Artigo

Crises Hídricas: tecnologia e inovação no combate à insuficiência de água

Como o mundo está tratando o problema da escassez da água a partir do uso da tecnologia e inovação

Luis Carlos Hernandez, Leonardo Szigethy

A parcela de água doce apta para o consumo humano corresponde aproximadamente a 1% da água do planeta. Os diversos usos industriais e agropecuários, o aumento populacional e a gestão inadequada têm utilizado excessivamente as fontes hídricas, produzindo crises e afetando mais de 40% da população mundial com a escassez de água. Diante desse panorama, a disponibilidade e gestão sustentável da água entraram na agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) como um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), o ODS número 6.

Em alguns países, como a Holanda, tem surgido o interesse em diminuir o risco de crises hídricas decorrentes de mudanças climáticas. Em outros, como Israel e Estados Unidos, esse risco é constante, já que convivem historicamente com episódios de secas severas. No caso de Israel, devido ao seu déficit de chuvas e por ser um país predominantemente desértico, existe uma disponibilidade hídrica baixa. Nos EUA, as secas estão relacionadas principalmente ao fenômeno El Niño-Oscilação Sul (ENOS)[1], o qual influencia fortemente o clima daquele país. Além disso, crises hídricas ocorrem também em cidades como Kuala Lumpur (Malásia), Londres (Reino Unido) e Cingapura, entre outras.

Existe, portanto, uma preocupação com novos episódios de escassez de água no mundo e a sociedade está pensando em estratégias para diminuir o risco da sua ocorrência. Dentre essas estratégias estão as tecnologias voltadas para o uso sustentável da água, que têm aumentado nos últimos anos. Alguns polos industriais que tratam essas tecnologias e produzem ideias inovadoras estão localizados, por exemplo, em Israel, Holanda e nos EUA.

 

Exemplos de soluções tecnológicas no mundo

De forma a ilustrar soluções tecnológicas que vêm sendo utilizadas no mundo para reduzir o risco de episódios de escassez hídrica, propõe-se um agrupamento de alguns exemplos de desenvolvimento de tecnologias para o uso sustentável da água. O agrupamento é baseado na relação da finalidade das tecnologias com alguns dos componentes de um sistema de abastecimento de água convencional[2], considerando-se ainda os usos da água e o tratamento de esgoto.

Dessa forma, as categorias propostas são a captação e/ou armazenamento, relacionada com captação e reservatório; o tratamento, categoria relacionada com estação de tratamento de água e de esgoto; o monitoramento e gestão, esta relacionada com manancial, estação elevatória, adutora e rede de distribuição, e o controle no consumo, categoria relacionada com os usos da água. Todas são detalhadas a seguir:

Captação e Armazenamento – incluem tecnologias para a captação e/ou armazenamento de água. Um exemplo dessas tecnologias são os sistemas de captação de água das chuvas, que podem possuir variações de forma e funcionamento, mas essencialmente consistem na captação da água pluvial a partir de uma área ou superfície física – comumente telhados de casas ou prédios – , que permite coletar água e direcioná-la até uma rede de tubulações que termina em tanques de armazenamento. Esses sistemas de captação podem ter um tratamento da água associado, dependendo da finalidade de uso da água.

Esse tipo de tecnologia é usado em diversas partes do mundo, como no Reino Unido, onde existem sistemas para fins domésticos ou comerciais, essencialmente o que muda é a escala dos sistemas. Os principais tipos são: i) os sistemas alimentados por gravidade, neles o armazenamento é posicionado no topo das edificações e a gravidade é a encarregada de entregar à água a energia necessária para fluir na rede de distribuição da edificação; e os ii) sistemas alimentados por bombeamento, nesse caso bombas hidráulicas fornecem energia à água para fluir nas redes de distribuição, permitindo uma maior liberdade de posicionamento dos tanques de armazenamento e da zona de captação. Ainda, no segundo tipo, encontra-se um sistema doméstico que controla à distância e em tempo real, a válvula que permite a entrada de água no tanque. Tal sistema permite levar em consideração dados de previsão de chuva, para gerenciar o enchimento, ou esvaziamento se for o caso, do tanque de maneira controlada, por exemplo antes de uma tempestade.

Tratamento – incluem tecnologias que permitem adequar os parâmetros de qualidade da água para determinado fim. Essas novas tecnologias procuram melhorar os processos de tratamento de água e esgotos.

Diante da baixa disponibilidade de água em muitas regiões, uma solução que tem sido bastante utilizada é a dessalinização da água marinha. Um exemplo está em Israel, onde se encontram algumas das maiores plantas dessalinizadoras do mundo e que empregam a tecnologia de filtração por osmose reversa[3].

De forma a melhorar essa tecnologia, o Centro Global de Inovação Aqua e o Instituto de Ciência e Tecnologia de Carbono da Universidade Shinshu, no Japão, em conjunto com o Centro Atomic da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA, estão desenvolvendo, no âmbito das tecnologias de nanofiltração, um sistema de nanomembranas que aumenta sua eficiência devido a uma maior remoção de partículas presentes nas águas salinas.

O sistema é composto por membranas de polímeros sintéticos, que são revestidas por pequenas camadas de uma solução de grafeno, formando camadas adicionais. Esse sistema consegue remover até 85% do material salino e aumenta a resistência das membranas às altas pressões, utilizadas para facilitar a osmose reversa, e ao cloro, empregado para evitar a incrustação de material sólido nos poros das membranas.

Monitoramento e gestão – incluem sistemas de monitoramento da qualidade e quantidade de água e a detecção de vazamentos de água em redes de distribuição. Por exemplo, no Reino Unido e nos EUA as perdas por vazamento em redes de distribuição de água potável são ao redor de 20%.

Algumas tecnologias pertencentes a esta categoria são os Drones. Um deles é utilizado na Universidade da Califórnia (projeto California Heartbeat Initiative-Freshwater) para auxiliar no monitoramento do comportamento da vegetação frente a um estímulo ambiental como ondas de calor, por exemplo. Com esse monitoramento, pretende-se entender a disponibilidade de água na região, para prever possíveis períodos de seca, e, dessa forma, desenvolver estratégias para evitar possíveis impactos socioeconômicos e ambientais.

Utilizando esse drone, obtêm-se numerosas e precisas imagens, em uma escala de cores que permite entender o consumo de água nas plantas, devido ao uso de câmeras acopladas ao drone, que captam comprimentos de onda infravermelhos, com altura de voo mais próxima do solo e sobrevoos constantes. Além disso, as imagens, quando corrigidas geometricamente, conseguem ser similares a um mapa, permitindo obter informações sobre o volume de crescimento e uso da água em florestas com características complexas.

Um drone similar ao anterior desenvolveu-se também na Escola de Arquitetura, Design e Ambiente Construído da Universidade Nottingham Trent, no Reino Unido, para detectar vazamentos de água em redes de distribuição. Nesse drone, as câmeras entregam imagens com um perfil de cores que mostra a mudança de temperatura no solo devido à evaporação de água quando existem vazamentos, algo que não é visível em campo. Essa tecnologia foi testada nos desertos da Líbia, permitindo, dessa forma, o monitoramento de redes de distribuição em áreas remotas.

Controle de Consumo – incluem tecnologias que atuam no controle do uso da água, visando a redução do consumo. Aproximadamente 70% da água para uso humano é utilizada em irrigação, 20% na indústria e 10% no uso doméstico. Portanto, na irrigação estão sendo utilizadas soluções inovadoras que se encontram dentro da categoria Internet of Things (IoT).

Nos EUA, encontram-se tecnologias que regulam a quantidade de água a ser entregue a um cultivo, medindo na área de irrigação o grau de saturação do solo e variáveis ambientais como umidade do ar, temperatura, entre outras. Esse tipo de tecnologia IOT incorpora dispositivos eletrônicos dotados de sensores que medem essas variáveis, e, permite o controle da frequência e da vazão de irrigação. Os sensores são colocados na área de irrigação e após o processamento dessas informações, são enviados relatórios das variáveis medidas ou mapas de irrigação, em tempo real, possibilitando ao agricultor, que pode visualizá-las a partir de uma plataforma acessível em computadores ou smartphones, a tomada de decisão. Ainda, tais informações podem ser enviadas até uma central que logo as envia a uma nuvem de dados, para a consolidação de um banco de dados.

Para tentar reduzir o consumo de água devido à descarga de banheiros, responsável por 30% do consumo doméstico, a Fundação Bill e Melinda Gates está financiando banheiros baratos e sem água, projetados para atender áreas urbanas pobres em países que não têm acesso consistente a água potável e saneamento. Alguns dos favorecidos por esse projeto, por meio do concurso Reinvent The Toilet Challenge, foram pesquisadores da Universidade de Colorado, em Boulder, que construíram um sistema que transforma fezes humanas em fertilizantes utilizando como combustível a energia solar.

Nesse sistema, utilizando vários espelhos parabólicos, a energia solar é concentrada em um só ponto. Logo, a partir de um cabeado composto por cabos de fibra ótica, a energia é transmitida até uma câmera de reação que contém as fezes. Essa câmera é esquentada a mais de 600 graus Fahrenheit para desinfetar as fezes e produzir um fertilizante. O fertilizante resultante, o Biochar, é um carvão poroso que ajuda a melhorar as propriedades agrícolas do solo, já que aumenta a capacidade de retenção de água e nutrientes no solo. Além disso, o Biochar, quando queimado, é um combustível com igual desempenho ao de carvões vegetais comumente comercializados.

Uma solução para o controle do uso da água industrial está incluída naquelas mencionadas anteriormente, como por exemplo, para as indústrias têxteis o sistema de membranas revestidas com grafeno consegue remover até um 96% de corantes aniônicos, permitindo a reutilização de águas empregadas em processos de coração.

Os avanços tecnológicos e ideias inovadoras se apresentam como possibilidades para alcançar as metas do ODS 6. Dessa forma, visando ilustrar o que vem sendo utilizado no mundo, mostraram-se alguns exemplos de soluções tecnológicas para minimizar o risco de crises hídricas.

Esses exemplos são importantes contribuições para minimizar esse risco, e dependendo do perfil do usuário da água, a classificação proposta permite identificar qual tipo de solução tecnológica atende às suas necessidades.

 

[1]O El Niño-Oscilação Sul (ENOS) é um dos fenômenos climáticos mais importantes no planeta. Pode levar a mudanças em grande escala nas pressões do nível do mar, temperaturas da superfície do mar, precipitação e ventos, não apenas nos trópicos, mas em muitas outras regiões do mundo.

[2]Os componentes de um sistema de abastecimento de água convencional, em sequência, são: manancial, captação, estação elevatória, adutora, estação de tratamento de água, reservatório e rede de distribuição. Concepção de Sistemas de Abastecimento de água. Em: Abastecimento de água. Tsutiya, M.T.,DEHS-EPUSP, São Paulo, 2006.

[3] Tecnologia de filtração que se baseia na aplicação de excesso de pressão para reverter o processo espontâneo de osmose, em que uma solução se move através de uma membrana semipermeável, de concentração mais baixa à mais alta.

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