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O lento avanço das ações afirmativas na pós-graduação

Maioria das iniciativas no Brasil está concentrada nas ciências humanas e em programas com notas 3 e 4 na avaliação da Capes.

Rodrigo Andrade

A adoção de políticas afirmativas pelas universidades brasileiras nas últimas décadas ampliou o acesso de indivíduos de baixa renda, pretos, pardos e indígenas ao ensino superior. Mas essa estratégia ainda enfrenta desafios para se consolidar na pós-graduação, responsável por mais de 80% da produção científica nacional. A maioria das iniciativas está concentrada nas ciências humanas e em programas com notas 3 e 4 na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Desde o início dos anos 2000, os programas de pós-graduação no Brasil investem em ações afirmativas — medidas, públicas ou privadas, que visam promover a equidade e a inclusão de grupos socialmente discriminados —, seja em decorrência de decisões próprias ou por determinação de leis estaduais e resoluções das universidades.

Ainda em 2002, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) estabeleceu uma política dessa natureza voltada à entrada de pretos, pardos e indígenas em seus cursos de mestrado e doutorado. No Rio de Janeiro, as leis estaduais 6.914/2014 e 6.959/2015 determinaram que todas as instituições públicas de ensino superior do estado deveriam instituir um sistema de cotas em seus cursos de pós-graduação, especialização e aperfeiçoamento, entre outros.

Esse movimento ganhou força a partir de 2016, quando o Ministério da Educação publicou uma portaria determinando que as instituições federais de ensino superior apresentassem propostas de inclusão de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência em sua pós-graduação. Estima-se que 45 universidades federais e estaduais tenham aprovado resoluções em seus conselhos universitários entre 2002 e 2021 determinando que seus programas adotassem políticas dessa natureza em seus processos de seleção.

Isso fez com que o contingente de programas com algum tipo de ação afirmativa em seus processos de admissão de estudantes de mestrado e doutorado saltasse de 174 em 2015 para 1.531 em 2021, o equivalente a 54,3% dos 2.817 programas analisados — foi a primeira vez que o percentual de programas com ação afirmativa ultrapassou os 50%, segundo levantamento feito por pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Até 2021, a maioria (73% dos 1.531 programas com ações afirmativas) adotava exclusivamente o sistema de cotas, no qual um percentual das vagas disponíveis é reservado para determinados grupos sociais ou étnico-raciais. Outros 3,5% optavam por vagas suplementares, reservando-as a candidatos de certos grupos (as vagas suplementares não alteram o número de vagas de ampla concorrência e são extintas caso não sejam preenchidas), enquanto 23,1% contavam com formatos mistos, com cotas para determinados grupos e vagas suplementares destinadas a outros.

Os pesquisadores do Cebrap também identificaram programas com cotas para determinados grupos e bônus para outros em certas etapas do processo seletivo (4,6%). É o caso de alguns programas da Universidade Federal Fluminense (UFF), que, além de cotas sociais — ou étnico-raciais —, concedem pontos adicionais ou um peso maior em determinadas etapas do processo a candidatos que se tornaram mães nos últimos 5 anos.

Os estudantes pretos são os que mais se beneficiam dessas políticas, sendo alvo de 96,7% dos programas analisados. Em seguida estão indivíduos pardos (96,1%), indígenas (93,5%) e pessoas com deficiência (83,5%). Em menor proporção estão quilombolas (32,7%), pessoas trans (23,3%), povos do campo (13,2%) e refugiados (5,6%) — a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) criou recentemente uma política desse tipo para pessoas em situação de refúgio, asilo político, apatridia, acolhida humanitária ou sob outras políticas humanitárias no Brasil.

No entanto, apesar do avanço observado nos últimos anos, em muitos casos, a adoção de ações afirmativas pouco alterou o processo de avaliação. Os beneficiários de cotas e candidatos regulares ainda são submetidos às mesmas etapas no processo de seleção, sendo comum candidatos de grupos minoritários serem eliminados nos estágios iniciais por conta da exigência de proficiência em línguas estrangeiras, por exemplo.

Distribuição desigual

O aumento das iniciativas observado até 2021 também foi impulsionado sobretudo pelas ciências humanas. Dos 1.531 programas com ações afirmativas registrados em 2021, 20,1% eram dessa área do conhecimento. Uma das explicações aventadas pelos pesquisadores é a de que as humanidades teriam uma longa tradição de estudos sobre as desigualdades socioeconômicas e étnico-raciais no acesso ao ensino superior, de modo que é esperado que elas sejam mais sensíveis a essas questões e invistam mais na implementação de estratégias para mitigar esse problema.

Com base nos dados analisados, os pesquisadores identificaram três formas de instituição e aprovação de políticas de ações afirmativas nos programas de pós-graduação no país: (1) existem os programas que criaram iniciativas por decisão própria e de seus colegiados; (2) universidades e programas que criaram ações afirmativas em cumprimento a leis estaduais e a portaria do MEC; e (3) programas que criaram ações afirmativas em razão de resoluções do Conselho Universitário válidas para todos os cursos de pós-graduação.

Até 2021, 27,8% dos programas haviam criado medidas por iniciativa própria; 4,4% em decorrência de leis estaduais, e 67,8% em virtude de resoluções dos conselhos universitários. Ao analisar esses números por área do conhecimento, os pesquisadores identificaram um desequilíbrio importante. Dos programas nas ciências humanas com algum tipo de ação afirmativa, 44,3% o fizeram por iniciativa própria; nas letras, linguística e artes, esse percentual foi de 41,9%, e, nas ciências sociais aplicadas, de 35,6%.

Nas engenharias, esse percentual foi de 9,5% e, nas ciências agrárias, de 5,6%. Ou seja, os programas nessas áreas parecem adotar políticas afirmativas somente quando obrigados por leis estaduais ou resoluções das universidades. Nesses casos, as políticas valem para todos — os programas têm liberdade para estabelecer normas e critérios próprios para a seleção de seus estudantes, diferentemente do que ocorre na graduação.

A resistência observada nas exatas estaria ligada ao que os pesquisadores classificam como “cultura de conservadorismo meritocrático”. “Os processos seletivos nesses programas tendem a valorizar menos a trajetória de vida dos candidatos, baseando-se apenas na ideia de que os mais qualificados são os que obtiveram mais pontos na avaliação. Essa lógica parece ser bastante presente nas ciências exatas, o que as torna mais resistentes a políticas desenhadas para corrigir desigualdades no ensino superior.

A preocupação com a excelência acadêmica é algo presente nos debates a respeito da criação de ações afirmativas na pós-graduação, havendo argumentos de que tais políticas poderiam reduzir a qualidade dos programas e, consequentemente, seu desempenho na avaliação realizada pela Capes para aferir a qualidade dos cursos de mestrado e doutorado do país e nortear a distribuição de bolsas e verbas para pesquisa.

Diante disso, os pesquisadores cruzaram dados sobre a implementação de políticas afirmativas com o conceito obtido pelos programas de pós-graduação na última avaliação quadrienal: 60,1% dos programas com nota 3 contavam com algum tipo de política afirmativa; entre os programas com nota 7, esse percentual era de 39,3%. Esses dados sugerem que programas com notas mais baixas tendem a adotar mais expressivamente políticas afirmativas. Até o momento, porém, não há evidências de que mudanças nos critérios para admissão de estudantes na pós-graduação tenham impacto negativo no desempenho dos programas ou na avaliação da Capes.

Perpetuação das desigualdades

A falta de políticas de ação afirmativa na pós-graduação tende a perpetuar desigualdades ao longo de toda a carreira acadêmica. Esse fenômeno tem sido observado de forma mais nítida nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem, em inglês). A proporção de cientistas brancos vinculados a programas de pós-graduação em áreas como “Ciências Exatas e da Terra” e “Ciências Biológicas” no Brasil é de 12 vezes maior do que a presença de pretos, pardos ou indígenas.

Em termos percentuais, brancos são 90,1% dos professores de pós-graduação nessas áreas, enquanto pretos, pardos ou indígenas somam apenas 7,4%, e amarelos são 2,5%, segundo estudo do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Uerj, com base em registros da Capes de docentes de programas de pós-graduação no Brasil.

Da mesma forma, em 2023, os homens negros ocupavam 16,1% dos papéis de liderança em grupos de pesquisa na área das ciências duras, enquanto as mulheres negras representavam apenas 5,9%, de acordo com um trabalho não publicado de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

A diversidade na pesquisa e pós-graduação é fundamental para o progresso científico e para a criação de espaços que proponham soluções mais efetivas para os muitos e diferentes problemas que enfrentamos no país, de modo que é essencial que as universidades, os governos e as agências de fomento pensem em estratégias para garantir o acesso desses grupos e também sua permanência por meio de diferentes oportunidades acadêmicas, bolsas de estudos, moradia, alimentação, apoio para cursos de idiomas estrangeiros, intercâmbios e estágios de pesquisa, saúde mental e outras políticas.