Artigo

O desenvolvimento da indústria farmoquímica brasileira

Um desafio-chave na consolidação da cadeia farmacêutica nacional

Ricardo Lobato Torres[1]

A fabricação de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) constitui há décadas um elo frágil na cadeia produtiva da indústria farmacêutica brasileira. Com o desenvolvimento dos antibióticos e do paradigma de inovação baseado na síntese química após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil, que até então tinha capacidade interna de produção de soros e medicamentos biológicos de extratos vegetais, cedeu espaço para laboratórios estrangeiros (Torres, 2015). A implantação da manufatura de IFAs farmoquímicos no país ocorreu justamente por meio de suas subsidiárias — ainda que de forma restrita, com o consumo interno suprido majoritariamente por importações —, em um contexto de proteção comercial e incentivos à substituição de importações (Ferraz et al., 1988; Kupfer; Cabral, 1988).

O Código de Propriedade Industrial, vigente de 1945 a 1995, não concedia patentes a produtos e processos químico-farmacêuticos, mas isso não foi suficiente para induzir o desenvolvimento de uma indústria nacional de IFAs-cópia, como se deu na Índia (Torres; Hasenclever, 2017). A política industrial voltada à farmoquímica no Brasil surgiu nos anos 1980, com marcos importantes da década anterior, como a criação da Central de Medicamentos (Ceme), em 1971, e da Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), em 1976 — esta última em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o então Ministério da Indústria e Comércio.

Em 1984, a Ceme e a Secretaria de Tecnologia Industrial (STI) concentraram esforços na Codetec por meio do “Programa de Apoio Tecnológico em Química Fina e Fármacos”, visando a implantação de uma unidade de produção piloto e flexível de tecnologias químico-farmacêuticas. Essa iniciativa recebeu investimentos significativos das três entidades, o que resultou no desenvolvimento de cerca de 80 processos de produção de IFAs por engenharia reversa, dos quais 20 foram utilizados por empresas brasileiras (Ferraz et al., 1988; Mitidieri et al., 2015).

Outra ação fundamental da época foi a Portaria Interministerial nº 4 de 1984, que visava proteger a indústria doméstica mediante restrições às importações de farmoquímicos, elevando as tarifas para produtos que poderiam ser fabricados no Brasil e reduzindo as tarifas para intermediários de síntese química. Tais políticas incentivaram a substituição de importações e a criação de empresas especializadas na produção de IFAs (Arrepia, 2013; Costa et al., 2014). Nesse contexto, surgiram a Companhia Brasileira de Antibióticos (CIBRAN), em 1974, a Microbiológica — uma spin-off da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) —, em 1981, e a NORTEC Química — em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) —, em 1985 (Torres; Hasenclever, 2017). As duas últimas, atuantes até hoje, têm origem em parcerias com instituições estatais, o que reforça a importância daquela política industrial.

A década de 1990 encerrou essa incipiente tentativa de desenvolvimento do setor. Com a abertura comercial, reduziram-se as tarifas de importação e eliminaram-se as barreiras não tarifárias. Os benefícios da Portaria Interministerial nº 4 foram extintos, removendo os mecanismos de proteção às empresas nacionais, o que produziu um enfraquecimento da competitividade da nascente indústria farmoquímica nacional. Muitas companhias multinacionais passaram a importar insumos, desativando suas unidades produtivas no Brasil. Adicionalmente, a Lei de Propriedade Industrial de 1996, alinhada com o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS), estabeleceu a proteção de patentes para produtos e processos químico-farmacêuticos, aumentando assim as barreiras à competição imitativa. Tudo isso levou ao estancamento do desenvolvimento do setor farmoquímico no país e ao gradativo aumento da dependência por IFAs importados (Arrepia, 2013; Costa et al., 2014; Mitidieri et al., 2015; Silva; Caliari, 2017).

O final da década de 1990 trouxe dois marcos importantes: (i) a Lei dos Genéricos, que regulamentou o registro abreviado de medicamentos equivalentes aos de referência, mediante comprovação de bioequivalência e segurança; e (ii) a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela regulação e fiscalização sanitária no país, ambos em 1999. Esse novo marco regulatório incentivou as empresas de capital nacional a melhorarem seus processos produtivos e diversificarem a oferta de medicamentos genéricos. Isso aumentou a capacidade produtiva, sobretudo na formulação de medicamentos, em função do maior rigor para o registro sanitário, que passou a exigir certificação em boas práticas de fabricação. Embora a produção de medicamentos tenha crescido, as importações de farmoquímicos também aumentaram, ampliando o déficit — problema crônico do setor desde os anos 1950. E, como a produção local de IFAs não acompanhou o crescimento da demanda interna, agravou-se a dependência externa (Costa et al., 2014; Mitidieri et al., 2015).

A estrutura da indústria farmoquímica brasileira tem sido caracterizada historicamente por pequenas e médias empresas (com base no faturamento). Estudos setoriais do final dos 1980 e início dos 1990 já descreviam essa característica (Ferraz et al., 1988; Kupfer; Cabral, 1988; Queiroz, 1993), que pouco mudou nas décadas seguintes. Um levantamento de 2004 identificou 23 empresas, sediadas majoritariamente na região Sudeste e controladas por capital nacional, com produção concentrada em IFAs sintéticos, atendendo tanto a demanda doméstica como a internacional; muitas, porém, com capacidade ociosa e aparente desconexão com a indústria farmacêutica local (Costa et al., 2008). Entre 2011 e 2013, Costa et al. (2014) identificaram 36 empresas, das quais 75% estavam ativas e 47% atuavam exclusivamente como farmoquímicas. Apenas 25% faturavam mais de R$ 30 milhões por ano, dentre as quais somente duas eram especializadas em farmoquímica.

A literatura apontava, no final dos 1980, que no segmento de química fina mundial predominavam empresas de médio porte, as quais operavam com plantas semiflexíveis e investiam fortemente em pesquisa e desenvolvimento (P&D) (Kupfer; Cabral, 1988). Atualmente, com a ascensão da Índia e da China como produtoras globais de IFAs, sobretudo no segmento de medicamentos genéricos, emergem também empresas farmoquímicas de grande porte (Sweet, 2010; Chen; Xue; Wang, 2019). Portanto, empresas maiores seriam essenciais ao desenvolvimento do setor, especialmente por conta das economias de escala, determinantes para a competitividade no mercado. Observa-se, contudo, a manutenção da estrutura da indústria no Brasil, com predomínio de empresas de pequeno porte. As poucas empresas de grande porte registradas no país são as integradas verticalmente (isto é, são também farmacêuticas), que têm maior capacidade tecnológica e investem mais em P&D, conseguindo obter, assim, melhores resultados inovativos (Costa et al., 2014).

Como consequência do tamanho diminuto da indústria farmoquímica nacional, a dependência externa de IFAs tem sido uma característica marcante da produção de medicamentos no Brasil. Um estudo de 2015 do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) estimou que cerca de 90% dos IFAs utilizados no país eram importados, principalmente da Índia e da China (Mitidieri et al., 2015). Outro estudo setorial de 2020 mostrou que a proporção de bens intermediários importados no setor farmacêutico-farmoquímico brasileiro atingiu 82,2% do consumo intermediário interindustrial (Abifina, 2022). Essa dependência gera riscos como flutuações de preços e interrupção no fornecimento, como evidenciado na pandemia de Covid-19 (Bastos; Gadelha, 2024). Além disso, há um problema associado à qualidade dos IFAs importados. Segundo um estudo da Fiocruz, a falta de padronização do IFA nevirapina, importado por Farmanguinhos, resulta em perdas de até 30% na formulação dos medicamentos (Dias et al., 2016). Portanto, há diversos aspectos da dependência externa que poderiam ser solucionados mediante a internalização da produção.

Uma nova fase de produção de IFAs no Brasil?

A Figura 1 mostra a evolução do valor bruto da produção industrial (VBPI) para as indústrias farmoquímica, farmacêutica e total da indústria de transformação no Brasil de 2009 a 2022. A indústria farmacêutica apresenta um crescimento sustentado ao longo do tempo, enquanto a farmoquímica mostra tendência de crescimento expressivo a partir de 2018, diferentemente do que acontece com a indústria de transformação em geral, cujo valor apresentou crescimentos mais expressivos nos triênios de 2009–2011 e 2020–2022, em contraste com a relativa estabilidade entre 2012 e 2019. Destaca-se ainda que a fabricação de produtos farmoquímicos claramente sobe de patamar a partir de 2018, com trajetória crescente desde então.

Figura1

Como apontado em trabalhos anteriores, o tamanho da indústria farmoquímica é pequeno em relação à fabricação de medicamentos no Brasil (Kupfer; Cabral, 1988; Costa et al., 2014; Mitidieri et al., 2015). Até 2017, o VBPI daquele setor representava, em média, 0,02% do total das indústrias de transformação, passando a responder por 0,06% na média de 2018 a 2022 (Tabela 1). No segundo período, o VBPI triplicou, apesar da baixa participação. A fabricação de medicamentos também cresceu expressivamente, com média 30% maior no segundo período. Ambos os casos denotam um crescimento acima do registrado no total da indústria de transformação, cujo nível de produção no último sexênio foi apenas 3% acima do valor médio de 2009 a 2017. Essa divisão reflete a quebra estrutural na série da farmoquímica a partir de 2018, justificando a análise comparativa entre os dois períodos.

Tabela1

O crescimento do VBPI da indústria farmoquímica a partir de 2018 não se deu pelo aumento no número de empresas, mas pelo incremento da produção pelas empresas já estabelecidas. A produtividade do trabalho no setor superou a média nacional da indústria de transformação a partir de 2015, e da farmacêutica a partir de 2018, passando de R$ 500 mil para mais de R$ 2 milhões por ano por trabalhador (Figura 2). Com poucas mudanças estruturais e leve aumento de empresas médias, mas ainda sem grandes empresas especializadas, os dados da produtividade sugerem um possível efeito de ganhos de escala, o que é um bom indicador de competitividade para o setor.

Figura2

Déficit comercial persiste, apesar do progresso na produção interna de IFAs

A Figura 3 indica uma tendência crescente, em valores correntes, na aquisição externa de farmoquímicos. As importações registraram um aumento contínuo, com ápice em 2021. As importações de IFAs saltaram de US$ 2,2 bilhões, em 2009, para US$ 4,8 bilhões, em 2023 (eixo esquerdo). Em contrapartida, as exportações, que atingiram quase US$ 620 milhões em 2011, vêm caindo desde então. A partir de 2020, observa-se uma ligeira retomada do crescimento, atingindo US$ 355 milhões em 2023 (eixo direito). Este movimento ampliou significativamente o déficit comercial de farmoquímicos nos anos recentes, encerrando a série acima dos US$ 4,4 bilhões (eixo esquerdo).

Figura3

A Tabela 2 complementa essa análise, ao apresentar os valores médios para dois subperíodos. Entre 2009 e 2017, a média das importações foi de US$ 2,9 bilhões e das exportações de US$ 413 milhões, resultando em déficit médio superior a US$ 2,4 bilhões. Já entre 2018 e 2023, as importações subiram para US$ 4,2 bilhões e as exportações caíram para US$ 330 milhões. Consequentemente, o déficit médio subiu para US$ 3,9 bilhões. Ou seja, enquanto as importações cresceram 46%, as exportações caíram 20% e o déficit aumentou 57%. A queda nas exportações de farmoquímicos, com aumento da produção interna, pode indicar reorientação ao mercado doméstico; hipótese que ainda requer novas pesquisas.

Tabela2

Assim, em nível agregado, os dados mostram uma ampliação da dependência externa. Além disso, a concentração regional dos fornecedores estrangeiros de IFAs também aumentou, com os cinco maiores países de origem representando 77% do total em 2023, contra 61% em 2009. Alemanha e China destacam-se ao longo de todo o período, com a China consolidando sua liderança a partir de 2017.

Em contrapartida, as exportações brasileiras de farmoquímicos exibem uma tendência decrescente no período (taxa anual de -0,85%). Um estudo anterior demonstrou que grande parte da produção nacional era destinada às exportações (Mitidieri et al., 2015). Porém, o baixo desempenho exportador parece sinalizar uma perda de competitividade internacional da indústria farmoquímica brasileira. Estados Unidos e Itália são os principais destinos de exportação, cuja participação conjunta representou um terço das exportações brasileiras de IFAs em 2023. A concentração dos cinco principais destinos também se elevou, passando de 50% para 57% entre 2009 e 2023.

Em suma, a indústria farmoquímica brasileira apresenta uma trajetória de crescimento da produção interna, possivelmente para o abastecimento do mercado nacional. No entanto, ainda enfrenta muitos desafios para desenvolver-se e contribuir para a redução da dependência externa. Essa persistência reforça a necessidade de políticas de longo prazo para fortalecer o elo farmoquímico da cadeia farmacêutica nacional.

[1] Professor e pesquisador do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Este estudo foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento e Orçamento.