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Experimento chinês confronta limites entre ética e ciência
Edição genética anunciada em Hong Kong reacende discussões sobre conduta de cientistas em pesquisas envolvendo seres humanos
Publicado em 11/11/2019 - Última modificação em 02/09/2021 às 20h29
Anunciado em novembro de 2018, durante o Congresso Mundial de Edição Genética, em Hong Kong, o experimento do cientista chinês He Jiankui, que revelou ter editado embriões saudáveis com a técnica de CRISPR-cas9, uma ferramenta genética que corta a sequência do DNA e o reconfigura para obter uma modificação – no caso, tornando-o imune ao vírus HIV – causou apreensão e gerou uma série de debates entre seus pares e nas sociedades científicas mundiais.
As discussões não se deram apenas pelo uso da técnica, que consiste em intervir no DNA para reproduzir um mecanismo de defesa natural encontrado em diversas bactérias, mas pelas implicações éticas decorrentes do experimento, do qual, afirmou o cientista chinês, nasceram duas meninas gêmeas geneticamente modificadas.
O feito anunciado reacendeu a questão sobre quais seriam os limites para interferir no genoma das futuras gerações de seres humanos.
Criado em 2013 e ainda em aperfeiçoamento, o sistema CRISPR permite acrescentar, modificar e interromper sequências genéticas – uma sequência de DNA é repetida várias vezes, com sequências únicas entre as repetições –, o que foi descrito por cientistas como agrupados de curtas repetições palindrômicas regularmente interespaçadas (CRISPR, na sigla em inglês). Resumidamente, ele permite o reconhecimento de um DNA exógeno específico e sua consequente eliminação, caso entre em contato com o organismo, atuando como mecanismo de defesa.
Ainda que a técnica seja conhecida, vale mencionar que, do ponto de vista dos procedimentos científicos, Jiankui, da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, em Shenzhen, não publicou dados de sua pesquisa em nenhum periódico, tampouco compartilhou informações que comprovem sua veracidade.
Além do experimento em si, os questionamentos se concentram também nos motivos pelos quais ele realizou a suposta edição genética – imunizar o organismo ao vírus HIV por meio da desativação do gene CCR5, que permite a entrada do vírus na célula –, que poderiam ser enfrentados usando-se outros mecanismos, mais conhecidos e seguros, segundo cientistas. Afinal, não há, até o momento, segurança na aplicação da técnica CRISPR, que pode provocar a alteração de outros genes de forma imprevisível.
“A tecnologia CRISPR é muito promissora e está sendo usada com bastante eficiência por laboratórios para editar, por exemplo, genes que causam doenças genéticas. Mas há riscos, pois não há certeza de que se atinja apenas o gene escolhido, e o perigo de que outros alvos sejam atingidos existe. É o chamado efeito off target”, diz Mayana Zatz, diretora do Centro de Genoma Humano da Universidade de São Paulo.
Para ela, o experimento se compara a uma bala perdida. “Um tiro disparado em direção a um determinado alvo traz em si o risco de acertar outro, com consequências imprevisíveis, e em ciência isso precisa ser considerado”, observa.
Limites éticos
Ainda que a experiência narrada por Jiankui seja questionada, o cerne da discussão gira em torno dos limites entre as possíveis aplicações da técnica para o controle e prevenção de doenças, o que de fato se busca, e a possibilidade de edições genéticas futuras em que embriões humanos possam ser editados geneticamente apenas para alterar características físicas.
O temor justifica-se não apenas pelos problemas decorrentes de mudanças no genoma de futuras gerações, mas também pelo que poderia ser caracterizado como eugenia, prática considerada eticamente inaceitável por cientistas e instituições de pesquisa.
Caso não sejam fraude, os resultados descritos por Jiankui mostram que só uma das meninas apresenta a mudança desejada − e que as duas irmãs podem exibir mutações indesejadas e de efeitos desconhecidos, que poderiam ser herdadas por seus filhos. “Seria um experimento sem nenhuma vantagem médica, já que os embriões estavam saudáveis antes da interferência, e as modificações poderão ser transmitidas para as próximas gerações, caso tenham atingido células germinativas”, explica Mayana.
Para a geneticista da USP, enquanto não for possível lidar com a CRISPR com segurança, deve ser respeitada uma moratória, ou seja, um período sem pesquisas em embriões até que se possa garantir segurança ao procedimento. “Em genética, não há sentido em editar um gene para corrigir falhas para as quais existem outras técnicas promissoras, já testadas, e que podem ser usadas em pacientes adultos, por edição de células da medula óssea”, conta.
Como exemplo, ela cita o caso de um paciente com leucemia e Aids que, há 11 anos, na Alemanha, recebeu transplante de células da medula óssea de um doador compatível, que também apresentava mutação CCR5 (que confere resistência ao HIV), e obteve êxito no tratamento, curando-se das duas doenças. Isso demonstra, segundo ela, que é possível optar por um tratamento modificando células da medula óssea de um adulto, e não de embriões.
No caso do pesquisador chinês, diferentes cientistas declararam na mídia que a experiência como descrita não justificaria o uso da CRISPR, com o agravante de que o cientista nem sequer abordava uma doença considerada grave ou sem tratamento.
Além disso, de acordo com outros cientistas chineses presentes no evento e com a própria universidade onde o experimento teria sido realizado, o caso não era de conhecimento dos pares, tampouco foi aprovado por comitês de ética em pesquisa.
Rigor científico e legislação
Três dias após o anúncio de Jiankui, autoridades chinesas suspenderam suas atividades de pesquisa, alegando que o cientista violara leis e regulamentos do país, e o cientista agora será investigado pela Comissão Nacional de Saúde da China.
Os indícios do experimento denotam, segundo Mayana, que o caso ultrapassou todos os limites éticos relacionados a pesquisas, pacientes e revistas científicas, porque não se sabe se foi de fato realizado, não passou pelo crivo de outros cientistas e porque não será permitido investigar ou acompanhar as crianças clinicamente, para salvaguardar suas identidades.
Por outro lado, ela observa que um fato como esse, mesmo sendo perigoso e prematuro, não deve ser usado como argumento para impedir que outras pesquisas envolvendo CRISPR avancem. Segundo ela, existem estudos sobre como alterações no sistema imunológico podem ser benéficas para, por exemplo, reconhecer chances de que um tumor pudesse ser atacado e destruído pelo sistema imune.
“O uso clínico da CRISPR para o tratamento de doenças genéticas, com casos de gravidade elevada, deve estar no foco das pesquisas, para que a técnica seja apurada e os perigos quanto ao seu uso sejam eliminados. Assim, ela poderá se configurar em uma grande aliada nos tratamentos genéticos”, finaliza, esclarecendo que defende pesquisas envolvendo embriões, desde que feitas com aqueles descartados e não implantados.
Para tanto, a legislação vigente em diferentes países deve ser observada e os prazos científicos respeitados, considerando-se os limites éticos apontados por cientistas, instituições e sociedades, mas sem interrupção das pesquisas e possíveis aplicações de seus resultados.