Artigo
Fé no conhecimento
Como a humanidade enxerga a ciência e a tecnologia?
Publicado em 17/06/2019 - Última modificação em 23/12/2020 às 14h37
Nos últimos anos, a facilidade de comunicação e as redes sociais deram visibilidade a teses e ideias que antes ficavam restritas a pequenos grupos de pessoas sem expressão. As fake news e as mais diversas teorias da conspiração são expressões desse problema. Ideias equivocadas que se opõem a todo o conhecimento científico acumulado ao longo de milênios pela humanidade se tornaram, para surpresa geral, assunto de discussão pública e ganharam uma projeção inimaginável até pouco tempo atrás. Um exemplo disso é a teoria de “terra plana” que, de ideia obscura cultivada por grupos semi religiosos, passou a tema de discussões públicas nas redes sociais. Uma busca no google trends[1] mostra que o termo “flat earth” teve um crescimento de mais de 5 vezes na frequência pela qual é pesquisado no google em 2017, frente aos padrões históricos. No caso do Brasil, o termo terraplanista era praticamente inexistente nas pesquisas do google até o ano passado. Isso não significa, necessariamente, que mais pessoas passaram a acreditar nesse tipo de teoria, mas que ela se tornou objeto de debate mais frequente, o que já é um fato inusitado.
A ideia de terra plana é um exemplo extremo de insciência. Existem outros não tão exagerados mas também muito distantes do conhecimento científico estabelecido. A dúvida sobre o fenômeno do aquecimento global, contra todas as evidências científicas existentes é um outro exemplo crítico, assim como o movimento anti-vacinas. Vale lembrar também o caso da aprovação, em 2016, pelo Congresso Brasileiro, com sanção da então presidenta da república, do uso da fosfoetanolamina por pacientes com câncer, sem que a substância jamais tivesse sido testada em animais ou em humanos (etapas indispensáveis para o desenvolvimento de um medicamento). Nesse caso, a sociedade brasileira, por meio de seus representantes, simplesmente ignorou o conhecimento científico estabelecido em prol de uma suposta (e irreal) cura para o câncer. A lei 13269[2] é um retrato desolador de ignorância científica. Recentemente, um reconhecido pesquisador norte-americano, Tom Nichols, publicou um livro chamado “a morte da expertise”, sobre como o conhecimento tem sido visto na sociedade norte-americana no período recente. A tese defendida por ele é que tem crescido a descrença do cidadão comum no conhecimento técnico e científico estabelecido e, mais do que isso, tem crescido um movimento de rejeição ao conhecimento.
Será verdade que as pessoas deixaram (ou estão deixando) de acreditar no conhecimento científico e no potencial desse conhecimento em melhorar a vida das pessoas? Será mesmo que estamos testemunhando o crescimento de um movimento global de anti-intelectualismo? Algumas pistas sobre o assunto podem ser encontradas numa pesquisa chamada World Values Survey[3] e mostram um cenário um pouco diferente. Essa pesquisa procura avaliar, desde 1981, as mudanças nos valores e nas crenças da humanidade e como isso impacta a vida social e política das pessoas ao redor do mundo. A amostra utilizada na pesquisa é representativa dos quase 100 países analisados e, ao longo das suas seis edições, entrevistou mais de 400 mil pessoas. Os gráficos abaixo se referem à última edição, que cobre o período de 2010 a 2014 e na qual foram entrevistadas cerca de 90 mil pessoas no mundo e quase 1500 no Brasil.
Ao se depararem com a afirmação de que “a ciência e a tecnologia estão tornando nossas vidas mais saudáveis, mais fáceis e mais confortáveis”, 58% dos respondentes concordaram muito fortemente com ela (escolheram uma nota acima de 8 para o nível de concordância, numa escala de 1 a 10). E esse número vem aumentando. Na edição de 2005 a 2009, os que responderam da mesma forma tinham sido 49%, o mesmo número obtido no Brasil em 2010 a 2014. Se tomarmos todos aqueles que, em alguma medida (qualquer número acima de 6), manifestaram concordar com essa afirmação, esse percentual chega a 78% no mundo e a 65% no Brasil.
Em que medida os entrevistados concordam com a afirmação: “A ciência e a tecnologia estão tornando nossas vidas mais saudáveis, mais fáceis e mais confortáveis”
A síntese é que, no Brasil, o reconhecimento dos impactos positivos da ciência e da tecnologia na vida cotidiana, embora seja majoritário, não é tão expressiva quanto a média mundial. A peculiaridade brasileira talvez esteja no número expressivo de pessoas que afirmam discordar completamente dessa afirmação: 8% das pessoas entrevistadas discordam completamente que a ciência e a tecnologia têm melhorado nossas vidas ante cerca de 2% na média mundial.
Por outro lado, o percentual dos que concordam completamente com a afirmação é de 30%, bem maior que a média do mundo.
Quando a afirmativa se refere ao futuro, a confiança é um pouco maior tanto no mundo quanto no Brasil. Na média mundial, cerca de 80% dos respondentes concordam, em alguma medida, com a afirmação de que, por causa da C&T, haverá mais oportunidades para as próximas gerações. No Brasil esse percentual é de 74%, mostrando que a confiança nos impactos futuros da C&T são ainda maiores do que o reconhecimento dos seus impactos no presente. Em alguma medida, esses resultados refletem na confiança que as pessoas dizem depositar na instituição símbolo do progresso científico e tecnológico: a universidade. No mundo, 67% dos entrevistados dizem confiar bastante nas universidades e, no Brasil, 73%.
Oras, se a confiança na ciência e nas universidades é assim, expressiva, o que explica a emergência de ideias e teorias que vão contra todo o conhecimento acumulado pela humanidade até o momento? Será que essas ideias continuam sendo expressivamente minoritárias e apenas ganharam visibilidade no período recente?
Uma outra questão que pode ajudar a interpretar esses fenômenos é a contraposição entre conhecimento científico e fé. Nessa questão, pede-se para o respondente dizer se concorda ou discorda (numa escala de 1 a 4 que vai da concordância completa à completa discordância) da afirmação de que “quando ciência e religião entram em conflito, a religião está sempre certa”. No mundo, 48% concordam com essa afirmativa, contra 43% que discordam (9% não responderam, um percentual bem maior do que nas outras questões). Nos países de renda mais alta, como Alemanha, EUA e Coréia do Sul, a ciência tem preponderância sobre a religião, com larga vantagem. No Brasil, também, a fé na ciência parece ser maior do que a fé na religião: apenas 38% concordam com essa afirmação de que a religião estaria sempre certa e 52% discordam dela.
Em que medida os entrevistados concordam com a afirmação: “Quando a ciência e a religião entram em conflito, a religião está sempre certa”
Ora, apesar de todo o reconhecimento dos benefícios do progresso científico e tecnológico, a humanidade, exceto nos países desenvolvidos, parece estar dividida quando o conhecimento científico se contrapõe à religião. Resta saber se essa divisão se manifestaria apenas em temas complexos, como a origem da vida, onde a própria ciência ainda não tem todas as respostas, ou se valeria para verdades incontestáveis, como a forma da terra. O que o conjunto da pesquisa parece sugerir é que a crença no conhecimento científico e nas instituições que produzem esse conhecimento ainda é preponderante.
[1] Ferramenta que apresenta séries históricas do número de buscas realizadas no google por determinada palavra-chave
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13269.htm
[3] http://www.worldvaluessurvey.org/wvs.jsp