Artigo

Fé no conhecimento

Como a humanidade enxerga a ciência e a tecnologia?

Fernanda De Negri, Luis Carlos Hernandez, Priscila Mello Alves

Nos últimos anos, a facilidade de comunicação e as redes sociais deram visibilidade a teses e ideias que antes ficavam restritas a pequenos grupos de pessoas sem expressão. As fake news e as mais diversas teorias da conspiração são expressões desse problema. Ideias equivocadas que se opõem a todo o conhecimento científico acumulado ao longo de milênios pela humanidade se tornaram, para surpresa geral, assunto de discussão pública e ganharam uma projeção inimaginável até pouco tempo atrás. Um exemplo disso é a teoria de “terra plana” que, de ideia obscura cultivada por grupos semi religiosos, passou a tema de discussões públicas nas redes sociais. Uma busca no google trends[1] mostra que o termo “flat earth” teve um crescimento de mais de 5 vezes na frequência pela qual é pesquisado no google em 2017, frente aos padrões históricos. No caso do Brasil, o termo terraplanista era praticamente inexistente nas pesquisas do google até o ano passado. Isso não significa, necessariamente, que mais pessoas passaram a acreditar nesse tipo de teoria, mas que ela se tornou objeto de debate mais frequente, o que já é um fato inusitado.

A ideia de terra plana é um exemplo extremo de insciência. Existem outros não tão exagerados mas também muito distantes do conhecimento científico estabelecido. A dúvida sobre o fenômeno do aquecimento global, contra todas as evidências científicas existentes é um outro exemplo crítico, assim como o movimento anti-vacinas. Vale lembrar também o caso da aprovação, em 2016, pelo Congresso Brasileiro, com sanção da então presidenta da república, do uso da fosfoetanolamina por pacientes com câncer, sem que a substância jamais tivesse sido testada em animais ou em humanos (etapas indispensáveis para o desenvolvimento de um medicamento). Nesse caso, a sociedade brasileira, por meio de seus representantes, simplesmente ignorou o conhecimento científico estabelecido em prol de uma suposta (e irreal) cura para o câncer. A lei 13269[2] é um retrato desolador de ignorância científica. Recentemente, um reconhecido pesquisador norte-americano, Tom Nichols, publicou um livro chamado “a morte da expertise”, sobre como o conhecimento tem sido visto na sociedade norte-americana no período recente. A tese defendida por ele é que tem crescido a descrença do cidadão comum no conhecimento técnico e científico estabelecido e, mais do que isso, tem crescido um movimento de rejeição ao conhecimento.

grafico terraplana

Será verdade que as pessoas deixaram (ou estão deixando) de acreditar no conhecimento científico e no potencial desse conhecimento em melhorar a vida das pessoas? Será mesmo que estamos testemunhando o crescimento de um movimento global de anti-intelectualismo? Algumas pistas sobre o assunto podem ser encontradas numa pesquisa chamada World Values Survey[3] e mostram um cenário um pouco diferente. Essa pesquisa procura avaliar, desde 1981, as mudanças nos valores e nas crenças da humanidade e como isso impacta a vida social e política das pessoas ao redor do mundo. A amostra utilizada na pesquisa é representativa dos quase 100 países analisados e, ao longo das suas seis edições, entrevistou mais de 400 mil pessoas. Os gráficos abaixo se referem à última edição, que cobre o período de 2010 a 2014 e na qual foram entrevistadas cerca de 90 mil pessoas no mundo e quase 1500 no Brasil.

Ao se depararem com a afirmação de que “a ciência e a tecnologia estão tornando nossas vidas mais saudáveis, mais fáceis e mais confortáveis”, 58% dos respondentes concordaram muito fortemente com ela (escolheram uma nota acima de 8 para o nível de concordância, numa escala de 1 a 10). E esse número vem aumentando. Na edição de 2005 a 2009, os que responderam da mesma forma tinham sido 49%, o mesmo número obtido no Brasil em 2010 a 2014. Se tomarmos todos aqueles que, em alguma medida (qualquer número acima de 6), manifestaram concordar com essa afirmação, esse percentual chega a 78% no mundo e a 65% no Brasil.

Em que medida os entrevistados concordam com a afirmação: “A ciência e a tecnologia estão tornando nossas vidas mais saudáveis, mais fáceis e mais confortáveis”

ciencia tecnologia grafico

A síntese é que, no Brasil, o reconhecimento dos impactos positivos da ciência e da tecnologia na vida cotidiana, embora seja majoritário, não é tão expressiva quanto a média mundial. A peculiaridade brasileira talvez esteja no número expressivo de pessoas que afirmam discordar completamente dessa afirmação: 8% das pessoas entrevistadas discordam completamente que a ciência e a tecnologia têm melhorado nossas vidas ante cerca de 2% na média mundial.

Por outro lado, o percentual dos que concordam completamente com a afirmação é de 30%, bem maior que a média do mundo.

Quando a afirmativa se refere ao futuro, a confiança é um pouco maior tanto no mundo quanto no Brasil. Na média mundial, cerca de 80% dos respondentes concordam, em alguma medida, com a afirmação de que, por causa da C&T, haverá mais oportunidades para as próximas gerações. No Brasil esse percentual é de 74%, mostrando que a confiança nos impactos futuros da C&T são ainda maiores do que o reconhecimento dos seus impactos no presente. Em alguma medida, esses resultados refletem na confiança que as pessoas dizem depositar na instituição símbolo do progresso científico e tecnológico: a universidade. No mundo, 67% dos entrevistados dizem confiar bastante nas universidades e, no Brasil, 73%.

Oras, se a confiança na ciência e nas universidades é assim, expressiva, o que explica a emergência de ideias e teorias que vão contra todo o conhecimento acumulado pela humanidade até o momento? Será que essas ideias continuam sendo expressivamente minoritárias e apenas ganharam visibilidade no período recente?

Uma outra questão que pode ajudar a interpretar esses fenômenos é a contraposição entre conhecimento científico e fé. Nessa questão, pede-se para o respondente dizer se concorda ou discorda (numa escala de 1 a 4 que vai da concordância completa à completa discordância) da afirmação de que “quando ciência e religião entram em conflito, a religião está sempre certa”. No mundo, 48% concordam com essa afirmativa, contra 43% que discordam (9% não responderam, um percentual bem maior do que nas outras questões). Nos países de renda mais alta, como Alemanha, EUA e Coréia do Sul, a ciência tem preponderância sobre a religião, com larga vantagem. No Brasil, também, a fé na ciência parece ser maior do que a fé na religião: apenas 38% concordam com essa afirmação de que a religião estaria sempre certa e 52% discordam dela.

Em que medida os entrevistados concordam com a afirmação: “Quando a ciência e a religião entram em conflito, a religião está sempre certa”

ciencia religiao grafico

Ora, apesar de todo o reconhecimento dos benefícios do progresso científico e tecnológico, a humanidade, exceto nos países desenvolvidos, parece estar dividida quando o conhecimento científico se contrapõe à religião. Resta saber se essa divisão se manifestaria apenas em temas complexos, como a origem da vida, onde a própria ciência ainda não tem todas as respostas, ou se valeria para verdades incontestáveis, como a forma da terra. O que o conjunto da pesquisa parece sugerir é que a crença no conhecimento científico e nas instituições que produzem esse conhecimento ainda é preponderante.

 

[1] Ferramenta que apresenta séries históricas do número de buscas realizadas no google por determinada palavra-chave

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13269.htm

[3] http://www.worldvaluessurvey.org/wvs.jsp