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A corrida dos carros voadores
Aeronaves elétricas que pousam e decolam na vertical impulsionam projetos de pesquisa e desenvolvimento ao redor do mundo com a promessa de reduzir congestionamentos e melhorar a qualidade do ar nas grandes cidades
Publicado em 30/08/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h49
Antes restritos a peças de ficção científica, os carros voadores estão cada vez mais próximos de se tornarem uma realidade nos céus das grandes cidades. Várias empresas ao redor do mundo estão investindo em projetos de desenvolvimento dessas aeronaves. Conhecidos como eVTOL (acrônimo em inglês de Electric Vertical Take-Off and Landing, veículo elétrico que decola e pousa na vertical), esses aparelhos se apresentam como uma alternativa para reduzir congestionamentos e melhorar a qualidade do ar nas metrópoles.
A Uber foi uma das primeiras a investir nesse segmento de mercado com o programa Elevate, lançado em outubro de 2016 e voltado ao desenvolvimento e teste de eVTOLs. A ideia era lançar serviços de taxi aéreo nas cidades de Los Angeles e Dallas, nos Estados Unidos, e de Melbourne, na Austrália, até 2023.
Para viabilizar o projeto, a Uber firmou parcerias com várias empresas e institutos de pesquisa, como a Boeing, a fabricante de helicópteros Bell, a agência espacial norte-americana (Nasa), a Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e a Escola Politécnica de Paris, na França, com a qual criou um Centro de Tecnologias Avançadas, fruto de um investimento de cerca de € 20 milhões (R$ 93 milhões). O objetivo era que o centro realizasse pesquisas para o desenvolvimento de protótipos de eVTOLs e se dedicasse à criação de uma infraestrutura para apoiar o deslocamento desses veículos nas cidades.
No entanto, o projeto não avançou como a Uber havia planejado. Em 2020 a empresa vendeu a Elevate para a startup californiana Joby Aviation. “A mobilidade aérea avançada tem o potencial de ser exponencialmente positiva para o meio ambiente e as futuras gerações, e esse acordo nos permite aprofundar nossa parceria com a Joby e acelerar o caminho para o mercado dessa tecnologias”, disse à época Dara Khosrowshahi, presidente-executivo da Uber.
A iniciativa, de fato, ajudou a impulsionar o mercado de eVTOLs. Desde então, várias empresas passaram a investir nessas aeronaves, resultando em vários projetos em diferentes estágios de maturação. Muitos já contam com protótipos funcionais, caso da fabricante europeia de aviões Airbus e da montadora japonesa Toyota.
Na Europa, a startup alemã de táxi aéreo urbano Volocopter pretende lançar seu eVTOL de dois lugares, o VoloCity, até 2024 — se tudo correr bem, Paris será a primeira cidade a usar um serviço de eVTOL para transporte de pessoas na Europa.
A Lilium, outra empresa alemã, também trabalha em um eVTOL capaz de transportar até seis passageiros. A empresa espera obter certificação da agência reguladora aeroespacial europeia (EASA) até 2025.
A China também está atenta à tecnologia dos carros voadores. Recentemente, a autoridade de aviação civil chinesa publicou um esboço de diretrizes sugerindo o estabelecimento de padrões regulatórios para eVTOLs. O país espera ter em operação até 2035 um sistema de gestão aérea que inclua essas aeronaves. Os chineses também estão desenvolvendo seu próprio eVTOL. A empresa Ehang, por exemplo, já realizou vários ensaios de seu protótipo de aeronave, a Ehang 184, que comporta apenas uma pessoa — a companhia pretende criar um modelo de dois lugares.
Os eVTOLs conjugam características de helicópteros e aviões. Como os primeiros, pairam, decolam e pousam verticalmente, de modo que não precisam de pistas longas para operar. Também conseguem se deslocar para frente, para trás e para os lados. A diferença entre eles e os helicópteros está na concepção de asas fixas e na quantidade de rotores. Enquanto a maioria dos helicópteros modernos possui um rotor maior, acima da cabine, e um menor, na cauda, os eVTOLs são projetados para ter vários rotores atuando em conjunto.
Por sua vez, a principal semelhança entre os eVTOLs e os aviões é a existência de asas fixas, que lhes conferem mais estabilidade durante o voo e maior autonomia (tempo máximo de voo ou distância máxima percorrida pelo veículo). O fluxo de ar que passa sob as asas ajuda a manter a aeronave por mais tempo no ar, gastando menos energia.
Um diferencial dos eVTOLs é que, além de serem elétricos, podem ter fontes híbridas de energia, como baterias, células fotovoltaicas e células a combustível. Aviões e helicópteros utilizam principalmente querosene de aviação — combustível derivado do petróleo — para mover seus motores, contribuindo para a emissão de gases de efeito estufa.
Essas aeronaves podem voar entre 240 e 320 quilômetros por hora (km/h) em uma altitude que pode variar de 330 a 600 metros. No futuro, devem contar com locais específicos de pouso e decolagem, chamados skyports. Em um primeiro momento, no entanto, deverão utilizar a infraestrutura de heliportos das próprias cidades em que estiverem operando.
O desenvolvimento de eVTOLs encontra-se bastante avançado. Vários sistemas de navegação e controle para detecção e desvio de obstáculos, identificação de falhas de sistemas e manobras agressivas estão sendo ou já foram criados para serem acoplados a essas aeronaves. Mas ainda existem desafios que precisam ser superados, como garantir treinamento adequado aos pilotos que vão operar esses carros voadores.
A CAE, líder global em sistemas de treinamento de aviação, e a Volocopter anunciaram em julho de 2021 uma parceria estratégica para desenvolver, certificar e entregar um programa de treinamento de pilotos para eVTOLs. O objetivo é garantir a introdução segura dos serviços de táxi aéreo no mundo. A CAE também firmou parceria com a Joby Aviation para desenvolver dispositivos de simulação de voo para treinar futuros pilotos, ao passo que a FlightSafety International, empresa de treinamento de aviação dos Estados Unidos, concordou em fornecer treinamento de piloto e manutenção para a operação dos eVTOLs da empresa alemã Lilium GmbH.
Outro desafio é aprimorar o sistema de controle de tráfego aéreo urbano para garantir rotas de navegação seguras para essas aeronaves. Essa questão é crítica à entrada em serviço dos eVTOLs. No Brasil, o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) trabalha em um modelo que exija menor intervenção humana para garantir a separação das aeronaves, antecipando futuras operações no país. A tecnologia deverá abrir caminho para a escalada das operações sem multiplicar a intervenção humana no controle de tráfego aéreo.
Algumas empresas de tecnologia também têm buscado soluções automatizadas para essa aplicação — e o Brasil vem se destacando nesse sentido. Há alguns anos, a Atech, subsidiária da Embraer especializada em soluções para o tráfego aéreo, trabalha em um sistema capaz de integrar a futura demanda de uso do espaço aéreo urbano brasileiro pelos eVTOLs e garantir a convivência segura entre os diversos serviços de transporte aéreo.
Em outubro de 2022, a Eve Air Mobility, spin-off da EmbraerX, braço da fabricante brasileira de aviões sediada nos Estados Unidos com foco em inovações disruptivas lançada em 2020, anunciou uma parceria com a Skyway Technologies para desenvolvimento de um software voltado ao gerenciamento de tráfego aéreo urbano.
O Brasil também se destaca no desenvolvimento dessas aeronaves, sobretudo por meio da Eve Air Mobility. A empresa vem trabalhando em seu próprio carro voador. Em julho de 2020, seus engenheiros realizaram o primeiro voo em um simulador — o aparelho recria aeronaves em voo em ambiente virtual e também é usado para o treinamento de pilotos. Mais recentemente, em maio de 2023, a empresa anunciou a conclusão dos testes em túnel de vento de sua aeronave. Essa é uma etapa importante do desenvolvimento de um eVTOL, pois permite que a equipe de engenheiros e projetistas analise o fluxo de ar em torno do aparelho e de cada uma de suas partes individualmente.
Os ensaios foram feitos em uma instalação próxima à cidade de Lucerna, na Suíça. Na ocasião, a equipe da Eve pôde medir as forças aerodinâmicas que atuam sobre a aeronave e avaliar sua sustentação, eficiência, qualidade de voo e desempenho. Para isso, usou um modelo em escala do eVTOL. “As informações obtidas nessa fase de desenvolvimento nos ajudarão a refinar ainda mais as soluções técnicas de nosso eVTOL antes de nos comprometermos com ferramentas de produção e protótipos”, destacou em comunicado Luiz Valentini, diretor de tecnologia da Eve. “O objetivo é projetar, produzir e certificar um eVTOL aerodinâmico e eficiente que será usado para uma variedade de missões de mobilidade aérea urbana”, completou.
Em junho de 2023, a Eve anunciou que construirá sua fábrica de eVTOL na cidade de Taubaté, a cerca de 140 km de São Paulo. As aeronaves deverão ser fabricadas em uma unidade já existente da Embraer, que será ampliada para receber a linha de produção dos eVTOLs. “A implantação da fábrica representa um marco significativo para a indústria de transporte aéreo da cidade”, destacou o prefeito da Taubaté. “Essa iniciativa trará diversos benefícios para o município, como a geração de empregos qualificados, investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e uma maior visibilidade no cenário tecnológico nacional e internacional.”
Segundo a empresa, a construção do primeiro protótipo em escala real deve começar no segundo semestre de 2023. Testes adicionais estão previstos para 2024 e 2025. A Eve planeja iniciar a operação comercial de seu eVTOL em 2026. A aeronave vem sendo projetada para transportar quatro passageiros. Deverá operar como um táxi voador, fazendo deslocamentos no perímetro urbano ou pequenas viagens entre cidades próximas. Cada viagem custará inicialmente entre US$ 50 e US$ 100 por passageiro. O carro voador será conduzido por um piloto em um primeiro momento, mas a expectativa da empresa é a de que, no futuro, faça voos autônomos com passageiros, sem uma pessoa na cabine de comando.
A Eve já contabiliza uma demanda potencial de compra de 2.770 desses veículos. Em junho de 2021, a empresa anunciou parcerias com a operadora de helicópteros Helisul Aviation e a Halo, empresa de táxi aéreo e fretamento de helicópteros nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os acordos preveem a venda de 200 eVTOLs para a Halo e outros 50 para a Helisul. Se tudo correr como o programado, as primeiras aeronaves serão entregues em 2026.
O movimento da Embraer tem feito com que outras empresas brasileiras também invistam no mercado de carros voadores elétricos. Em 2021, a Gol divulgou um protocolo de intenção de compra de 250 eVTOLs da empresa britânica Vertical Aerospace. No mesmo ano, a Azul disse ter planos para obter 220 aeronaves da companhia alemã Lilium.
Além do projeto dos veículos em si, da infraestrutura de pouso e decolagem e de um sistema seguro e eficaz de controle de tráfego aéreo, outro desafio que ainda dificulta a consolidação desse mercado diz respeito à eficiência energética dos eVTOLs. As baterias usadas por essas aeronaves ainda são pesadas, caras e energeticamente pouco eficientes. Cientistas do mundo trabalham para elevar a eficiência aerodinâmica e dos motores desses carros voadores, de modo a fazer com que possam voar por mais tempo consumindo menos energia. Uma das apostas são soluções híbridas de geração de energia elétrica, envolvendo células fotovoltaicas e a combustível.