resep nasi kuning resep ayam bakar resep puding coklat resep nasi goreng resep kue nastar resep bolu kukus resep puding brownies resep brownies kukus resep kue lapis resep opor ayam bumbu sate kue bolu cara membuat bakso cara membuat es krim resep rendang resep pancake resep ayam goreng resep ikan bakar cara membuat risoles
Fábio Konder Comparato - “Não pode haver poder sem controle”

2011 . Ano 8 . Edição 67 - 20/09/2011

Foto: Wladimir Aguiar

rd67not01img01

Gilberto Marangoni – de São Paulo

Professor emérito da USP, jurista e escritor, Comparato fala de sua experiência na Escola de Governo e aponta descompasso entre ordem institucional e realidade social. Segundo ele, quem deseja influir no processo histórico deve ter em mente três questões: “quem somos, o que queremos e contra quem lutamos”

O jurista Fábio Konder Comparato, 75, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é um homem de fala pausada e opiniões claras. Firme opositor da ditadura militar (1964-85), ele abraçou várias causas cidadãs e voltadas para o respeito aos direitos humanos, nos anos seguintes.

Na década de 1990, Comparato esteve na linha de frente dos que tentaram impedir o processo de privatização das empresas estatais. “Um crime contra o país”, diz ele. Mais recentemente, seus esforços focaram-se para uma nova interpretação da Lei de Anistia, de 1979, à luz da Constituição Federal e do Direito Internacional. “O crime de tortura é imprescritível. Não há como a democracia avançar sem examinar essa questão do nosso passado”. A causa dos direitos humanos o levou a outra seara, conectada com as anteriores: a luta pela democratização das comunicações.


Perfil

Fábio Konder Comparato nasceu em Santos (SP) e formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde é professor titular aposentado. É doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Apesar de ter se especializado inicialmente em Direito Comercial, ele notabilizou-se como defensor de Direitos Humanos e Direito ao Desenvolvimento.

Comparato foi um dos proponentes do pedido de impedimento do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, e foi autor de uma ação popular contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, juntamente com outros advogados. É também um defensor da atuação dos movimentos sociais.

Tem publicados, entre outros, os livros Afirmação Histórica dos Direitos Humanos (Saraiva, 2005), Para viver a democracia (Brasiliense, 1989) e Muda Brasil - Uma Constituição para o desenvolvimento democrático (Brasiliense, 1987). Foi ainda membro do Conselho Nacional de Proteção do Consumidor e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana.

Há vinte anos, Comparato, juntamente com outros intelectuais e professores, está no comando de uma ousada empreitada, que poderia ser considerada a síntese de sua atuação pública, a Escola de Governo de São Paulo. Fundada por ele e por Celso Lafer, Claudineu de Melo, Eros Grau, Goffredo da Silva Telles Junior, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Maria Victoria Benevides, a Escola capacitou mais de 600 lideranças e dirigentes políticos ao longo desse tempo. A missão da entidade, segundo sua página na internet, é “atuar politicamente para a transformação da sociedade brasileira, na defesa e promoção dos direitos humanos, dos valores republicanos e democráticos, da ética e do desenvolvimento nacional”.

Numa fria manhã do inverno paulistano, Fabio Konder Comparato conversou com Desafios do Desenvolvimento. Os principais trechos estão a seguir.

Desenvolvimento - O senhor foi um dos criadores da Escola de Governo. Como ela funciona?

Comparato - Quando a Escola foi criada, há vinte anos, o objetivo era formar dirigentes políticos, que soubessem aplicar a Constituição e tivessem um domínio de certas técnicas administrativas, como de política econômica, por exemplo. Mas, aos poucos, eu fui me dando conta que a Constituição de 1988 é uma simples fachada e que a realidade era o poder oligárquico. E de outro lado, percebi que não deveríamos formar dirigentes políticos, mas educadores políticos. Ou seja, seria indispensável que a chamada Escola de Governo se transformasse em uma escola de cidadania. Paulatinamente, nós passamos a mostrar essa duplicidade política. Há uma fachada constitucional brilhante, que esconde uma realidade política oligárquica, muitas vezes, cruel. É um poder oligárquico sedutor, que recorre à violência em último lugar, que procura se apresentar como protetor dos fracos e dos pobres e que mantém uma capacidade de concentração de poder, de absorção das técnicas de última geração para o exercício da dominação política. É uma capacidade invejável.

Desenvolvimento – Como a Escola se desenvolveu?

Comparato - Ela sempre foi artesanal e vive principalmente em torno de três pessoas, a professora Maria Vitória, o professor Claudineu de Melo e eu. Depois de duas décadas, nós não temos condição de continuar com a Escola de Governo. A lei biológica faz com que as pessoas envelheçam. Assim, essa primeira fase vai terminar neste ano. Será reaberta uma outra escola, por uma geração de ex-alunos. Nós não queremos influir sobre isso.

Foto: Wladimir Aguiar

rd67not01img02


Desenvolvimento- A Escola é uma entidade privada?

Comparato - É uma associação civil particular sem fins lucrativos e se beneficiou de um convênio com a Universidade de São Paulo. Ela formou vinte turmas, com uma média de sessenta alunos em cada uma delas. Tivemos alunos como o Ministro Gilberto Carvalho, o deputado João Paulo Cunha, o sociólogo Benedito Mariano, entre outros.

Desenvolvimento – Como é a estrutura pedagógica?

Comparato - Os cursos têm duração de um ano. Existe um curso anual pago e um semestral gratuito, que foi criado em aliança com as lideranças sindicais e agora funciona mais ligado a movimentos sociais. A Escola não tem nenhum viés ou estrutura acadêmicos. Aliás, os professores que têm perfil acentuadamente acadêmico são maus professores na Escola. Queremos formar educadores políticos. Não é preciso nenhuma formação escolar para se matricular no curso. Tivemos alunos destacados que tinham somente o curso primário. Não há avaliação acadêmica, mas exigimos alguns trabalhos. Ultimamente, temos organizado visitas a pontos sensíveis sob aspecto social e político, como acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e comunidades pobres da periferia de São Paulo. Levamos o pessoal a Parelheiros [bairro pobre da região sul da cidade de São Paulo] e insistimos: vocês precisam saber quais os problemas sociais da comunidade. Em segundo lugar, é preciso ver qual a causa disso, se ela está no local ou fora dele, se os causadores estão atuando ainda ou não. Depois, é preciso definir um programa de ação e ver quais seriam as soluções para os problemas.

Foto: Wladimir Aguiar

rd67not01img03


Desafios – E como são as disciplinas?

Comparato - No primeiro semestre apresentamos os três grandes princípios éticos da política, a organização do Estado e alguma coisa de relações internacionais. E no segundo semestre, políticas públicas.

Desafios – O senhor disse no início que vivemos uma duplicidade política, entre a Constituição e a realidade. Como se dá isso?

Comparato - Eu me dei conta que o povo é o grande ausente da história política nacional. O povo é tratado pelos políticos, com raras exceções, como uma massa ignorante, que só se preocupa com futebol. Para eles, é preciso afastar o povo da vida política. Aliás, essa é a grande tradição capitalista. O poder supremo esta em mãos de quem? A Constituição diz que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Isso é a fachada constitucional. Mas qual é a realidade do poder? Em primeiro lugar, a famosa democracia direta. O artigo 14 da Constituição diz que o plebiscito e o referendo são manifestações da soberania popular. Mas, escondido dentro da Constituição, no artigo 49, encontramos que é de competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar a realização de plebiscitos e convocar referendos, mecanismos da democracia direta. Assim, o povo só exerce sua soberania quando é autorizado pelos seus representantes. Concluindo, na realidade política, todo poder pertence aos grupos oligárquicos que o exercem por meio dos representantes do povo. O povo continua como se fosse soberano.


Desenvolvimento – Como tal característica se relaciona com a economia?

Comparato - Estou estudando ultimamente o capitalismo sobre dois aspectos: como civilização e como poder. O capitalismo é a primeira civilização mundial da história. Ele só teve um adversário de peso, que foi vencido em setenta anos, o comunismo. Hoje, ele domina todas as culturas, ele se impõe a todas as religiões e exerce um poder incontrastável. O poder capitalista possui características muito originais. Em primeiro lugar, é um poder oculto, ele nunca se apresenta como ultra-poderoso, como o comunismo e o fascismo. Ele nunca faz propaganda da sua força. E, além disso, ele só recorre à violência em último caso. É um poder sedutor. E há um outro aspecto do poder capitalista que merece ser assinalado. É um poder dissimulador, que a partir do século 18 tomou emprestado o discurso dos Direitos Humanos para se apresentar como o seu grande defensor. Por exemplo, uma minoria de nós juristas sabemos perfeitamente que a propriedade só é um direito humano quando ela diz respeito a bens indispensáveis para se manter uma vida digna. Mas quando a propriedade é um instrumento de poder, ela não é um direito humano.

Desafios – A propriedade está ligada à questão dos direitos individuais, não?

Comparato – A liberdade individual é um direito quando diz respeito aos aspectos da vida que são indispensáveis para a manutenção da dignidade humana. É preciso que cada um tenha uma liberdade de consciência, de religião, de exercer a profissão que quiser etc. E o capitalismo o que tomou disso? A liberdade de atividade econômica e a apresentou como sendo um direito humano. Como assinala Fernand Bradel, não existe capitalismo sem apoio do Estado. O capitalismo, portanto, sempre se interessou pelo poder político. Ele procurou sempre afastar o povo do poder político. O poder político é uma imposição que exige consentimento. Esse consentimento no passado era tradicional, natural, fundado, por exemplo, na religião, nos valores dos ancestrais. Com a Idade Moderna, esse consentimento precisou ser produzido, porque as religiões se enfraqueceram e os valores tradicionais perderam sua influência. Para produzir esse consentimento em uma sociedade de massas, os líderes capitalistas perceberam que era preciso se apropriar dos meios de comunicação de massa. Hoje, o controle da imprensa, do rádio e da televisão, das comunicações telefônicas e da internet é indispensável para a manutenção do poder capitalista.

O povo é tratado pelos políticos,
com raras exceções, como uma
massa ignorante, que só se
preocupa com futebol. Para eles,
é preciso afastar o povo da vida
política. Aliás, essa é a grande
tradição capitalista

Desenvolvimento – Qual a relação entre poder e meios de comunicação?

Comparato - O Brasil é um exemplo da mais selvagem privatização dos meios de comunicação de massa. Isto começou em meados do século 20, mas se acentuou enormemente com o regime militar. Era preciso estimular o consentimento popular para o exercício da dominação militar. Como as forças armadas não queriam por si mesmas construir um arcabouço de comunicação estatal, apostaram todas as fichas na Rede Globo. A partir daí, a Globo não ficou sozinha, mas ela tem hoje três quartos das verbas publicitárias do mercado – o que significa poder. Se nós tomarmos as outras três grandes redes de comunicação social, as quatro em conjunto detêm a maior parte das verbas de publicidade do mercado.

Desenvolvimento - O senhor teve há alguns anos um atrito com a Folha de S. Paulo. Como foi isso?

Comparato - Esse episódio, devo confessar, me abalou muito, porque eu ainda tenho algumas qualidades tradicionais. Fui professor do diretor de redação da Folha e a partir do convite do pai dele, escrevi no jornal durante 30 anos. Quando eu me pronunciei contra um editorial da Folha [de 17 de fevereiro de 2009], segundo o qual o regime militar tinha sido uma “ditabranda”, fiz isso através de uma carta. O jornal tinha a liberdade de publicar ou não. A Folha publicou e fez questão de colocar uma nota de rodapé, dizendo que simplesmente eu era cínico e mentiroso. O que objetivamente sob o aspecto do direito penal constitui em si uma injúria. Eu não ingressei com uma queixa-crime, mas entrei com uma ação de danos morais. E o que eu pedia na ação? Que a sentença favorável a mim fosse publicada no jornal, como forma de responder àquela injúria. Perdi em primeira instância e perdi em segunda instância no Tribunal de Justiça de São Paulo, por unanimidade. O poder judiciário tem muito receio dos meios de comunicação de massa. Soube recentemente que um ex-desembargador foi contratado pela Folha para conversar com os desembargadores da Câmara que julgou o caso em apelação. Quem me revelou isso foram os funcionários do Tribunal, que ficaram indignados. Não sei se a atitude do jornal foi mesmo ideológica ou pessoal. De qualquer forma, o que importa não é o meu caso, que na história brasileira não tem a menor importância. Importa é saber que os meios de comunicação de massa são grande instrumento ideológico do poder capitalista, que como sempre não aparece.

Foto: Wladimir Aguiar

rd67not01img04

Os bens públicos não
pertencem ao Estado,
eles são geridos,
administrados pelo Estado.
Pertencem ao povo
brasileiro. A Vale do
Rio Doce não foi vendida,
foi doada. Em seu
processo de avaliação,
participou o banco
que acabou sendo um dos
compradores

Desenvolvimento – Como o senhor vê a legislação sobre o direito à comunicação no Brasil?

Comparato - No ano passado, entrei em contato com a Ordem dos Advogados do Brasil e propus que fosse ajuizada uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão do Legislativo sobre vários dispositivos constitucionais que não foram regulamentados por lei, como o direito de resposta, a proibição de monopólio e oligopólio e a regulação do conteúdo dos programas de rádio e televisão. A Ordem não quis propor a ação. Então, eu procurei uma federação dos trabalhadores no campo da comunicação. Trata-se da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Liminarmente, a ministra relatora, Ellen Grace, julgou que a autora, essa federação, não tinha legitimidade, porque embora a Constituição fale em entidades de âmbito nacional, ela entendia que somente as confederações poderiam propor a ação. Eu então procurei a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Propaganda, que aceitou ser a autora da ação. Ao mesmo tempo, procurei o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Entrei com duas ações de inconstitucionalidade por omissão.

Desafios – E qual o resultado?

Comparato - O Senado e a Câmara, ao invés de simplesmente se manifestarem, se consideraram réus. Apresentaram uma série de argumentos, contestando a ação e, no mérito, argumentaram que não há nada sem regulamentação. Alegam que no Senado Federal há mais de vinte projetos de lei a respeito das normas de comunicação social. Ou seja, para o Senado, legislar significa fazer projetos de lei. Nenhum deles foi votado. Mas isso é tido como legislação! A Advocacia-Geral da União manifestou- -se no mesmo sentido: tudo está regulamentado, não é preciso regulamentar mais nada. Ora, eu insisto nesse ponto, o Advogado-Geral da União, pela Lei Orgânica da AGU, mais precisamente artigo 3º, parágrafo 1º, é submetido à imediata, direta e pessoal supervisão do presidente da República. Portanto, há uma presunção legal de que, nesse processo, a AGU falou pela presidenta, Dilma Rousseff. A Procuradoria Geral da República está há três meses para dar seu parecer e provavelmente não dará neste ano. Em outra situação, quando a OAB propôs uma ação a respeito da Lei de Anistia, a Procuradoria Geral da República tinha cinco dias para se manifestar. Demorou exatamente um ano para apresentar a sua manifestação.

Desafios – O senhor tem se dedicado à questão da Lei de Anistia, aprovada em 1979. Há uma grande controvérsia sobre ela. Qual sua posição a respeito?

Comparato - Eu, na verdade, tirei a Lei de Anistia do armário onde ela estava escondida. Eu insisto no fato de que ela deveria ser reinterpretada. A Constituição diz expressamente que crimes de tortura não podem ser anistiados. Consegui que o Conselho Federal da OAB fizesse uma arguição de descumprimento desse direito fundamental. Propusemos ao Supremo Tribunal Federal uma interpretação da Lei de Anistia, de acordo com a Constituição em vigor e com o sistema internacional de direitos humanos. E o Supremo Tribunal Federal, por sete a dois, teve o desplante de afirmar que a nossa ação visava modificar e revisar a Lei de Anistia! Logo depois, em 24 de novembro de 2010, houve a decisão unânime da Corte Interamericana de Direitos Humanos, considerando que a Lei de Anistia brasileira, tal como interpretada pelo Supremo, não tem efeito jurídico. Ela viola flagrantemente a Convenção Americana de Direitos Humanos, à qual o Brasil é signatário. O meu empenho tem sido o de obrigar as autoridades brasileiras a cumprirem aquela sentença.

Desenvolvimento – A questão é a de se anistiar ou não os agentes envolvidos na repressão, nos casos de tortura?

Comparato – Sim, trata-se da alegação de crimes conexos que teriam sido cometidos por presos políticos e torturadores. Tecnicamente, a conexão criminal supõe uma unidade de objetivos. Por exemplo, um ladrão para roubar acaba matando. Esta seria a única forma que ele tinha para poder se apropriar do bem almejado. No caso da tortura, não existe a menor possibilidade de se imaginar uma unidade de propósito, porque de um lado havia agentes que praticaram crimes contra a segurança nacional, contra o Estado, e por outro lado, agentes estatais que praticaram crimes contra os primeiros. Ninguém pode imaginar que os autores de manifestações contra o governo militar tivessem a mesma unidade de propósito que os agentes torturadores. A impossibilidade de anistia para quem praticou a tortura se consolidou após a Segunda Guerra Mundial. E hoje faz parte do conjunto de princípios de direito internacional. Os juristas do governo sabem disso. O que mais me dói é verificar que alguns deles - que foram meus amigos e que são competentes - sustentam teses absurdas. Eles sabem que defendem algo não verdadeiro e, no entanto, permanecem com pompa e rigor nessa posição indigna.

Desenvolvimento – Em termos práticos, o que isso significa?

Comparato - Trata-se de saber se o Estado brasileiro vai cumprir ou não a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se discute mais se a sentença é correta do ponto de vista jurídico. Se o Estado não cumprir a sentença, ele se coloca automaticamente fora da lei no plano internacional.

Desenvolvimento – Ao mesmo tempo, se olharmos para o lado dos direitos sociais, não podemos dizer que houve uma melhoria no padrão de vida da população? Isso não significa uma melhoria no tratamento dos direitos humanos no Brasil?

Comparato - Sem dúvida, há uma melhoria No passado, a população pobre não achava que tinha direito à alimentação, à educação e à saúde. E até hoje isso ainda não entrou na mentalidade popular como direito. É preciso ver também que os grandes, os ricos, estão muito melhores hoje que antes. Assim, mantém-se um sistema capitalista de absoluta separação entre os que mandam e os que sofrem. Ou seja, quem pode manda, obedece quem tem juízo. Vou dar apenas um dado. Ao terminar o exercício de 2010, o estoque da dívida pública federal foi R$ 1,7 trilhão. O montante dos juros pagos em 2010, segundo o Banco Central, foi cerca de 5,4% do PIB. Ou seja, algo em torno de R$ 195 bilhões. Quanto é que foi pago para o Bolsa Família? Nem 10% disso. Para pagar esses juros foi preciso cortar despesas.

Desenvolvimento – O senhor se opôs às privatizações de empresas estatais nos anos 1990. Que balanço faz daquele processo hoje?

Comparato - Estou cada vez mais convencido de que aquilo foi um crime contra o patrimônio nacional. Se nós tivéssemos tido uma evolução humanista da mentalidade coletiva e uma verdadeira democratização, e não essa falsa democratização que se diz ter ocorrido em 1988, os autores desse crime deveriam ser julgados. O episódio da venda da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, revelou até que ponto o Poder Judiciário sofre a dominação do poder capitalista. Vou contar um episódio que não foi divulgado, mas é o retrato dessa submissão. Foi proposta uma ação popular contra a privatização, em uma vara da Justiça Federal em São Paulo. Em seguida, foi concedida uma liminar para suspender o leilão, que deveria ocorrer na bolsa do Rio de Janeiro. O governo da época apresentou recurso contra essa liminar ao Tribunal Regional Federal, que manteve suspensão. Em seguida, o governo produziu um recurso inexistente para que o processo chegasse ao Superior Tribunal de Justiça. No STJ, armou-se todo um cerco em torno dos desembargadores, sobretudo daquele a quem foi distribuído o processo. Esse desembargador, imediatamente, deslocou a jurisdição do caso de São Paulo para o Rio de Janeiro. Lá, o caso chegou às mãos de uma juíza. Mais tarde, segundo seu próprio relato, ela recebeu um comunicado pessoal de outro juiz, dizendo ser ela obrigada a reformar a sentença oficial e julgar improcedente a ação popular proposta. Até hoje, ainda não há uma solução para isso, porque a Vale do Rio Doce e o governo federal multiplicaram recursos. Chegamos até o Superior Tribunal Federal, mas ainda não conseguimos uma decisão definitiva, mais de uma década depois. Isso é o retrato da Justiça neste país.

Foto: Wladimir Aguiar

rd67not01img05

Desafios – Que crime o senhor alega terem sido cometidos nas privatizações?

Comparato - Os bens públicos não pertencem ao Estado, eles são geridos, administrados pelo Estado. Pertencem ao povo brasileiro. A Vale do Rio Doce não foi vendida, foi doada. Em seu processo de avaliação, participou o banco que acabou sendo um dos compradores. Eu digo crime não no sentido técnico, mas num sentido mais profundo: um patrimônio de importância econômica e política considerável foi tirado da propriedade do povo e foi entregue a pessoas privadas. O conjunto dos meios de comunicação de massa foi unânime em sustentar as privatizações.

Desenvolvimento – Com isso tudo, o senhor é um otimista ou um realista?

Comparato - Detesto essa palavra realismo. O realismo significa que sou a favor do status quo, conservador, senão reacionário. Eu enxergo a história no seu longo termo. E nesse longo termo há um avanço ético incontestável. Nós avançamos cada vez mais no sentido do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Os recuos são muito limitados e imediatamente superados. O que é preciso é que nós que queremos influir no processo histórico tenhamos um método, que é aquele que foi idealizado pela resistência francesa na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas. Ele se compõe de três perguntas fundamentais: quem somos, o que queremos e contra quem lutamos. Isto é o que procuramos ensinar na Escola de Governo. Quem somos? Não existe ação política individual. Precisamos saber com quem contamos, que são as pessoas que têm a mesma visão de mundo, não importa se elas são de diferentes religiões e tradições culturais. O que queremos? Aí entra muito a capacidade de construção do jurista. Quando vamos avançar politicamente, nós precisamos construir uma organização determinada. Não basta dizer: queremos o socialismo. O que significa isso? Existem mais de uma centena de socialismos. É preciso dizer exatamente quem terá o poder e como se controla o poder. Esse “o que queremos”, na Escola de Governo, obedece a três grandes princípios: o princípio republicano, democrático e de Estado de Direito. O princípio republicano: o bem comum do povo está acima de qualquer interesse particular, seja de classe, igreja, sindicato, partido político. Toda vez que um direito particular entre em conflito com o bem comum do povo, ele tem de ser posto de lado. O princípio democrático significa que só o povo tem o poder de controle em última instância. O poder de controle do povo significa o poder de responsabilizar os governantes. E, finalmente, o princípio do Estado de Direito, que significa que não pode haver poder sem controle.

 
Copyright © 2007 - DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização.
Revista Desafios do Desenvolvimento - SBS, Quadra 01, Edifício BNDES, sala 1515 - Brasília - DF - Fone: (61) 2026-5334