constituem referências para a memória e a identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira e possuem continuidade histórica. A noção de bem cultural imaterial diz respeito então a domínios da vida social e coloca no centro do processo de salvaguarda os grupos e indivíduos responsáveis pela vigência dessas práticas - os seus "detentores". A salvaguarda desses bens, portanto, está orientada para o apoio àqueles que os transmitem e mantêm e, por isso, devem participar ativamente da identificação, do reconhecimento patrimonial e do fomento à sua continuidade e sustentabilidade.
Como são as pessoas que mantêm e transmitem os bens culturais imateriais, é importante compartilhar métodos e instrumentos com elas. Durante o processo de salvaguarda, os grupos, indivíduos e comunidades que dele participam são capacitados a produzir conhecimento e documentação sobre seu patrimônio, bem como a empreender ações de organização e de articulação de parcerias. A articulação com políticas públicas das áreas de educação, meio ambiente, desenvolvimento econômico e social é fundamental, pois esses bens culturais são frequentemente afetados por problemas que estão fora da alçada da cultura e demandam a intervenção de outros setores do governo.
Para que as ações de salvaguarda ocorram de modo integrado entre as esferas governamentais e a sociedade, é fundamental o compartilhamento de métodos, categorias de análise e informações. Por isso, as metodologias de identificação utilizadas pelo Iphan estão disponíveis para parceiros governamentais e não governamentais bastando, para tanto, encaminhar projeto para análise e firmar Termo de Uso e Responsabilidade com a instituição.
O instituto do Registro, criado pelo Decreto n° 3.551/2000, é um instrumento de reconhecimento patrimonial que firma o compromisso do Estado com o fortalecimento das condições que propiciam a continuidade dos bens culturais imateriais. Equivale, resumidamente, a aprofundar o conhecimento sobre a história e a trajetória da expressão cultural em foco, sobre as condições sociais, materiais e ambientais que propiciam sua existência e a diagnosticar os problemas que comprometem sua continuidade e reprodução. O Registro é o "retrato" de um momento e deve ser refeito após dez anos do reconhecimento oficial. O objetivo é acompanhar as transformações ocorridas no bem ou no contexto que viabiliza sua existência e reavaliar o registro realizado. É importante não se perder de vista que esse tipo de bem cultural é passível de desaparecimento não somente devido a ameaças ou fatores exógenos, mas também por eventual perda de função simbólica, tecnológica ou mesmo econômica junto à base social que o sustenta. Por isso, como documentação exaustiva da expressão cultural, o Registro permite preserva sua memória para a posteridade.
Os bens culturais registrados fazem jus à implementação de planos de salvaguarda que destinam-se a apoiar e fomentar sua continuidade e sustentabilidade. São formulados a partir do conhecimento produzido e do diagnóstico realizado nos processos inventário e de Registro, em conjunto com os produtores ou detentores do bem cultural. Contêm, basicamente, um conjunto de ações, de curto, médio e longo prazo, destinadas a apoiar processos de transmissão às novas gerações; a melhorar condições de produção e reprodução do bem cultural; a promover e difundir informações; a defender direitos relacionados ao uso e à difusão desse patrimônio e a capacitar detentores a liderar e gerir processos de salvaguarda.
A continuidade de expressões culturais imateriais também é fortalecida por meio de ações de difusão do conhecimento produzido ou sistematizado sobre esses bens culturais e, ainda, por meio de sua promoção, inclusive, nos meios de comunicação. É necessário, entretanto, garantir que essa promoção beneficie, primordialmente, processos de salvaguarda e os detentores envolvidos.
Ações de fomento a projetos de salvaguarda desenvolvidos pela sociedade têm sido realizadas, principalmente, no âmbito do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), também criado pelo Decreto n° 3.551/2000. Por meio dos processos seletivos desse programa têm sido firmadas parcerias com organismos estaduais, municipais e com instituições sem fins lucrativos, fomentando-se a pesquisa, a documentação, a produção e o tratamento de informações, assim como iniciativas de apoio à produção e reprodução de expressões tradicionais e à transmissão, capacitação e organização comunitária.
Marcia Sant'Anna é diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan
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