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Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: as recomendações da Organização Mundial da Saúde

Artigo apresenta as principais orientações da OMS em relação à precificação de medicamentos disponíveis no WHO guideline on country pharmaceutical princing policies, lançado em 2020

Graziela Zucoloto e Fernanda De Negri

A precificação de medicamentos é uma questão complexa. O desafio está em equilibrar uma remuneração adequada às empresas com o acesso da população a esses produtos. Se por um lado medicamentos inovadores só terão valor para a sociedade se chegarem aos pacientes, por outro, é preciso garantir incentivos econômicos adequados para que os fabricantes continuem a desenvolvê-los e a produzi-los. Em outras palavras, se preços elevados causam problemas de acesso, preços muito baixos podem levar à escassez de medicamentos, pois os custos de produção podem não ser cobertos ou o retorno potencial pode ser considerado insuficiente, gerando desincentivos ao seu desenvolvimento e à sua produção.

Para auxiliar nesse debate e dar suporte aos seus estados-membros, a Organização Mundial da Saúde (OMS) possui uma equipe específica para tratar de “Precificação e Acessibilidade a Medicamentos”, realiza fóruns para discutir “preços justos” com atores do setor e elabora guias para apoiar a implementação de políticas nacionais de preços.

De acordo com a OMS, “preço justo” não é sinônimo de “preço baixo”. Preços justos são aqueles que permitem um retorno sobre o investimento, mas também viabilizam o acesso aos medicamentos. Ou seja, preços justos ou sustentáveis são definidos como aqueles que não deterioram os sistemas de saúde, viabilizam o crescimento do setor farmacêutico e garantem o acesso universal a medicamentos essenciais.

Com base nessas reflexões, o objetivo deste texto é apresentar as principais orientações da OMS em relação à precificação de medicamentos disponíveis no WHO guideline on country pharmaceutical princing policies, lançado em 2020. O guia apresenta dez recomendações — baseadas em evidências — e algumas orientações que podem ser usadas pelos países quando da formulação e implementação de políticas relacionadas à gestão de preços e ao acesso a produtos farmacêuticos.

As orientações gerais

Uma primeira orientação geral é que a adoção dessas recomendações serão mais efetivas se adotadas em conjunto, e não individualmente. Sua efetividade também depende de fatores como infraestrutura e pessoal qualificado, investimentos para a construção e manutenção de bases de dados para monitorar o comportamento dos preços e avaliação dos resultados alcançados. O documento da OMS enfatiza que os preços devem ser avaliados em associação a outros critérios, incluindo a qualidade e disponibilidade do produto e a segurança do abastecimento.

Fontes com dados confiáveis e completos são fundamentais nesse processo. Um ponto importante — e limitante — nesse debate refere-se ao tipo de preço divulgado pelos governos, que nem sempre inclui descontos concedidos pelas empresas nas compras públicas. Em qualquer política que envolva comparações entre preços, deve-se atentar se estes estão sendo comparados em pontos comuns ao longo da cadeia de distribuição (fábrica, atacado, varejo etc.).

As dez recomendações da OMS

  1. Promoção do uso de medicamentos genéricos e biossimilares com qualidade garantida

A promoção do uso de medicamentos genéricos de qualidade garantida, destacada como a principal recomendação da OMS, tem sido uma importante política de saúde pública em nível mundial desde a década de 1990. As políticas para promover a utilização de medicamentos biossimilares têm sido implementadas em menor grau e ainda dependem de esforços para maior harmonização entre as regulamentações existentes.

Para fortalecer a utilização desses medicamentos, a OMS recomenda a aplicação de um conjunto de medidas. Pelo lado da oferta, elas incluem a remoção de barreiras regulatórias; a utilização de acordos de licença voluntárias; a aplicação, quando apropriado, da flexibilização de direitos de propriedade intelectual, no caso de medicamentos patenteados; e a adoção de políticas específicas de preços e compras para medicamentos genéricos.

Pelo lado da demanda, as medidas envolvem planos de co-pagamento preferencial para medicamentos genéricos; substituições obrigatórias de medicamentos de referência por genéricos/biossimilares; estrutura legislativa e incentivos para que as receitas médicas utilizem nomenclaturas de princípios ativos, e não os nomes de marca; e campanhas educativas para aumentar a sensibilização sobre a eficácia e segurança desses medicamentos.

A OMS recomenda ainda que os países promovam a entrada antecipada de genéricos e biossimilares em seus mercados por meio de medidas legislativas e administrativas, e que incentivem a apresentação precoce de solicitações regulatórias.

  1. Utilização de preço de referência interno

A OMS também recomenda a utilização de preços de um conjunto de produtos farmacêuticos — terapeuticamente comparáveis e intercambiáveis — para derivar um preço de referência, a ser utilizado para estabelecer ou negociar o preço (ou a taxa de reembolso) de um produto. A utilização de preços de referência internos busca garantir que preços de produtos comparáveis sejam fixados em níveis similares, incentivando a concorrência entre eles.

  1. Utilização de preço de referência externo

O preço de referência externo utiliza como referência os preços de medicamentos iguais ou semelhantes em países comparáveis. Com isso, pretende-se que um país não pague mais por um produto do que em países semelhantes em termos de localização, renda, dimensão do mercado etc.

De acordo com a OMS, é preciso cautela na seleção dos países. Uma escolha equivocada pode acarretar na determinação de preços inadequados. Também é preciso observar o tipo de preço (fábrica, atacado, varejo etc.) que está sendo comparado.

  1. Fixação de preços baseados em valor

Essa abordagem define os preços para produtos farmacêuticos com base no “valor” terapêutico (utilizando métricas como QALYs ou DALYs[1]) ou no valor que os pacientes e os sistemas de saúde atribuem a tais produtos.

Essa abordagem pode se basear na avaliação de tecnologias em saúde (ATS), ancoradas em questões sociais, econômicas, organizacionais e éticas de uma intervenção ou tecnologia de saúde.

  1. Regulamentação de mark-up na cadeia de fornecimento e distribuição de medicamentos

Na regulamentação de mark-up, governos especificam quanto os fornecedores podem acrescentar ao custo dos medicamentos ao longo da cadeia de fornecimento a fim de reduzir a variabilidade dos preços. O estabelecimento de regras claras de mark-up pode aumentar a transparência dos preços para os consumidores e para os sistemas de saúde, e proporcionar maior previsibilidade à gestão das despesas.

A OMS recomenda que a margem seja regressiva, ou seja, que sua taxa diminua à medida que o preço aumenta, em lugar de um percentual fixo para todos os preços. Sugere também que essa margem seja utilizada para estimular a oferta de medicamentos selecionados ou para proteger o acesso de grupos populacionais específicos (como os que vivem em áreas remotas). A OMS enfatiza que os percentuais estabelecidos devem ser acompanhados e revistos periodicamente.

  1. Preço adicional ao custo

Nessa abordagem, o preço dos produtos farmacêuticos é definido a partir dos custos relacionados à sua produção (como custos de fabricação e de pesquisa e desenvolvimento, além dos associados à regulação e conformidade), adicionando a estes uma margem de lucro. Na prática, a extensão da sua utilização não é amplamente conhecida, e sua implementação é considerada difícil, dadas as limitações na obtenção de informações confiáveis sobre custos. Por isso, a OMS sugere que os países não a utilizem como política primária para a definição de preços de produtos farmacêuticos.

  1. Licitação e Negociação

A licitação e a negociação são dois dos principais métodos utilizados na aquisição de medicamentos em muitos países. Segundo a OMS, nessas operações, as responsabilidades nos processos de aquisição — desde a quantificação dos produtos até a seleção das propostas — devem ser divididas entre diferentes escritórios ou órgãos de acordo com os conhecimentos e recursos apropriados para a função. Ainda, devem ser planejadas adequada e tempestivamente, e seu desempenho deve ser monitorado de forma regular. Os potenciais fornecedores devem ser pré-qualificados e os que já fornecem devem ser monitorados em relação à qualidade, confiabilidade e aos prazos de entrega. Por fim, as compras públicas devem dispor de financiamento confiável e estável.

A OMS recomenda ainda que: a) as compras do setor público se limitem a uma lista de medicamentos essenciais; b) os documentos de aquisição e licitação listem os medicamentos por nome genérico; c) as quantidades demandadas sejam baseadas em uma estimativa confiável da necessidade e as aquisições sejam efetuadas nas maiores quantidades possíveis para obter economias de escala; d) as opções para estruturar a licitação deverão levar em consideração a dimensão do mercado, o poder de compra e a segurança do fornecimento; e) o conjunto mínimo de informações necessárias para iniciar a licitação precisa estar claramente especificado, incluindo, por exemplo, as situações patentárias e o número de ofertantes; f) devem ser aplicadas regras claras para dissuadir e penalizar condutas antiéticas ou ilegais, incluindo o provimento intencional de produtos de qualidade inferior.

  1. Aquisição Conjunta

A aquisição conjunta é um processo no qual várias autoridades se unem para realizar a compra de medicamentos, aumentando o poder dos compradores e reduzindo os custos do processo de aquisição por meio do compartilhamento de informações e de recursos humanos, promovendo a racionalização dos processos administrativos.

Essa estratégia pode ser realizada de diversas formas, como por meio do compartilhamento de informações, da realização de pesquisas de mercado conjuntas ou da contratação e aquisição centralizadas a partir de um agente estabelecido. A OMS também destaca a importância de garantir que a aquisição conjunta seja realizada de forma transparente e que os medicamentos adquiridos tenham qualidade assegurada.

  1. Isenção ou redução de impostos para produtos farmacêuticos

A OMS sugere que os países considerem reduções ou isenções tributárias com o objetivo de promover preços mais baixos de medicamentos. Em especial, a OMS recomenda que os países considerem isentar de impostos alguns grupos específicos de medicamentos (por exemplo, para grupos selecionados de pacientes), assim como ingredientes farmacêuticos ativos, estimulando a produção local. Entretanto, a aplicação seletiva dessa política de impostos precisa levar em conta os impactos na equidade e nos custos administrativos, e sua viabilidade de implementação.

Em relação às tarifas de importação, o guia menciona que estas foram eliminadas em muitos países, especialmente os de renda alta. No entanto, diversos países cuja renda é relativamente menor continuam a aplicar tarifas de importação consideradas elevadas (em torno de 10%) para produtos farmacêuticos.

  1. Transparência de preços

O compartilhamento e a divulgação de preços dos produtos farmacêuticos para os atores relevantes e o público em geral é uma das principais recomendações feitas pela OMS.

Alguns países disponibilizam informações, embora nem sempre completas, sobre preços de produtos farmacêuticos. Na União Europeia, por exemplo, a “Diretiva de Transparência” exige a publicação dos preços de tabela de todos os medicamentos reembolsáveis, mas não contabiliza descontos e abatimentos obtidos nos processos de negociação. A África do Sul, por sua vez, exige a divulgação da média ponderada de todos os preços líquidos de venda de cada medicamento em sítio governamental, enquanto que a Austrália exige que os fabricantes divulguem à autoridade governamental a receita de vendas e o volume vendido em unidades de marca, incluindo quaisquer descontos.

O fortalecimento da transparência é considerado tão importante que há iniciativas da OMS para estimulá-lo. Caso da MedMon, ferramenta criada para recolher e analisar dados sobre o preço e a disponibilidade de medicamentos em instalações de saúde e centros de aquisição.

O Brasil frente às recomendações da OMS

As recomendações da OMS para a precificação de medicamentos são encontradas em diversos países. O Brasil já adota parte dessas propostas, incluindo a utilização de preços de referência interno e externo, ATS para a incorporação de novos medicamentos, licitações e a divulgação de preços efetivamente pagos nas compras públicas — muito embora a qualidade das informações ainda seja uma questão a ser resolvida.[2]

Entretanto, para serem de fato efetivadas, tais recomendações ainda se deparam com desafios singulares em todo o mundo — incluindo o Brasil. Tais desafios estão relacionados à transparência e à qualidade dos dados sobre preços em nível global; à dificuldade de acesso a informações sobre custos, especialmente os de P&D; à questão da segurança em torno dos biossimilares; aos debates em torno de propriedade intelectual, entre outros.

O aprimoramento das negociações entre os atores poderá reduzir esses desafios e aproximar o alcance de “preços sustentáveis”, que equilibrem a acessibilidade da população aos medicamentos e o desenvolvimento do setor farmacêutico.

[1] QALYs (Quality-Adjusted Life Years) é uma medida que leva em consideração tanto a quantidade quanto a qualidade de vida geradas por intervenções de saúde. DALYs (Disability-Adjusted Life Years) é uma medida que reflete os anos de vida saudável perdidos devido a doenças, incapacidades ou morte prematura.

[2] A comparação detalhada entre as recomendações da OMS vis a vis as medidas adotadas no Brasil será fruto da continuação desse artigo.

* Este artigo faz parte de uma série sobre precificação e acessibilidade de medicamentos a partir da visão e da atuação de instituições internacionais.

** Este trabalho foi financiado pelo Ministério da Saúde por meio do Termo de Execução Descentralizada (TED) n. 06, de 2022.

*** Agradecemos a Tulio Chiarini e Priscila Koeller pelas sugestões, isentando-os de quaisquer imprecisões.