Artigo

Um novo marco legal nos mercados digitais

A Agenda Brasil Digital e os desafios de regulação da economia de plataformas

Tulio Chiarini[1]

Marcos Puccioni de Oliveira Lyra[2]

Luiz Carlos Delorme Prado[3]

O governo federal realizou uma cerimônia em 17 de setembro para anunciar uma proposta de reordenação da relação Estado, infraestruturas digitais e plataformas. O evento, chamado de “Agenda Brasil Digital”, reuniu três anúncios: a sanção do Projeto de Lei (PL) nº 2.628/2022, a edição de decretos e medidas provisórias voltadas à infraestrutura de dados e o envio ao Congresso de um projeto sobre concorrência em mercados digitais (PL nº 4.675/2025). Este breve texto apresenta essas medidas, discutindo o último anúncio.

Sobre as medidas

O PL nº 2.628/2022 (chamado de PL da adultização) deu origem à Lei nº 15.211/2025 — o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA digital) —, que, segundo o governo, entrará em vigor em seis meses (MP nº 1.319). No mesmo ato, foi assinado o Decreto nº 12.622/2025, que atribui à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) competência administrativa autônoma para atuar na proteção de crianças e adolescentes no mundo digital e receber ordens judiciais de bloqueios de postagens e plataformas.

Paralelamente, a Medida Provisória nº 1.318/2025 instituiu regimes especiais de tributação: o REPES, para plataformas de exportação de serviços de tecnologia da informação, e o REDATA, para serviços de data center. Essas medidas integram a Política Nacional de Data centers, cujo objetivo é atrair investimentos e ampliar a capacidade do país de processar e armazenar dados — uma prioridade diante do avanço de modelos complexos de inteligência artificial (IA), sobretudo a generativa. 

Por fim, o governo encaminhou ao Congresso um projeto (PL nº 4.675/2025) de modificação da Lei nº 12.529/2011 —  a qual estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência —, alterando as atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com instrumentos para atuar com eficácia no combate a condutas anticompetitivas e em atos de concentração em mercados digitais. Em especial, cria uma superintendência de mercados digitais e novos procedimentos administrativos aplicáveis nesses mercados.

Essas ações não acontecem ao acaso, mas fazem parte de um processo maior de digitalização, dataficação e plataformização da vida social e econômica.

Digitalização, dataficação e plataformização

Como já amplamente apontado pela literatura especializada, as plataformas deixaram de ser meros serviços para se tornar infraestruturas que reconfiguram mercados, trabalho, espaço público e cultura. À medida que empresas controladoras de plataformas digitais ampliam sua presença na economia, aumenta a preocupação no Brasil — e em outros países — sobre a capacidade dessas empresas usarem seu poder econômico para alavancar poder político, prejudicar interesses da sociedade e ameaçar a soberania digital do país.  

O poder das plataformas se manifesta em diferentes níveis. Em um instigante trabalho, Victo Silva sintetiza essa dinâmica em três níveis: no nível intraecossistema, as plataformas podem usar seu poder assimétrico para impor modelos de negócio e padrões que reduzem a autonomia de trabalhadores e complementadores — como desenvolvedores e criadores de conteúdo — e favorecer seus próprios serviços por meio de mecanismos algorítmicos opacos. No nível interecossistema, a eliminação da concorrência ocorre por meio de estratégias como o platform envelopment — quando um serviço incorpora funcionalidades de rivais — e por fusões e aquisições focadas em neutralizar ameaças futuras.

No nível macro, o domínio das plataformas leva à privatização de infraestruturas essenciais, a disputas por valores públicos e à erosão da soberania digital, à medida que empresas privadas passam a moldar áreas como jornalismo, cultura e publicidade sem assumir responsabilidades equivalentes ao seu alcance.

O pacote anunciado pelo governo brasileiro tenta responder a esse quadro em três frentes: proteção social (com o ECA Digital), fortalecimento da capacidade técnica nacional (com os REPES/REDATA) e ação regulatória sobre práticas anticompetitivas (com o PL nº 4.675/2025 para mercados digitais).

A iniciativa do governo e as medidas propostas contribuem para enfrentar os desafios do crescimento desses novos mercados digitais. Contudo, a eficácia das medidas dependerá da capacidade de prover quadros técnicos e qualidade decisória para a implementação desses marcos regulatórios, da capacidade de fiscalização das instituições envolvidas e do estabelecimento de canais de comunicação com atores públicos. O desenho final desse marco legal depende ainda da discussão pública das políticas propostas, da adequada divulgação para a sociedade da necessidade dessas políticas e de sua aprovação pelo Congresso Nacional.

A disputa que se inicia não é apenas técnica, mas também política e simbólica. Definir regras para plataformas significa decidir quem controla os dados, quem regula os algoritmos e que tipo de responsabilidades essas empresas terão frente à sociedade. Trata-se não apenas de controlar o abuso do poder econômico de empresas digitais, mas de impedir que esse poder econômico se transforme em poder político, que possa ser usado para fins privados e contra os interesses da população. Portanto, são medidas importantes para a ordem econômica, mas também para a soberania nacional, em um momento de profunda incerteza e instabilidade nas relações internacionais. 

Detalhes do PL nº 4.675/2025 sobre competição de plataformas

Há alguns anos os debates sobre a regulação econômica das plataformas digitais se acirram em diversas jurisdições. No Brasil, o PL nº 2.768/2022, que trata sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro, recebeu diversas críticas e, desde 2023, encontra-se na Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados para a realização de audiências públicas. 

O PL nº 4.675/2025 apresentado pelo Executivo na semana passada endereça várias dessas críticas. Elaborada a partir de estudo do Ministério da Fazenda — que contou com contribuições de diferentes setores da sociedade por meio de Tomada de Subsídios —, abarca aspectos econômicos e concorrenciais das plataformas digitais.

Diferentemente do projeto anterior, que atribuía à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) a competência para regular o setor, a proposta encaminhada pelo governo federal dá ao CADE responsabilidade de supervisionar esses mercados, com a criação de uma Superintendência de Mercados Digitais que ficará encarregada de definir os agentes econômicos de relevância sistêmica — os entes a serem regulados — e as obrigações e proibições a eles imposta.

Essa proposta aproxima o Brasil dos modelo britânico e europeu, em que a Competition and Markets Authority (CMA) e a Comissão Europeia assumiram a função de reguladores do setor. A escolha pelo órgão se dá pela tradição de atuação horizontal em diferentes mercados intrínseca ao antitruste. É importante lembrar que os mercados mediados por plataformas digitais são muitos e totalmente diferentes entre si.

O PL nº 4.675/2025 prevê duas etapas para a regulação: primeiro, a designação dos entes regulados; e a definição das obrigações e proibições aplicáveis. A designação combina critérios quantitativos e qualitativos. Do ponto de vista quantitativo, a empresa precisa registrar faturamento bruto anual global superior a R$ 50 bilhões ou faturamento bruto no Brasil superior a R$ 5 bilhões. Do ponto de vista qualitativo, deve apresentar características típicas das grandes plataformas digitais, como atuação em mercados de múltiplos lados — nos quais uma plataforma conecta grupos distintos de usuários e cria valor a partir da suas interação —, geração de efeitos de rede, presença em integrações verticais e atuação em mercados adjacentes, entendidos como setores complementares à sua atividade principal explorados para reforçar o ecossistema e consolidar vantagens competitivas. Além disso, o texto do PL considera critérios como a posse de posição estratégica para o desenvolvimento de negócios de terceiros, o acesso a grandes volumes de dados pessoais e comerciais relevantes, a manutenção de um número expressivo de usuários profissionais e finais, e a oferta de múltiplos produtos ou serviços digitais.

Em relação à definição das obrigações e proibições aplicáveis, embora o universo de empresas sob escrutínio seja relativamente restrito, elas são rigorosas: vão desde uma submissão mandatória de fusões e aquisições — mesmo as que não atendem os critérios mínimos de submissão tradicional do CADE — a obrigações de divulgação de informações e de adoção de práticas que estimulam a concorrência.

Pode-se destacar ainda outras obrigações relacionada à divulgação, de forma clara e acessível, a todos os usuários finais (empresas ou profissionais) de modo a tornar transparentes os critérios de ranqueamento, os termos de uso e a estrutura de preços aplicada aos seus produtos e serviços, além de divulgar informações sobre remuneração e taxas cobradas. Também ficarão proibidas de adotar práticas anticompetitivas, como favorecer produtos próprios ou realizar vendas casadas, e terão de oferecer gratuitamente ferramentas que garantam a interoperabilidade de dados, além de apresentar relatórios periódicos de conformidade ao CADE.

Por fim, o projeto estabelece que o CADE deverá atuar em cooperação com outras agências reguladoras para tratar de questões setoriais específicas, reforçando a coordenação institucional necessária à regulação dos mercados digitais.

Considerações finais

Ao apresentar três frentes de atuação, o governo federal sinaliza que regular a economia de plataformas é necessário, mas não suficiente. Trata-se de combinar medidas de defesa de concorrência e regulação econômica com política industrial.  Este é o caso do REPES e REDATA e das iniciativas vinculadas à missão de Transformação Digital da indústria no âmbito da Nova Indústria Brasil (NIB).

A questão da defesa de concorrência e regulação econômica com política industrial em relação ao mundo digital é debatida em jurisdições tão diversas como os EUA, a União Europeia, Índia, China e Rússia. Com essas iniciativas, o Brasil segue as boas políticas de concorrência e regulatórias em curso nas principais jurisdições das diversas regiões do mundo, nesta terceira década do século XXI.

Os desafios são muitos e a estrada é longa. Por enquanto, algumas perguntas (e provocações) surgem, cujas respostas serão decisivas para definir o caminho que a sociedade brasileira deseja trilhar neste novo mundo. 1) Como compatibilizar a defesa da concorrência e seus novos instrumentos com políticas industriais orientadas ao fomento, sem que uma dimensão neutralize a outra? 2) Em que medida os instrumentos de financiamento à infraestrutura digital serão apropriados por empresas nacionais, e não apenas por big techs internacionais? 3) Finalmente, quais os efeitos concretos dessas medidas na redistribuição de poder, transparência e acessibilidade no mundo plataformizado?

[1]Analista em ciência e tecnologia do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CTS-Ipea)

[2]Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF)

[3]professor no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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