Artigo
Trajetórias profissionais de estudantes e pesquisadores de doutorado e pós-doutorado
Considerações sobre o Relatório da OCDE
Publicado em 18/10/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h50
Daniel Gama e Colombo
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou recentemente um relatório que sintetiza e expande o estado da arte do debate sobre a promoção da pluralidade das trajetórias profissionais de estudantes e pesquisadores de doutorado e pós-doutorado. O relatório resulta dos esforços de um grupo de trabalho internacional dedicado à discussão dos desafios do mercado de trabalho para cientistas, e apresenta um diagnóstico atualizado sobre o tema, além de um conjunto de medidas para a mitigação dos problemas identificados. O trabalho traz ainda insumos relevantes para discussão do caso brasileiro, que enfrenta desafios semelhantes àqueles descritos no texto e pode se beneficiar da adoção de algumas das propostas apresentadas.
Este texto apresenta e discute os principais resultados do relatório, sendo voltado a gestores universitários e de políticas científicas, acadêmicos e demais interessados no mercado de trabalho para cientistas.
Objetivos, estrutura e métodos de análise
O relatório toma como ponto de partida o diagnóstico feito pelo mesmo grupo de trabalho (divulgado em 2021) sobre as carreiras acadêmicas e de pesquisa, parcialmente recuperado na seção introdutória. Nesse trabalho anterior, observou-se que tais carreiras atualmente são marcadas pela precariedade e instabilidade dos vínculos, estando tais características disseminadas pelos diversos países da OCDE. Soma-se a esse cenário a falta de transparência nos processos seletivos e de diversidade nas instituições de ensino e pesquisa, o que tende a prejudicar sobretudo mulheres no início da carreira científica.
A superação desse quadro passa, entre outros pontos, pela expansão das opções profissionais disponíveis para estudantes e pesquisadores de doutorado e pós-doutorado, seja dentro da universidade ou em outras instituições públicas e privadas (não educacional). O relatório almeja contribuir para esse objetivo sugerindo novas abordagens de estruturação das carreiras científicas, levando em conta pesquisas recentes sobre o tema e práticas bem-sucedidas implementadas em alguns países.
A literatura discutida na primeira parte, após a introdução, é atualizada e apresentada de maneira clara a um público não acadêmico, favorecendo a apreensão e o uso do relatório para informar o debate e a construção de políticas públicas e organizacionais em diferentes contextos. No entanto, os estudos citados abordam poucos países (principalmente Austrália, Estados Unidos e Reino Unido), o que restringe o escopo da análise.
O arcabouço conceitual e metodológico é apresentado nas duas seções subsequentes. A questão central da pesquisa é: “Como promover opções de carreiras diversificadas para pesquisadores de doutorado e pós-doutorado?” A fim de responder a essa indagação, são utilizados dados comparáveis e um questionário padrão respondido por representantes de 15 países, sendo a África do Sul o único não-membro da OCDE.
Cenário atual e determinantes das carreiras de pesquisadores
A revisão de literatura analisa os fatores que levam doutores a permanecerem na academia ou a buscarem outras trajetórias. São apontados desafios de ordem individual (como a ausência de informações sobre outras carreiras potenciais), organizacional e da cultura universitária. A incompatibilidade entre as necessidades dos empregadores e as habilidades adquiridas ao longo do doutorado é citada como um importante obstáculo para a inserção de doutores nas empresas. Entretanto, alguns estudos questionam esse argumento, sugerindo que o problema da baixa empregabilidade desses profissionais estaria, na verdade, na baixa qualidade dos programas e de seus egressos. Destaca-se também a discussão de temas sensíveis, como a carga de trabalho excessiva de pesquisadores em início de carreira e a imagem de sucesso profissional predominante na academia, representada de maneira quase exclusiva pela obtenção de uma posição de professor permanente (tenure position), sendo outras carreiras identificadas como alternativas de menor valor ou um “plano B”.
A comparação internacional de dados aponta para fatos conhecidos, como o crescimento dos programas de doutorado, as baixas taxas de titulação e a predominância de alunos nas áreas de “ciências”. Um fato relevante trata do destino profissional dos novos pesquisadores, que, nos países-membros da OCDE, são menos empregados em empresas e mais em organizações de ensino superior, organizações públicas e na área de saúde. E os doutores contratados por essas empresas dedicam-se, na maior parte dos casos, a serviços profissionais e relacionados (como tecnologia da informação e comunicação, atividades financeiras e no setor imobiliário), havendo pouco aproveitamento nos setores industrial, de mineração e agricultura. Uma novidade apontada é que, em 2021, pela primeira vez, as empresas foram as principais empregadoras dos novos doutores nos Estados Unidos, o que sugere um princípio de mudança de tendência.
Políticas em desenvolvimento, boas práticas e recomendações
A principal contribuição do trabalho é a compilação de boas práticas e políticas já implementadas nos países investigados. Tais iniciativas são agrupadas em cinco blocos: regulação, financiamento, informação, políticas organizacionais e outras práticas relevantes. A profusão de exemplos citados torna difícil a apreensão de um panorama, embora forneça ao leitor um leque amplo de medidas à disposição de governos e gestores interessados em melhorar e ampliar as perspectivas profissionais de seus estudantes.
As iniciativas mais transformadoras citadas encontram-se nos campos da regulação (tomada em sentido amplo) e do financiamento. No primeiro caso, destacam-se as medidas que buscam limitar o uso de contratos temporários por instituições de pesquisa na Alemanha, Espanha e França, seja estabelecendo um prazo máximo para esses vínculos ou determinando a transformação automática em contratos permanentes depois de certo tempo. Quanto ao financiamento, notam-se os programas de bolsas e auxílios para contratação de doutores por empresas na Bélgica, Canadá e Chile, além de incentivos para colaboração universidade-empresa na Coréia do Sul e Noruega.
Por fim, as medidas para geração e disseminação de informação partem do diagnóstico de que parte do problema está no baixo nível de conhecimento de novos pesquisadores sobre outras carreiras, pois essa informação poderia ajudá-los a ampliar seus horizontes. Para isso, alguns países, como África do Sul, Bélgica, Japão e Suíça, têm instituído observatórios e pesquisas nacionais para a coleta e divulgação de dados sobre os rumos profissionais de seus estudantes e pesquisadores de doutorado e pós-doutorado.
A partir dessa compilação, são apresentadas oito recomendações gerais de políticas para promoção de carreiras diversificadas para novos cientistas (listadas abaixo). Para cada recomendação, são apontadas medidas específicas que podem ser adotadas. Nota-se que ao menos três recomendações (1, 5 e 6) dizem respeito ao aprofundamento dos vínculos e da interlocução entre a academia e outros setores.
Recomendação 1. Promover o engajamento e a interação entre instituições acadêmicas e potenciais empregadores fora da universidade.
Recomendação 2. Conceder a pesquisadores oportunidades de experiência profissional e de desenvolvimento de habilidades voltadas a carreiras dentro e fora da universidade.
Recomendação 3. Aumentar a visibilidade e valorizar outras opções de carreira (além da tradicional carreira de magistério).
Recomendação 4. Oferecer aconselhamento profissional sobre opções de carreiras para pesquisadores e seus orientadores.
Recomendação 5. Promover a mobilidade intersetorial com empresas.
Recomendação 6. Promover a mobilidade intersetorial com instituições públicas e privadas sem fins lucrativos.
Recomendação 7. Reconfigurar os modelos tradicionais de carreira acadêmica e incentivar outras opções.
Recomendação 8. Apoiar a mobilidade internacional.
Aplicações ao caso brasileiro
Em linhas gerais, a análise de contexto, conclusões e recomendações do relatório são aplicáveis ao caso brasileiro. Assim como nos países analisados, as universidades nacionais expandiram de forma expressiva seus programas de doutorado nos anos pré-pandemia. E, uma vez que a educação superior no país não acompanhou essa tendência (embora também tenha crescido, impulsionada pela demanda e por políticas públicas), cerca de 60% dos novos doutores acabou empregado fora do setor educacional em 2017. Outro ponto convergente é o baixo aproveitamento de doutores no setor empresarial — apenas 9,6% são empregados em empresas e apenas 1,3% na indústria de transformação. Por fim, no Brasil também se observou uma ampliação dos vínculos de caráter temporário e precário para doutores, como os contratos de professor substituto em universidades públicas, as contratações por horas-aula trabalhada em instituições privadas e as bolsas de estágio de pós-doutorado. Entre 2000 e 2021, o número de bolsistas de pós-doutorado financiados pelas duas principais agências de fomento federais (CAPES e CNPq) cresceu 5.763% (de apenas 80 para 4.667 ao final do período), o que denota como essa modalidade de contratação foi incorporada à produção científica nacional.
As principais características do contexto brasileiro que divergem daquelas apresentadas no relatório são as altas taxas de titulação no doutorado nas universidades nacionais (que podem ser superiores a 80%) e o crescimento expressivo de programas multidisciplinares e nas áreas de ciências humanas e sociais aplicadas. Tais fatores não invalidam as conclusões e recomendações do relatório para o Brasil, embora chamem a atenção para alguns pontos específicos citados, como a importância da qualidade e do rigor acadêmico dos programas e a necessidade de mobilidade e de interlocução com o setor público, que pode se beneficiar da mão-de-obra formada nos campos de conhecimento citados.
As políticas recomendadas, em sua maioria, podem contribuir para o melhor aproveitamento da força de trabalho de novos cientistas. O Brasil possui um quadro institucional favorável para a implementação dessas medidas, uma vez que o governo federal tem competência para realizar a avaliação dos programas de pós-graduação (por meio da avaliação quadrienal da CAPES), além de dispor de agências de fomento que outorgam um significativo número de bolsas e financiamentos de atividades científicas (além das agências e fundações de fomento estaduais). Tais instrumentos podem ser direcionados para promover a alocação de pesquisadores em outros setores, seja por meio da valorização dessas atividades ou de seu financiamento direto.
Algumas dessas medidas já vêm sendo implementadas no país, embora possam ser aprofundadas e aprimoradas. No campo do financiamento, o CNPq possui linhas para contratação e fixação de pesquisadores nas empresas, como a Bolsa de Fomento Tecnológico e Extensão Inovadora, a Bolsa de Pós-Doutorado Empresarial e o Programa de Formação de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas (RHAE). Quanto à valorização de outras carreiras, a avaliação dos programas de pós-graduação da CAPES contempla o “destino, atuação e avaliação dos egressos do programa em relação à formação recebida”, embora o detalhamento desse critério fique a cargo de cada área de avaliação. A dimensão em que o Brasil talvez esteja mais avançado é a produção e disseminação de informações sobre doutores e cientistas. O país desenvolve diferentes iniciativas nesse sentido, como a coleta e divulgação anual de dados dos programas e alunos de pós-graduação pela CAPES; os levantamentos de mestres e doutores realizados pelo CGEE; o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPq; e a Plataforma Lattes, que reúne informações sobre as trajetórias e produções científicas e tecnológicas dos pesquisadores nacionais.
Considerando esse cenário, as recomendações do relatório da OCDE que poderiam colaborar mais para o aprimoramento do quadro brasileiro referem-se à reconfiguração das carreiras acadêmicas tradicionais (a fim de garantir maior diversidade e mobilidade intersetorial com instituições públicas e privadas), à valorização de outras opções de carreiras dos egressos dentro e fora da universidade (que pode ser expandida no arcabouço de avaliação de programas) e à ampliação dos instrumentos de incentivos para projetos cooperativos e a colaboração universidade-empresa, a fim de expor alunos e docentes a experiências profissionais diversas e permitir o desenvolvimento de habilidades para atuação em diversos ambientes.
Referência: OECD. Promoting diverse career pathways for doctoral and postdoctoral researchers, OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, No. 158. Paris: OECD Publishing, 2023. Disponível em <https://www.oecd.org/publications/promoting-diverse-career-pathways-for-doctoral-and-postdoctoral-researchers-dc21227a-en.htm>. Acesso em 5.10.2023.