Artigo
Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: as recomendações da Organização Mundial da Saúde
Artigo apresenta as principais orientações da OMS em relação à precificação de medicamentos disponíveis no WHO guideline on country pharmaceutical princing policies, lançado em 2020
Publicado em 08/11/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h51
Graziela Zucoloto e Fernanda De Negri
A precificação de medicamentos é uma questão complexa. O desafio está em equilibrar uma remuneração adequada às empresas com o acesso da população a esses produtos. Se por um lado medicamentos inovadores só terão valor para a sociedade se chegarem aos pacientes, por outro, é preciso garantir incentivos econômicos adequados para que os fabricantes continuem a desenvolvê-los e a produzi-los. Em outras palavras, se preços elevados causam problemas de acesso, preços muito baixos podem levar à escassez de medicamentos, pois os custos de produção podem não ser cobertos ou o retorno potencial pode ser considerado insuficiente, gerando desincentivos ao seu desenvolvimento e à sua produção.
Para auxiliar nesse debate e dar suporte aos seus estados-membros, a Organização Mundial da Saúde (OMS) possui uma equipe específica para tratar de “Precificação e Acessibilidade a Medicamentos”, realiza fóruns para discutir “preços justos” com atores do setor e elabora guias para apoiar a implementação de políticas nacionais de preços.
De acordo com a OMS, “preço justo” não é sinônimo de “preço baixo”. Preços justos são aqueles que permitem um retorno sobre o investimento, mas também viabilizam o acesso aos medicamentos. Ou seja, preços justos ou sustentáveis são definidos como aqueles que não deterioram os sistemas de saúde, viabilizam o crescimento do setor farmacêutico e garantem o acesso universal a medicamentos essenciais.
Com base nessas reflexões, o objetivo deste texto é apresentar as principais orientações da OMS em relação à precificação de medicamentos disponíveis no WHO guideline on country pharmaceutical princing policies, lançado em 2020. O guia apresenta dez recomendações — baseadas em evidências — e algumas orientações que podem ser usadas pelos países quando da formulação e implementação de políticas relacionadas à gestão de preços e ao acesso a produtos farmacêuticos.
As orientações gerais
Uma primeira orientação geral é que a adoção dessas recomendações serão mais efetivas se adotadas em conjunto, e não individualmente. Sua efetividade também depende de fatores como infraestrutura e pessoal qualificado, investimentos para a construção e manutenção de bases de dados para monitorar o comportamento dos preços e avaliação dos resultados alcançados. O documento da OMS enfatiza que os preços devem ser avaliados em associação a outros critérios, incluindo a qualidade e disponibilidade do produto e a segurança do abastecimento.
Fontes com dados confiáveis e completos são fundamentais nesse processo. Um ponto importante — e limitante — nesse debate refere-se ao tipo de preço divulgado pelos governos, que nem sempre inclui descontos concedidos pelas empresas nas compras públicas. Em qualquer política que envolva comparações entre preços, deve-se atentar se estes estão sendo comparados em pontos comuns ao longo da cadeia de distribuição (fábrica, atacado, varejo etc.).
As dez recomendações da OMS
A promoção do uso de medicamentos genéricos de qualidade garantida, destacada como a principal recomendação da OMS, tem sido uma importante política de saúde pública em nível mundial desde a década de 1990. As políticas para promover a utilização de medicamentos biossimilares têm sido implementadas em menor grau e ainda dependem de esforços para maior harmonização entre as regulamentações existentes.
Para fortalecer a utilização desses medicamentos, a OMS recomenda a aplicação de um conjunto de medidas. Pelo lado da oferta, elas incluem a remoção de barreiras regulatórias; a utilização de acordos de licença voluntárias; a aplicação, quando apropriado, da flexibilização de direitos de propriedade intelectual, no caso de medicamentos patenteados; e a adoção de políticas específicas de preços e compras para medicamentos genéricos.
Pelo lado da demanda, as medidas envolvem planos de co-pagamento preferencial para medicamentos genéricos; substituições obrigatórias de medicamentos de referência por genéricos/biossimilares; estrutura legislativa e incentivos para que as receitas médicas utilizem nomenclaturas de princípios ativos, e não os nomes de marca; e campanhas educativas para aumentar a sensibilização sobre a eficácia e segurança desses medicamentos.
A OMS recomenda ainda que os países promovam a entrada antecipada de genéricos e biossimilares em seus mercados por meio de medidas legislativas e administrativas, e que incentivem a apresentação precoce de solicitações regulatórias.
- Utilização de preço de referência interno
A OMS também recomenda a utilização de preços de um conjunto de produtos farmacêuticos — terapeuticamente comparáveis e intercambiáveis — para derivar um preço de referência, a ser utilizado para estabelecer ou negociar o preço (ou a taxa de reembolso) de um produto. A utilização de preços de referência internos busca garantir que preços de produtos comparáveis sejam fixados em níveis similares, incentivando a concorrência entre eles.
- Utilização de preço de referência externo
O preço de referência externo utiliza como referência os preços de medicamentos iguais ou semelhantes em países comparáveis. Com isso, pretende-se que um país não pague mais por um produto do que em países semelhantes em termos de localização, renda, dimensão do mercado etc.
De acordo com a OMS, é preciso cautela na seleção dos países. Uma escolha equivocada pode acarretar na determinação de preços inadequados. Também é preciso observar o tipo de preço (fábrica, atacado, varejo etc.) que está sendo comparado.
Essa abordagem define os preços para produtos farmacêuticos com base no “valor” terapêutico (utilizando métricas como QALYs ou DALYs[1]) ou no valor que os pacientes e os sistemas de saúde atribuem a tais produtos.
Essa abordagem pode se basear na avaliação de tecnologias em saúde (ATS), ancoradas em questões sociais, econômicas, organizacionais e éticas de uma intervenção ou tecnologia de saúde.
Na regulamentação de mark-up, governos especificam quanto os fornecedores podem acrescentar ao custo dos medicamentos ao longo da cadeia de fornecimento a fim de reduzir a variabilidade dos preços. O estabelecimento de regras claras de mark-up pode aumentar a transparência dos preços para os consumidores e para os sistemas de saúde, e proporcionar maior previsibilidade à gestão das despesas.
A OMS recomenda que a margem seja regressiva, ou seja, que sua taxa diminua à medida que o preço aumenta, em lugar de um percentual fixo para todos os preços. Sugere também que essa margem seja utilizada para estimular a oferta de medicamentos selecionados ou para proteger o acesso de grupos populacionais específicos (como os que vivem em áreas remotas). A OMS enfatiza que os percentuais estabelecidos devem ser acompanhados e revistos periodicamente.
Nessa abordagem, o preço dos produtos farmacêuticos é definido a partir dos custos relacionados à sua produção (como custos de fabricação e de pesquisa e desenvolvimento, além dos associados à regulação e conformidade), adicionando a estes uma margem de lucro. Na prática, a extensão da sua utilização não é amplamente conhecida, e sua implementação é considerada difícil, dadas as limitações na obtenção de informações confiáveis sobre custos. Por isso, a OMS sugere que os países não a utilizem como política primária para a definição de preços de produtos farmacêuticos.
A licitação e a negociação são dois dos principais métodos utilizados na aquisição de medicamentos em muitos países. Segundo a OMS, nessas operações, as responsabilidades nos processos de aquisição — desde a quantificação dos produtos até a seleção das propostas — devem ser divididas entre diferentes escritórios ou órgãos de acordo com os conhecimentos e recursos apropriados para a função. Ainda, devem ser planejadas adequada e tempestivamente, e seu desempenho deve ser monitorado de forma regular. Os potenciais fornecedores devem ser pré-qualificados e os que já fornecem devem ser monitorados em relação à qualidade, confiabilidade e aos prazos de entrega. Por fim, as compras públicas devem dispor de financiamento confiável e estável.
A OMS recomenda ainda que: a) as compras do setor público se limitem a uma lista de medicamentos essenciais; b) os documentos de aquisição e licitação listem os medicamentos por nome genérico; c) as quantidades demandadas sejam baseadas em uma estimativa confiável da necessidade e as aquisições sejam efetuadas nas maiores quantidades possíveis para obter economias de escala; d) as opções para estruturar a licitação deverão levar em consideração a dimensão do mercado, o poder de compra e a segurança do fornecimento; e) o conjunto mínimo de informações necessárias para iniciar a licitação precisa estar claramente especificado, incluindo, por exemplo, as situações patentárias e o número de ofertantes; f) devem ser aplicadas regras claras para dissuadir e penalizar condutas antiéticas ou ilegais, incluindo o provimento intencional de produtos de qualidade inferior.
A aquisição conjunta é um processo no qual várias autoridades se unem para realizar a compra de medicamentos, aumentando o poder dos compradores e reduzindo os custos do processo de aquisição por meio do compartilhamento de informações e de recursos humanos, promovendo a racionalização dos processos administrativos.
Essa estratégia pode ser realizada de diversas formas, como por meio do compartilhamento de informações, da realização de pesquisas de mercado conjuntas ou da contratação e aquisição centralizadas a partir de um agente estabelecido. A OMS também destaca a importância de garantir que a aquisição conjunta seja realizada de forma transparente e que os medicamentos adquiridos tenham qualidade assegurada.
A OMS sugere que os países considerem reduções ou isenções tributárias com o objetivo de promover preços mais baixos de medicamentos. Em especial, a OMS recomenda que os países considerem isentar de impostos alguns grupos específicos de medicamentos (por exemplo, para grupos selecionados de pacientes), assim como ingredientes farmacêuticos ativos, estimulando a produção local. Entretanto, a aplicação seletiva dessa política de impostos precisa levar em conta os impactos na equidade e nos custos administrativos, e sua viabilidade de implementação.
Em relação às tarifas de importação, o guia menciona que estas foram eliminadas em muitos países, especialmente os de renda alta. No entanto, diversos países cuja renda é relativamente menor continuam a aplicar tarifas de importação consideradas elevadas (em torno de 10%) para produtos farmacêuticos.
O compartilhamento e a divulgação de preços dos produtos farmacêuticos para os atores relevantes e o público em geral é uma das principais recomendações feitas pela OMS.
Alguns países disponibilizam informações, embora nem sempre completas, sobre preços de produtos farmacêuticos. Na União Europeia, por exemplo, a “Diretiva de Transparência” exige a publicação dos preços de tabela de todos os medicamentos reembolsáveis, mas não contabiliza descontos e abatimentos obtidos nos processos de negociação. A África do Sul, por sua vez, exige a divulgação da média ponderada de todos os preços líquidos de venda de cada medicamento em sítio governamental, enquanto que a Austrália exige que os fabricantes divulguem à autoridade governamental a receita de vendas e o volume vendido em unidades de marca, incluindo quaisquer descontos.
O fortalecimento da transparência é considerado tão importante que há iniciativas da OMS para estimulá-lo. Caso da MedMon, ferramenta criada para recolher e analisar dados sobre o preço e a disponibilidade de medicamentos em instalações de saúde e centros de aquisição.
O Brasil frente às recomendações da OMS
As recomendações da OMS para a precificação de medicamentos são encontradas em diversos países. O Brasil já adota parte dessas propostas, incluindo a utilização de preços de referência interno e externo, ATS para a incorporação de novos medicamentos, licitações e a divulgação de preços efetivamente pagos nas compras públicas — muito embora a qualidade das informações ainda seja uma questão a ser resolvida.[2]
Entretanto, para serem de fato efetivadas, tais recomendações ainda se deparam com desafios singulares em todo o mundo — incluindo o Brasil. Tais desafios estão relacionados à transparência e à qualidade dos dados sobre preços em nível global; à dificuldade de acesso a informações sobre custos, especialmente os de P&D; à questão da segurança em torno dos biossimilares; aos debates em torno de propriedade intelectual, entre outros.
O aprimoramento das negociações entre os atores poderá reduzir esses desafios e aproximar o alcance de “preços sustentáveis”, que equilibrem a acessibilidade da população aos medicamentos e o desenvolvimento do setor farmacêutico.
[1] QALYs (Quality-Adjusted Life Years) é uma medida que leva em consideração tanto a quantidade quanto a qualidade de vida geradas por intervenções de saúde. DALYs (Disability-Adjusted Life Years) é uma medida que reflete os anos de vida saudável perdidos devido a doenças, incapacidades ou morte prematura.
[2] A comparação detalhada entre as recomendações da OMS vis a vis as medidas adotadas no Brasil será fruto da continuação desse artigo.
* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.
** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.
*** Agradecemos a Tulio Chiarini e Priscila Koeller pelas sugestões, isentando-os de quaisquer imprecisões.