Artigo
Fim do Ciclo Expansivo?
O declínio do número de novos alunos de doutorado no Brasil em 2022
Publicado em 21/08/2024 - Última modificação em 21/08/2024 às 15h54
Daniel Gama e Colombo
Introdução
O ano de 2022 representou um marco na evolução dos programas de doutorado no Brasil. Após décadas de crescimento consistente (com exceção de momentos específicos, como o da pandemia), os dados para esse ano sugerem que o número de novos alunos matriculados declinou de maneira expressiva (cerca de 15%) em relação ao exercício anterior. Essa inflexão é significativa, e, se persistir nos próximos anos, pode indicar um novo momento da pós-graduação stricto sensu brasileira, com desafios para a atração de estudantes e formação de cientistas.
Esse fenômeno também foi observado em outros países, embora em magnitudes inferiores ao caso brasileiro. Nos Estados Unidos, o número de novas matrículas no doutorado recuou aproximadamente 3% no segundo semestre de 2022 em relação ao mesmo período do ano anterior. No Reino Unido, o número de alunos de primeiro ano de doutorado diminuiu quase 7% no mesmo período. Nos 27 países da União Europeia, 2022 foi marcado por uma discreta redução do número total de alunos de doutorado, especialmente nas áreas de Artes e Humanidades e Agricultura, Silvicultura, Pesca e Veterinária, em que houve uma diminuição de aproximadamente 2% dos discentes.
Por ser uma mudança recente, ainda não há consenso sobre os fatores que podem ter contribuído para a diminuição do número de novos estudantes no país, ou sobre a continuidade dessa tendência nos próximos anos. Algumas explicações vêm sendo ventiladas e discutidas, com destaque para o papel da pandemia, o número insuficiente e o baixo valor das bolsas de pesquisa, além das perspectivas pouco promissoras para a carreira acadêmica nas universidades brasileiras.
À luz desse debate, o objetivo deste artigo é investigar o ingresso de novos estudantes nos programas de doutorado brasileiros nos últimos anos, a fim de contribuir para a compreensão da redução observada em 2022. Para isso, são utilizados microdados identificados sigilosos dos estudantes de doutorado no Brasil no período entre 2013 e 2022. A análise é complementada com dados públicos dos alunos de doutorado disponibilizados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
A redução recente dos novos alunos de doutorado
A evolução do número de ingressantes nos programas de doutorado pode ser visualizada no Gráfico 1 em duas séries de dados. A primeira (série A) refere-se apenas aos alunos expressamente identificados como ingressantes pelos programas e pelas universidades no período de 2013-2022, conforme apresentado na base de dados identificada.
O gráfico também exibe, para um período mais longo (2004 a 2022), a variação do número total de alunos a cada ano. Essa série (B) baseia-se nos dados públicos disponíveis, e é tomada como uma aproximação do quantitativo de ingressantes nesse período estendido, devido à diferença da metodologia de coleta e tabulação dos dados antes de 2013. As duas séries apresentam trajetórias similares para o período comum (2013-2022), o que sugere que a série B pode ser utilizada como medida aproximada do ingresso de novos alunos no período anterior. A diferença entre as séries decorre principalmente dos casos de evasão ou desligamento de alunos sem titulação.
Gráfico 1. Evolução do número de ingressantes (série A - 2013-2022) e da variação do número total de alunos (série B - 2004-2022)
Fonte: Elaboração própria, com base em dados públicos e sigilosos da CAPES
Esses dados ilustram a magnitude da queda do número de novos alunos de doutorado no país em 2022 em relação ao ano anterior: aproximadamente 15% (série A). Isso representa uma diminuição de pouco mais de 4,5 mil ingressantes, situando o país em patamares semelhantes ao observado em 2014. Considerando a variação do número total de alunos (série B), a diminuição foi ainda maior, de quase 20%, o que pode estar relacionado à variação do número de alunos que abandonaram ou foram desligados dos programas.
Trata-se de uma redução significativa e sem precedentes no histórico da pós-graduação brasileira desde o início de sua expansão nos anos 1990. Destaca-se que, em 2020, ano mais severo da pandemia, também houve uma redução no ingresso, mas de menor magnitude (aproximadamente 5% do número de ingressantes de 2019), já havendo uma recuperação completa no exercício seguinte. Por esse motivo, não parece que a redução do quantitativo de novos estudantes em 2022 possa ser atribuída apenas (ou principalmente) à pandemia.
Nota-se ainda que o contingente de programas de doutorado em funcionamento no país permaneceu relativamente estável no último ano (de 5.355 em 2021 para 5.285 em 2022), após um crescimento de cerca de 40% entre 2013 e 2021. Isso sugere que a queda no número de ingressantes não parece ser explicada por uma redução das vagas disponíveis, indicando que pode ter ocorrido uma diminuição na procura pelo doutoramento, contrastando com o período de expansão observado anteriormente.
Se, por um lado, a redução dos novos alunos no último ano constitui uma novidade, por outro, os dados também evidenciam que já estava em curso uma tendência de desaceleração do ingresso no doutorado no país. Isso pode ser verificado a partir da série (B) de variação do número de alunos, que, entre 2004 e 2013, apresentou um crescimento anual médio de cerca de 10%, enquanto no período posterior até a pandemia (2013-2019) essa taxa passou para uma média de aproximadamente 2% ao ano, uma redução de 8 pontos percentuais. A série de alunos ingressantes (A) revela uma taxa de crescimento similar e baixa para esse último período (2,7% ao ano), confirmando esse diagnóstico.
Nesse sentido, a evolução apresentada na série (B) sugere que o declínio recente dos novos estudantes de doutorado pode estar mais relacionado a questões estruturais da economia e da pós-graduação nacionais do que a fatores circunstanciais. Os anos iniciais da série (2004-2013) foram um período de crescimento econômico e expansão universitária no país, favorecendo um maior número de novos doutorandos. Já a fase posterior (2013-2022) foi marcada por duas crises (2015-2017 e 2020) e uma estagnação ou retração dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação, o que pode ter contribuído para reduzir a atratividade das carreiras científicas e, consequentemente, o interesse de novos alunos pela formação em níveis avançados.
Devido ao longo tempo necessário para a conclusão do doutorado, a desaceleração e posterior queda de ingressantes levam algum tempo para afetar o quantitativo de títulos concedidos pelas universidades brasileiras, razão pela qual essa tendência ainda não se observou de maneira nítida na série de alunos titulados no país (embora já tenha ocorrido uma queda da taxa média de crescimento anual, que foi de aproximadamente 7,5% entre 2004 e 2016, mas de apenas 1,6% entre 2016 a 2022). Em 2022, o número de titulados cresceu aproximadamente 9% em relação ao ano anterior. Essa taxa também foi influenciada pelos reflexos da pandemia, já que diversos programas prorrogaram os prazos para que seus alunos depositassem suas teses, afetando de maneira severa o número de titulados em 2020 (queda de 18% no número de títulos), mas influenciando positivamente os números dos anos seguintes.
Diferenças entre as grandes áreas de conhecimento
A redução dos ingressantes em 2022 (em relação ao ano anterior) foi observada em todas as grandes áreas de conhecimento (em magnitudes distintas), conforme apresentado no Gráfico 2. A queda mais expressiva nesse último ano ocorreu nos programas de Linguística, Letras e Artes, Engenharias e Ciências Exatas e da Terra. As Ciências Biológicas (-6,7%) foram menos afetadas, mas essa grande área já apresentava tendência de queda gradual de alunos desde 2013 — não por acaso, foi a que registrou a maior a redução de ingressantes em todo o período analisado, chegando em 2022 com cerca de um quarto de novos estudantes a menos.
Gráfico 2. Evolução do número de alunos ingressantes em programas de doutorado de instituições brasileiras por grande área de conhecimento e ano (valor de cada grande área em 2013 = 100)
Nota: O número de ingressantes em cada grande área em 2013 foi considerado igual a 100 para fins de comparação da evolução (os valores não são idênticos para esse ano). Fonte: Elaboração própria, com base em dados públicos e sigilosos da CAPES
O gráfico ilustra um ponto adicional da evolução da pós-graduação brasileira no período. É possível identificar que as grandes áreas podem ser divididas entre aquelas que tiveram um saldo negativo ou positivo de novos alunos durante o período estudado (2013-2021). E, entre as áreas que perderam ingressantes, estão aquelas particularmente relevantes para o desenvolvimento de novas tecnologias e ampliação das oportunidades de inovação, como as Engenharias e Ciências Agrárias. Também foi observada queda de novos estudantes em campos importantes para o enfrentamento das emergências e desafios atuais, como as Ciências da Saúde, Biológicas, Exatas e da Terra.
Isso revela que não apenas a pós-graduação brasileira perdeu novos alunos em 2022, mas que, ao longo do tempo, vem se tornando menos intensiva em importantes campos do conhecimento. Trata-se de um movimento inverso àquele observado nos Estados Unidos no período 2012-2022 , onde houve um aumento de ingressantes nas áreas de ‘Matemática e Ciências Computacionais’, ‘Ciências da Saúde’ e ‘Ciências Biológicas e Agrárias’, e uma redução de novos estudantes em ‘Artes e Humanidades’, ‘Educação’ e ‘Administração Pública e Serviços’.
Considerações finais
Após décadas de crescimento do número de programas e alunos de doutorado no Brasil, no ano de 2022 houve uma redução do número de novos ingressantes. A fim de contribuir para a compreensão desse fenômeno recente, duas ideias centrais são apresentadas neste artigo. Em primeiro lugar, a queda no número de ingressantes foi prenunciada por uma desaceleração do crescimento de novos alunos a partir de 2013, que por sua vez sucedeu uma fase de expansão acelerada observada ao menos desde 2004. Em segundo, a redução nas diferentes áreas do conhecimento ao longo do período 2013-2022 foi desigual, com uma queda mais expressiva de ingressos nas Ciências Agrárias, Biológicas, Exatas e Engenharias, enquanto os programas de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Multidisciplinares foram favorecidos pelo aumento das novas matrículas no período 2013-2022.
O principal ponto de dúvida é se a queda observada no número de ingressantes em 2022 constitui uma reversão da tendência de crescimento anterior ou apenas uma flutuação na série histórica. Se confirmada, a continuidade da diminuição de novos estudantes pode impactar negativamente a geração de novas descobertas científicas e tecnologias, e o desenvolvimento do sistema de inovação brasileiro como um todo. Dados e estudos futuros podem esclarecer esse ponto, além de apresentar e testar com maior rigor e clareza as hipóteses explicativas para a redução do número de novos alunos, com o objetivo de informar políticas públicas voltadas a elevar o estoque e aproveitamento de doutores na economia nacional.