Artigo
Padrões de precificação no mercado biofarmacêutico
Um breve olhar sobre a experiência estadunidense recente na busca de equilíbrio entre inovação e acesso
Publicado em 22/05/2024 - Última modificação em 05/06/2024 às 13h46
Marco Antonio Vargas*
O debate em torno do processo de precificação da inovação em medicamentos sempre esteve no centro de uma forte controvérsia entre a indústria farmacêutica, governos e consumidores. No contexto atual, onde os preços de novas terapias podem assumir valores insustentáveis para os sistemas nacionais de saúde, a discussão sobre este tema assumiu um novo patamar. De um lado, existem diversas críticas que apontam para uma crescente desconexão entre os preços praticados pelas empresas para novos medicamentos, os seus gastos efetivos com inovação e os benefícios que essas trazem para pacientes e sistemas de saúde. No extremo oposto, a indústria biofarmacêutica argumenta que políticas restritivas de preços teriam um forte impacto negativo na capacidade das empresas gerarem inovações.
Dentre os diversos fatores que costumam ser apontados como responsáveis pela manutenção de preços elevados por parte das empresas farmacêuticas destacam-se: a combinação de períodos de exclusividade concedidos pelo sistema patentário, o sucesso da indústria em estender esses períodos de proteção e as limitações dos sistemas públicos de saúde na negociação de preços de forma significativa (WALDROP, 2021).
A proteção patentária constitui um monopólio temporário concedido após o registro do medicamento e visa permitir às empresas farmacêuticas recuperarem seus investimentos no desenvolvimento do produto. Esses períodos de exclusividade geralmente variam de cinco a sete anos, embora alguns medicamentos recebam períodos mais curtos ou mais longos — o período mínimo de duração de uma patente é de 20 anos, mas durante os anos iniciais o medicamento ainda está em desenvolvimento, então o retorno não está sendo gerado.
Uma vez terminado o período de proteção, os medicamentos genéricos e biossimilares podem entrar no mercado, reduzindo os preços. Entretanto, na prática, observa-se que a indústria farmacêutica logrou encontrar diversas formas de postergar a competição no mercado de genéricos e biossimilares através de mecanismos como “pay-for-delay”, “evergreening” ou “patent thick”. Nos acordos de “pagamento por atraso” (pay-for-delay), as empresas farmacêuticas detentoras de medicamentos de marca com patentes vencidas ou por vencer concordam em pagar a um fabricante de genéricos para manter seu produto concorrente fora do mercado por um determinado período.
Esse mecanismo surgiu originalmente como parte de acordos de resolução de litígios de patentes entre empresas farmacêuticas de produtos de marca e de genéricos. No caso do “evergreening”, as empresas buscam contornar a perda da proteção patentária fazendo pequenas alterações em um determinado medicamento com o objetivo de estabelecer a extensão do período de proteção patentária. Por fim, a estratégia do tipo “patent thick” envolve a criação, por parte das empresas farmacêuticas, de direitos de propriedade intelectual correlatos e sobrepostos, bloqueando assim a entrada de competidores potenciais para produção de genéricos e biossimilares (MAZZUCATO, 2018). De fato, a análise dos 12 medicamentos com maior volume de comercialização em 2017 indicava uma associação com 848 patentes, o que resultava numa média de 71 patentes por medicamento, implicando em um bloqueio potencial médio de 38 anos para a entrada de competidores (I-MAK, 2018).
Outro argumento usado com frequência para apontar o caráter abusivo da precificação de medicamentos inovadores na indústria biofarmacêutica reside no papel fundamental do apoio governamental às atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) biofarmacêutica. Tal argumento encontra respaldo, em particular, na análise dos padrões de financiamento das atividades de PD&I do setor biofarmacêutico estadunidense (MAZZUCATO; ROY, 2019). Neste aspecto, uma análise das novas entidades moleculares (NMEs) aprovadas pelo Centro de Avaliação e Pesquisa de Medicamentos dos EUA (CDER) no FDA, entre 2010 e 2016, mostrou que o financiamento público contribuiu para pesquisas publicadas associadas a cada um dos 210 novos medicamentos aprovados pela FDA no período em questão (EKATERINA et al, 2018).
Boa parte destas pesquisas foi financiada por duas agências do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos: National Institutes of Health (NIH) e Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA). A análise mostra também que mais de 90% desse financiamento, equivalente a cerca de US$ 100 bilhões, representa pesquisa básica relacionada aos alvos biológicos para a ação dos medicamentos, e não aos próprios medicamentos. O papel do financiamento do NIH, portanto, desempenha um papel complementar e fundamental no esforço de PD&I da indústria biofarmacêutica, que se concentraria predominantemente na pesquisa aplicada.
O setor biofarmacêutico frequentemente ignora o elemento coletivo do processo inovativo e assume que seus investimentos em P&D justificam preços extraordinariamente altos para alguns medicamentos inovadores, apesar da falta de transparência nos custos de PD&I da indústria. A pesquisa biofarmacêutica básica pode ser extremamente cara. Entretanto, argumenta-se que em vez de assumir o risco e o custo de uma pesquisa verdadeiramente inovadora — como determinar mecanismos de ação ou descobrir moléculas que são o núcleo do desenvolvimento de novos medicamentos — a indústria biofarmacêutica conta com o financiamento governamental de tais pesquisas, aplicando posteriormente tais descobertas para o desenvolvimento de medicamentos para tratamento de doenças específicas (MAZZUCATO; ROY, 2019).
Cabe destacar também que a justificativa da indústria biofarmacêutica de que os preços de medicamentos inovadores refletem os custos elevados que as empresas incorrem no financiamento à inovação tem sido amplamente questionada pelas evidências que apontam para a crescente financeirização das empresas neste setor. Tulum e Lazonick (2019) mostram que entre as 19 corporações biofarmacêuticas presentes na relação Standard & Poor’s 500 (S&P 500), os gastos totais em P&D efetuados no período 2007-2016 foram de US$ 488 bilhões, enquanto a distribuição de dividendos foi de US$ 267 bilhões e as recompras de ações totalizaram US$ 296 bilhões. Dessa forma, os autores mostram que o valor das recompras e dividendos foi equivalente a 18,2% das receitas, enquanto os gastos em P&D equivaleram a 15,8%.
No mesmo sentido, um relatório do Comitê de Supervisão e Reforma do Congresso dos EUA revelou que, entre 2016 e 2020, 14 das maiores empresas biofarmacêuticas globais gastaram US$ 577 bilhões em recompra de ações e dividendos, US$ 56 bilhões a mais do que gastaram em pesquisa e desenvolvimento. Além disso, dos US$ 521 bilhões dedicados a P&D, uma parcela significativa dos gastos foi dedicada à supressão da concorrência de genéricos por outras empresas, levando a um aumento dos preços cobrados nos Estados Unidos pelos medicamentos mais vendidos, em vez de desenvolver novos tratamentos inovadores. A investigação também descobriu que as empresas biofarmacêuticas visavam os Estados Unidos para aumentar os preços, em parte devido à incapacidade do Medicare de negociar preços mais baixos.
Em busca de novos parâmetros: precificação baseada em valor (Value-Based Price)
A precificação de tecnologias na área da saúde, e a necessidade de garantir a existência de incentivos suficientes para o investimento privado no desenvolvimento de inovações socialmente valiosas, requer uma visão clara do valor social de uma tecnologia em saúde, sua relação com o preço e os incentivos que isso proporciona nas decisões de investimento do setor privado (WALDROP, 2021).
A proposta de precificação embasada na abordagem do preço baseado em valor (value-based price) refere-se ao pagamento de medicamentos de forma proporcional aos benefícios que eles fornecem aos pacientes, em relação às opções de medicamentos existentes. Ao invés de permitir que empresas farmacêuticas cobrem qualquer preço alto capaz de maximizar seus lucros, a estratégia value-based price (VBP) vincula o preço à uma medida de quanto um novo medicamento apresente aos pacientes benefícios superiores aos das opções de tratamento vigentes.
A abordagem VBP baseia-se no princípio de que os preços devem, por um lado, refletir o benefício de um medicamento incorporado no tratamento dos pacientes e sistemas de saúde e, por outro, recompensar a inovação bem-sucedida e criar incentivos para mais PD&I na indústria. (MORENO; EPSTAIN, 2019). Dessa forma, o VBP levaria a um resultado positivo para todos os lados envolvidos, porque dá aos pagadores um mecanismo transparente de sinalização de suas prioridades ao mercado, ao mesmo tempo em que incentiva a indústria farmacêutica a se engajar em linhas de PD&I voltadas ao atendimento desta demanda.
Neste aspecto, o primeiro passo no processo de precificação envolve a definição e quantificação do valor terapêutico do medicamento a partir de evidências clínicas e econômicas, coletadas, sintetizadas, analisadas e avaliadas por agências independentes em articulação com autoridade local de reembolso. Em geral, este processo está associado aos órgãos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) . A Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) é a síntese do conhecimento produzido sobre as implicações da utilização das tecnologias e constitui subsídio técnico importante para a tomada de decisão sobre difusão e incorporação de tecnologias em saúde. Seu objetivo é verificar se uma determinada tecnologia é segura, eficaz e economicamente atrativa em comparação a alternativas.
Nos Estados Unidos, onde diversos estudos já apontavam para os patamares elevados dos preços de medicamentos em relação aos padrões internacionais, o debate sobre precificação da inovação a partir do uso de abordagens VPB passou a ocupar um espaço de destaque na agenda política. Um estudo de 2021 da RAND Corporation comparou os preços de varejo de medicamentos de prescrição nos Estados Unidos com os de 32 outros países, incluindo Reino Unido, Alemanha e Austrália. A partir dos dados os autores mostraram que esses preços eram em média 156% mais altos do que os preços nos países de comparação (WALDROP, 2021).
Em 2019, um dossiê preparado pela Comissão de Assuntos Tributários do Congresso americano já havia revelado que, em geral, os Estados Unidos gastam mais em medicamentos do que outros países desenvolvidos. Apesar da extensão desses diferenciais de preços variar de acordo com o medicamento, fabricante e classe terapêutica os resultados apontaram para a existência de grandes diferenças entre os preços praticados nos Estados Unidos em relação aos demais países.
Neste aspecto, a aprovação da chamada Inflation Reduction Act (IRA) em 2022 representou um ponto de inflexão importante no processo de precificação de medicamentos nos Estados Unidos. Pela primeira vez, a lei fornece ao Medicare a capacidade de negociar os preços de certos medicamentos de alto custo, sem concorrência de genéricos ou biossimilares. Com a aprovação desta lei, o Medicare financiado pelo governo federal (que cobre maiores de 65 anos) passará a negociar os preços dos 10 medicamentos mais vendidos até 2026, aumentando para 20 até 2029. O Inflation Reduction Act exige descontos em quaisquer medicamentos do Medicare cujos preços subam mais rápido que a inflação e limitem os gastos diretos dos beneficiários. Esta lei conta com regras que limitam o preço máximo negociado e punições — na forma de um imposto especial de consumo sobre as vendas do ano anterior, passando de 65% a 95% — para fabricantes que se recusem a negociar. Quem negociar, mas não cumprir o preço acordado, também será penalizado (CMS, 2023).
Em síntese, a experiência dos Estados Unidos mostra que mesmo num sistema historicamente dominado pelos grandes conglomerados da indústria farmacêutica mundial, a regulação governamental cumpre um papel central no estabelecimento mecanismos de precificação para medicamentos inovadores que permitam articular o estímulos à inovação biofarmacêutico com a necessidade de acesso à saúde da sua população.
* Professor e pesquisador do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).