Artigo

Desenvolvimento tecnológico e a identidade digital

Tulio Chiarini[1]

Ao longo da história, algumas inovações foram tão disruptivas que remodelaram economias e sociedades. O economista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) chamou esse fenômeno de "destruição criadora", um processo em que novas tecnologias não apenas substituem as antigas, mas também reconfiguram mercados, sociedades e estruturas de poder. Quando uma inovação atinge esse nível de impacto, ela se torna o alicerce de novos paradigmas tecno-sociais e tecno-econômicos, conforme apontado pela economista anglo-venezuelana Carlota Perez. Foi assim com a máquina a vapor, a eletricidade e a microeletrônica. 

O Estado nunca esteve alheio a essas revoluções, ora adotando novas tecnologias, ora influenciando as trajetórias tecnológicas. No século IV a.C., por exemplo, o Império Romano traçou a Via Appia — cuja construção exigiu      inovações técnicas, para conectar territórios, otimizar a arrecadação de impostos e expandir sua administração. Os esforços investidos nesta empreitada não apenas produziram resultados, mas também favoreceram inovações institucionais nas práticas políticas romanas.

Assim como no passado as grandes civilizações moldaram suas infraestruturas para garantir governança e eficiência; no mundo contemporâneo, a infraestrutura essencial não é mais física, mas digital. Se no Império Romano a Via Appia conectava territórios e facilitava a administração, hoje, esse papel é desempenhado pelas infraestruturas digitais, definindo novos modelos de controle e poder. Entre as diversas invenções tecnológicas, quatro áreas interrelacionadas formam uma dinâmica específica: componentes, computadores, software e redes, conforme proposto pelo pesquisador Eduardo da Motta e Albuquerque, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG).

Albuquerque defende que as transformações sociais e econômicas possibilitadas pela difusão e adoção do microprocessador ganharam novo impulso com a invenção da World Wide Web (WWW), sobretudo pelo avanço da digitalização.

Com a expansão da digitalização e da vida online, a identificação das pessoas tornou-se um desafio cada vez mais complexo. As primeiras identidades digitais surgiram nos anos 1990, à medida que a internet se tornava mais acessível. Um dos primeiros sistemas com esse objetivo foi o Microsoft Passport, lançado em 1999, que oferecia um mecanismo de autenticação única (single sign-on), permitindo que usuários acessassem serviços da Microsoft, como o e-mail Hotmail e o MSN, conjunto de serviços online e aplicativos da Microsoft. Nos anos 2000, a Google seguiu por esse mesmo caminho com a criação do Google Account, inicialmente voltado para o Gmail, mas logo expandido para conectar outros serviços, como YouTube, Google Drive e Android.

Desde então, o conceito de identidade digital evoluiu significativamente. Hoje, gigantes da tecnologia (big techs) oferecem sistemas sofisticados de autenticação, como Apple ID, Facebook Login e Google Sign-In, que facilitam o acesso a uma ampla gama de sites e aplicativos, ao mesmo tempo que ampliam o domínio dessas empresas sobre a identidade digital dos usuários.

Diante do crescente debate sobre privacidade, vigilância e concentração de dados nas mãos das big techs — que extraem e perfilam informações dos usuários, garantindo-lhes monopólios intelectuais —, governos passaram a desenvolver seus próprios sistemas de identidade digital. A primeira iniciativa desse tipo surgiu em 2001, quando a Estônia lançou o e-Residency e o ID-kaart, um dos primeiros sistemas nacionais obrigatórios de identidade digital no mundo.

No Brasil, o governo vem implementando um sistema de identidade única há alguns anos, com o objetivo de aumentar a eficiência estatal, combater fraudes e simplificar a vida do cidadão. Recentemente, um conjunto de normativas reforçou a intenção de modernizar a identificação civil no país, tendo a Carteira de Identidade Nacional (CIN) como peça central para promover eficiência administrativa, segurança pública e inclusão digital. A unificação dos registros em torno do CPF e a integração com a plataforma Gov.br são pilares dessa transformação, buscando garantir uma governança digital mais eficiente e acessível.

No entanto, o conceito de identidade digital vai além de um simples login para acessar serviços públicos. Ele define como indivíduos se identificam, compartilham seus dados e quem tem acesso a essas informações.  

Com a crescente digitalização da identidade, surgiram soluções mais sofisticadas para gerenciar informações pessoais, garantindo maior segurança e controle. É nesse contexto que entram as carteiras de documentos digitais (digital wallets).

Embora não haja uma definição única,  o chefe adjunto da Unidade de Tecnologia e Privacidade da  Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (European Data Protection Supervisor) Massimo Attoresi propõe uma abordagem clara: “Uma carteira de documentos digitais é um aplicativo que permite o armazenamento seguro, a gestão e o compartilhamento de dados de identificação pessoal, credenciais e outros atributos relacionados ao proprietário dessa carteira virtual.” 

Essencialmente, essas carteiras de documentos digitais são versões eletrônicas das tradicionais carteiras de documentos físicos, com a vantagem de armazenar atributos digitais, como documentos oficiais, credenciais acadêmicas e certificados profissionais. Elas podem existir em diversas formas, incluindo aplicativos móveis, extensões de navegador e dispositivos de hardware dedicados. Do ponto de vista sociotécnico, tanto as identidades digitais quanto as carteiras de documento digitais representam infraestruturas essenciais para a vida digital, possibilitando maior governança pública e permitindo que o Estado atue como regulador e facilitador de mercados.

A Evolução das carteiras de documentos digitais 

As primeiras carteiras de documentos digitais surgiram com a evolução das tecnologias móveis e a necessidade de digitalizar credenciais físicas. Algumas das pioneiras foram a Google Wallet, lançada em 2011, que evoluiu para armazenar cartões de crédito, débito e passes de transporte, embora não fosse voltada para documentos oficiais. Em seguida, a Apple lançou a App Wallet (originalmente chamada Passbook), que permitia armazenar cartões de embarque, ingressos e cupons de desconto. Com o tempo, começou a integrar documentos como carteiras de identidade digitais em alguns países, carteiras de motorista nos Estados Unidos e chaves de carros e casas.

Uma revisão sistemática da literatura mostrou que há modelos distintos de carteiras de documentos digitais, com implicações diretas na privacidade e autonomia do usuário. No modelo centralizado, utilizado por gigantes como Google e Apple, um único provedor armazena e gerencia informações pessoais, criando riscos de rastreamento e vulnerabilidade a ataques cibernéticos. O modelo federado distribui essa responsabilidade entre diferentes instituições confiáveis, enquanto o modelo centrado no usuário, baseado no conceito de identidade auto-soberana, coloca o controle total dos dados nas mãos do próprio cidadão.

O Caso Europeu: EU Digital Identity Wallet (EDIW)

Para garantir maior interoperabilidade entre diferentes sistemas de identificação eletrônica e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, a União Europeia (UE) desenvolveu a Carteira de Identidade Digital da União Europeia — European Union Digital Identity Wallet (EDIW). A iniciativa busca oferecer uma solução segura e confiável, permitindo que os cidadãos gerenciem seus documentos digitais de forma autônoma, sem depender de plataformas privadas. 

A implementação da EDIW enfrenta desafios, como a necessidade de equilibrar segurança e usabilidade, promover a interoperabilidade e garantir a adoção em larga escala. Contudo, a UE está avançando com o Quadro Europeu de Identidade Digital, estabelecendo regras para garantir que todos os cidadãos tenham controle total sobre sua identidade digital, ao mesmo tempo que facilita o acesso a serviços públicos e privados de forma mais segura e eficiente.

A implementação da EDIW apresenta um aspecto interessante: a própria Comissão Europeia disponibiliza recursos por meio de chamadas públicas para o desenvolvimento de soluções. Cada chamada para subvenções segue um conjunto de condições específicas, que variam conforme o programa de financiamento, seus objetivos e as prioridades políticas da Comissão Europeia. Essas subvenções estão abertas a todos os membros da UE que atendam aos requisitos estabelecidos. Um exemplo é o Digital Europe Programme (DIGITAL), programa voltado à aplicação de tecnologias digitais em empresas, cidadãos e administrações públicas. No âmbito dessa iniciativa, a chamada "Accelerating Best Use of Technologies" (DIGITAL-2022-DEPLOY-02) destinou 19,2 milhões de euros para financiar projetos relacionados à EDIW. É o Estado indicando a trajetória tecnológica.

O Caso brasileiro: a Carteira de Documentos Digitais

Se na Europa o avanço das carteiras de documentos digitais se dá sob um arcabouço regulatório rigoroso, garantindo maior controle ao cidadão, no Brasil, a sua implementação segue outro caminho, priorizando eficiência administrativa e centralização governamental. 

O governo brasileiro desenvolveu a Carteira de Documentos Digitais, integrada ao aplicativo Gov.br, para centralizar digitalmente documentos essenciais como a Carteira de Identidade Nacional (CIN), a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a Carteira de Habilitação Técnica (CHT) e certificados militares como o Certificado de Dispensa de Incorporação (CDI), o Certificado de Alistamento Militar (CAM) e o Certificado de Reservista (CR). A iniciativa busca simplificar o armazenamento e gerenciamento de informações pessoais, oferecendo mais praticidade e segurança.

Com a Carteira de Documentos Digitais, os usuários podem se identificar presencialmente apresentando documentos digitais, como a CNH, respeitando as regulamentações específicas de cada documento. O aplicativo também permite visualizar todos os arquivos armazenados, embora alguns precisem ser digitalizados pelo órgão emissor antes de serem incorporados à carteira.      

Além disso, a ferramenta possibilita o compartilhamento de documentos em PDF com autenticidade garantida por QR-Code, reforçando a segurança no envio de informações. Para facilitar o acesso, o usuário pode definir como favoritos os documentos mais utilizados, que ficam em destaque na tela inicial. À medida que novos documentos forem digitalizados e disponibilizados pelos órgãos responsáveis, poderão ser adicionados à carteira, ampliando o alcance da identidade digital no país.

Lições para o Brasil

O governo brasileiro lançou a Carteira de Documentos Digitais para oferecer uma alternativa segura e integrada ao armazenamento de documentos essenciais, concorrendo com carteiras de documentos digitais privadas como a App Wallet. Além disso, a iniciativa tem diferenças marcantes em relação ao modelo europeu, especialmente em privacidade, funcionalidades e integração com o setor privado.

Na UE, a EDIW dá aos cidadãos controle sobre seus dados, permitindo-lhes, por exemplo, compartilhar apenas sua idade, sem revelar a data de nascimento e revogar acessos a qualquer momento. No Brasil, os documentos são disponibilizados em formato PDF, o que impede o compartilhamento seletivo de informações. Além disso, a EDIW possibilita a identificação anônima em determinados contextos, algo ainda inexistente no Brasil, onde todos os dados do documento são expostos no compartilhamento. Hoje, a Carteira de Documentos Digitais brasileira funciona apenas como um agregador de documentos digitais já existentes.

Outro desafio no Brasil é a falta de padronização na validade dos documentos digitais. Enquanto a UE já estabeleceu um padrão único para certificados eletrônicos, como diplomas e qualificações profissionais, no Brasil, cada documento segue regras próprias. A CNH e a CIN, por exemplo, têm exigências diferentes para a versão digital, o que pode dificultar a adoção de um sistema unificado. Além disso, diplomas ainda não são incluídos na Carteira de Documentos Digitais brasileira.

A integração com o setor privado é outro ponto que diferencia as iniciativas. Na UE, a carteira digital já é usada para abrir contas bancárias e registrar novos chips de celular. No Brasil, ainda não está claro se e como a Carteira de Documentos Digitais poderá ser utilizada para transações privadas. Essa falta de integração pode limitar sua utilidade, especialmente para pagamentos online, viagens, assinaturas digitais e acesso a serviços bancários.

Entre as funcionalidades atuais, a Carteira de Documentos Digitais brasileira permite visualizar documentos, compartilhá-los via PDF com QR-Code para autenticação e favoritar os mais utilizados. Ainda assim, fica atrás do modelo europeu, que possibilita interações mais dinâmicas, como assinaturas digitais e armazenamento de credenciais educacionais e profissionais. Além disso, a União Europeia testa a EDIW em projetos-piloto envolvendo setores como saúde, educação e transporte, enquanto no Brasil ainda não há iniciativas semelhantes.

A comunicação também é um diferencial. A União Europeia investe em campanhas transparentes e engajadoras, divulgando informações sobre a carteira digital em plataformas como o YouTube. No Brasil, apesar da ampla divulgação do aplicativo Gov.br, ainda há espaço para melhorar a comunicação sobre os benefícios da Carteira de Documentos Digitais, especialmente para públicos menos familiarizados com tecnologia.

Na prática, a Carteira de Documentos Digitais brasileira representa um avanço na digitalização dos serviços públicos, mas ainda está longe da interoperabilidade e sofisticação do modelo europeu. Para evoluir, será necessário ampliar o controle do usuário sobre seus dados, padronizar a legislação para garantir a validade dos documentos digitais, integrar a plataforma ao setor privado e melhorar a comunicação para incentivar a adoção em larga escala. Além disso, há um problema-chave a ser resolvido no país: a inclusão digital. No momento, o governo brasileiro está focado em consolidar a nova Carteira de Identidade Nacional como documento único em todo o país, que será obrigatório a partir de 2032, em vez de investir em novas funcionalidades digitais.

Retomando a ideia da destruição criadora

A identidade digital tornou-se um pilar da economia digital — a ponto de ser considerada uma infraestrutura pública digital — e um campo de disputa entre governos e big techs. Assim como a máquina a vapor e a eletricidade moldaram paradigmas anteriores, a infraestrutura digital e as tecnologias de identidade estão definindo um novo ciclo de transformação com potencial para impulsionar inovações. A grande questão não é apenas como esses sistemas serão implementados, mas quem controlará os dados e, consequentemente, os fluxos de poder e inovação no futuro.

No Brasil, sua adoção pode ampliar a inclusão digital, estimular inovações regulatórias e fortalecer a soberania tecnológica. O Estado tem o potencial de direcionar trajetórias inovativas, como faz a União Europeia, especialmente por meio de editais públicos voltados ao desenvolvimento de soluções tecnológicas para desafios concretos, como na implementação da EDIW. No entanto, sua efetividade dependerá da governança adotada, do equilíbrio entre privacidade e inovação e da capacidade do Estado de evitar a captura dessas infraestruturas por interesses privados, garantindo que seu desenvolvimento beneficie a sociedade como um todo.

[1] Analista em Ciência e Tecnologia do CTS/Ipea.