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Após três anos de negociações, OMS aprova Acordo sobre Pandemias

Rodrigo Andrade

“As nações do mundo fizeram história hoje em Genebra”, destacou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 16 de abril de 2025, após o encerramento das negociações que resultaram na aprovação do primeiro acordo internacional voltado à prevenção, preparação e resposta a pandemias. Pouco mais de um mês depois, em 20 de maio, o documento foi adotado formalmente pelos 194 estados-membros da OMS durante a 78ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em Genebra, na Suíça. O Acordo sobre Pandemias estabelece parâmetros para que governos ampliem sua capacidade de atuação conjunta no compartilhamento de informações sobre surtos, no fortalecimento de sistemas de saúde pública, na criação de mecanismos de financiamento e no acesso equitativo a vacinas, tratamentos e diagnósticos.

O novo acordo parte da constatação de que o agravamento da crise climática e a degradação do meio ambiente têm alterado os padrões de dispersão de doenças infecciosas, aumentando o risco de seres humanos entrarem em contato com patógenos que podem causar novas crises sanitárias — e de que o mundo continua mal preparado para outra pandemia, carecendo de mecanismos de vigilância colaborativa, ferramentas de diagnóstico e financiamento. Um estudo publicado em 2023 por pesquisadores do Centro para o Desenvolvimento Global (CGD, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, estima que há 19% de chance de uma nova pandemia eclodir nos próximos cinco anos. Considerando os próximos 10 anos, a chance seria de 35%.

Há algum tempo a OMS tem destacado a necessidade de que pesquisadores e governos fortaleçam e acelerem a pesquisa global em preparação para eventuais novas pandemias, enfatizando a importância de expandir as investigações para incluir famílias inteiras de patógenos que podem infectar humanos.

Embora milhares de vírus e bactérias possam contaminar humanos, um número relativamente pequeno causou pandemias ou epidemias ao longo da história. O problema é que muitas das informações necessárias para a tomada de decisão sobre esses patógenos estão indisponíveis, não documentadas na literatura ou não são adequadas para uma revisão sistemática. De acordo com a Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores (FIND, na sigla em inglês) — organização global de saúde sem fins lucrativos com sede em Genebra, que, em parceria com a OMS, conecta países e comunidades, financiadores, tomadores de decisão, provedores de serviços de saúde e desenvolvedores —, dos patógenos com potencial de surto, o novo coronavírus (Sars-CoV-2) é o único para o qual há prontidão diagnóstica adequada.

Nesse sentido, uma das medidas mais importantes previstas no novo acordo envolve o sistema de Acesso a Patógenos e Compartilhamento de Benefícios (PABS, na sigla em inglês). Ele prevê que os laboratórios disponibilizem 10% de sua produção de vacinas, medicamentos e sistemas de diagnóstico em tempo real para distribuição pela OMS, com a meta de oferecer outros 10% a preços acessíveis. Dessa forma, os países mais pobres não ficariam tão para trás, como aconteceu na crise sanitária desencadeada pela Covid-19.

Pode não ser o ideal, mas esse mecanismos representa um grande avanço, avalia a médica Aalisha Sahukhan, principal negociadora de Fiji. “Houve um momento durante as negociações em que havia uma sensação real de que alguns países de alta renda simplesmente não aceitariam nenhuma reserva de parte da produção, o que teria sido devastador para o próprio tratado, dado que as desigualdades no acesso a vacinas, tratamentos e diagnósticos foram extremamente evidentes durante a Covid-19”, destacou à revista Science.

A pandemia foi marcada por uma corrida desenfreada entre países para obter máscaras, equipamentos de proteção individual, respiradores e vacinas. Agentes públicos de alguns países chegaram a desviar cargas de insumos durante seu trânsito em aeroportos, frustrando a entrega dos produtos aos destinatários originais. Caso dos Estados Unidos, que, em 2020, interceptaram um carregamento de 200 mil respiradores artificiais fabricados na China e adquiridos pela Alemanha, oferecendo um valor mais alto pelos produtos.

O problema se estendeu até o início de 2021, quando países de alta renda adquiriram vacinas ainda em produção, dando início a um processo de distribuição desigual dos imunizantes — no pico da pandemia, 25% da população mundial tinha comprado mais de 75% das vacinas. Monopólios farmacêuticos foram autorizados a reter os direitos de propriedade intelectual, fazendo com que os imunizantes, em alguns casos, fossem vendidos por um preço até 10 vezes mais alto do que seu custo de produção — modelos matemáticos baseados em dados de 152 países estimam que mais de um milhão de vidas poderiam ter sido salvas se as vacinas contra a Covid-19 tivessem sido distribuídas de forma mais equitativa com os países de baixa renda em 2021.

“Este novo acordo pode nos impedir de cometer os mesmos erros que cometemos durante a pandemia do novo coronavírus”, destacou Michelle Childs, diretora de policy advocacy na iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), com sede em Genebra, em publicação divulgada na página da instituição no LinkedIn. “Embora bilhões de euros tenham sido investidos em pesquisa, o que permitiu o desenvolvimento de diagnósticos, tratamentos e imunizantes em tempo recorde, milhões de pessoas não tiveram acesso a esses recursos em quantidade suficiente ou com a rapidez necessária. As vacinas de mRNA, por exemplo, foram colocadas no mercado pouco mais de um ano após a descoberta da doença, mas ficaram fora do alcance da maioria das pessoas que mais precisavam delas.”

Segundo Childs, esse cenário é ainda mais chocante quando se percebe que parte significativa das pesquisas por trás desses novos produtos foi financiada com recursos públicos. “Uma das novas vacinas contra a Covid-19 teve mais de 97% do seu financiamento vindo de fontes públicas. Mas, apesar de todo esse investimento, os governos não conseguiram garantir que esses produtos fossem acessíveis a todos”, destacou.

As conversas em torno do novo acordo tiveram início em dezembro de 2021. No auge da crise sanitária, os 194 estados-membros da OMS criaram um Órgão de Negociação Intergovernamental para coordenar as conversas para a elaboração de uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional com diretrizes para a preparação, prevenção e resposta a novas pandemias, sendo o Brasil representante da região das Américas na mesa diretora dos trabalhos de negociação.

Divergências entre os participantes, porém, impediram que o acordo avançasse. Um dos impasses envolvia o financiamento para a criação de um sistema multilateral, liderado pela OMS, de acesso a patógenos com potencial pandêmico detectados em diferentes países e aos insumos utilizados para combatê-los. À época, os países de alta renda, como os Estados Unidos, afirmavam que já disponibilizavam uma série de mecanismos de apoio financeiro às nações de baixa e média baixa renda nesse sentido. Um deles seria o Fundo Pandêmico, criado em setembro de 2022 e dedicado ao fornecimento de subsídios plurianuais para ajudar países de baixa e média baixa renda a se prepararem para futuras crises sanitárias.

Sediado pelo Banco Mundial e capitaneado pelos Estados Unidos, o fundo recebeu 179 inscrições de 133 países em sua primeira chamada, tendo concedido, em julho de 2023, US$338 milhões para ajudar 37 países a fortalecer sua capacidade de prevenir, se preparar e responder a pandemias. Os Estados Unidos prometeram em julho de 2024 mais US$667 milhões (aproximadamente R$3,7 bilhões) para o fundo, enquanto a Alemanha se comprometeu com US$54 milhões (R$304 milhões).

Outro desacordo que emperrou as negociações girava em torno de questões referentes ao PABS e à transferência de tecnologia. A ideia era que o acordo estabelecesse políticas juridicamente vinculativas para os países-membros da OMS sobre vigilância de agentes patogênicos, compartilhamento rápido de dados sobre surtos, produção local e cadeias de abastecimento de vacinas e tratamentos, entre outros pontos. No entanto, os países centrais, sobretudo os do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), não se mostraram dispostos a abrir mão de suas prerrogativas e privilégios, priorizando o lucro de suas corporações farmacêuticas em detrimento da ação coletiva contra futuras pandemias.

A quebra desse impasse foi o que permitiu à OMS anunciar uma redação final para o tratado: o Brasil, representado pelo Ministério das Relações Exteriores, teria formulado uma proposta de consenso aceita pelos países, prevendo que a cooperação em torno da transferência de tecnologia seria em “termos mutuamente acordados”.

Na América Latina e no Caribe, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desempenhou um papel fundamental para garantir que os países das Américas fossem ouvidos ao longo dos três anos de negociação. A Organização promoveu quatro reuniões presenciais com representantes de Ministérios da Saúde e suas missões diplomáticas para assegurar que cada país da região tivesse acesso a todas as informações necessárias e pudesse participar ativamente do processo.

“A conclusão do acordo representa uma importante conquista, considerando o contexto de crise do multilateralismo, com a saída dos Estados Unidos das negociações e da própria OMS, e a redução abrupta dos recursos investidos na cooperação internacional em saúde”, destaca Nota Técnica do GT Acordo sobre Pandemias e Reforma do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), liderado por Deisy Ventura, docente do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública e vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais, ambos da Universidade de São Paulo (USP). 

Segundo ela, o acordo representa um avanço especialmente para o acesso mais justo e igualitário à pesquisa sobre patógenos emergentes, graças a uma melhor cooperação internacional. “Além disso, as autoridades sanitárias poderão responder mais rapidamente aos riscos de uma pandemia, já que o acordo estabelece uma coordenação global mais precoce e mecanismos mais eficazes para a prevenção”, conclui.

O Acordo sobre Pandemias agora será aberto para assinaturas, entrando em vigor quando for ratificado por pelo menos 60 países, o que pode levar até dois anos. Os estados-membros também instruíram o Grupo de Trabalho Intergovernamental para que inicie as ações necessárias para o estabelecimento do Mecanismo Financeiro de Coordenação, voltado à prevenção, preparação e resposta a pandemias. O mesmo foi feito em relação à Rede Global de Cadeia de Suprimentos e Logística, com o objetivo de “melhorar, facilitar e trabalhar para eliminar barreiras e garantir o acesso equitativo, oportuno, rápido, seguro e acessível a produtos de saúde relacionados com pandemias”.

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