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Os desafios para consolidação dos veículos elétricos no Brasil
Falta de apoio político sustentado, subsídios e incentivos públicos comprometem acesso da população a veículos elétricos no país
Publicado em 05/07/2023 - Última modificação em 29/04/2024 às 17h48
O governo federal formalizou em junho o lançamento de uma política de concessão de créditos tributários às montadoras de carros populares no Brasil. A medida oferece incentivos para veículos de até R$ 120 mil e representará uma isenção aos cofres públicos da ordem de R$ 500 milhões — a cifra funcionará como uma trava: quando os créditos atingirem esse montante, o incentivo será encerrado. A estimativa é que a queda no preço final desses automóveis varie entre 1,5% e 10,9%.
A proposta de estímulo é “transitória, anticíclica, para este momento de muita ociosidade na indústria”, afirmou o vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), ao apresentar detalhes da proposta, em fins de maio.
A redução se propõe a conceder incentivos fiscais progressivos a fabricantes que atendam a três critérios: um social (quanto mais barato, maior o desconto nas alíquotas); um ambiental (com maiores deduções para carros menos poluentes); e um de densidade industrial (quanto mais peças e acessórios produzidos no Brasil, maior será o desconto).
As empresas queriam que as isenções se estendessem por até um ano, mas o Ministério da Fazenda as limitou a quatro meses, período em que as montadoras projetam vender 120 mil veículos novos, preservando 101 mil empregos diretos e mais de 1,2 milhão indiretos.
Segundo levantamento do MDIC, 84% dos recursos para financiamento do programa já foram consumidos. Mesmo assim, em fins de junho, a Volkswagen — que já havia solicitado R$ 60 milhões em créditos tributários — suspendeu a produção de novos carros em suas fábricas no país. De acordo com a empresa, o motivo é a “estagnação do mercado”.
Recentemente, o governo decidiu adicionar mais R$ 300 milhões ao programa, elevando o valor total disponibilizado para R$ 800 milhões. Também o ampliou, de modo a contemplar caminhões e ônibus, com descontos que vão de R$ 33,6 mil a R$ 99,4 mil.
A medida tem sido duramente criticada. O governo espera movimentar o mercado interno, incentivar a indústria e gerar empregos, mas economistas afirmam que o diagnóstico de que haverá fortalecimento do setor com a concessão de subsídios para estimular a demanda é equivocado.
Especialistas lembram ainda que vários países estão desestimulando o uso do transporte individual para atingir suas metas de descarbonização, e que o governo brasileiro estaria na contramão do mundo ao incentivar a centenária indústria automotiva.
A redução das emissões de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2), é considerada uma prioridade em várias nações, e uma das principais estratégias para alcançar esse objetivo é reduzir a frota de veículos movidos a combustíveis fósseis — somente carros e vans representaram cerca de 8% das emissões globais diretas de CO2 em 2021.
Esse esforço também passa pela racionalização de subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis, os quais encorajam seu consumo exagerado — essa, inclusive, é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos em 2015 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Recentemente, o Parlamento da União Europeia aprovou uma legislação para diminuir gradualmente as vendas de carros e vans até 2035, de modo a substituir o atual modal por modelos elétricos. A medida integra um pacote legislativo mais amplo, o Fit for 55, projetado para reduzir as emissões de gases de efeito estufa da União Europeia em 55% até 2030.
As vendas de carros elétricos na Europa tiveram um crescimento de 65% em 2021 em relação ao ano anterior, segundo dados do relatório “Global Electric Vehicle Outlook 2022”, publicado anualmente pela Agência Internacional de Energia (AIE). Atualmente, eles respondem por 17% do mercado europeu. A dianteira é da Noruega e da Islândia, onde esses veículos representaram, respectivamente, 86% e 72% dos emplacamentos no ano.
De modo geral, a venda mundial de veículos elétricos mais do que dobrou entre 2020 e 2021, alcançando 6,6 milhões de unidades. Metade dos negócios foi feito na China. O país é o maior produtor de veículos movidos por eletricidade (VEs) no mundo. O número de unidades vendidas anualmente cresceu de 1,3 milhão para 6,8 milhões nos últimos dois anos, sendo que 2022 foi o oitavo ano consecutivo em que a China foi o maior mercado de VEs.
O sucesso dos VEs nesses países é impulsionado por vários fatores. Apoio político sustentado é o pilar principal, além de subsídios e incentivos, os quais quase dobraram em 2021 para quase US$ 30 bilhões, segundo dados da AIE.
A China é talvez o país que mais se vale dessa estratégia. Há anos investe em incentivos de isenção fiscal e até incentivos financeiros para levar o consumidor a optar por veículos elétricos em detrimento de veículos movidos a combustível fóssil.
Desde 2009, o país também concede subsídios financeiros a empresas de VEs para que produzam ônibus, táxis e automóveis individuais. Entre 2009 e 2022, a China investiu mais de US$ 29 bilhões em subsídios e incentivos fiscais para que suas firmas melhorassem seus veículos, tornando-os mais acessíveis aos consumidores.
O Brasil ainda caminha a passos vagarosos em direção à adoção de veículos movidos a eletricidade. É bem verdade que o país registrou no ano passado 49.245 emplacamentos de veículos desse tipo. No entanto, eles representam uma parcela pequena ante os quase 2 milhões de carros vendidos por aqui. A participação brasileira nesse mercado subiu de 1,8% em 2021 para 2,5% em 2022, e agora há uma frota circulante de 126.504 unidades, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). O crescimento é expressivo, mas está longe do ritmo de outros países.
Um dos principais obstáculos para a adoção de VEs é o preço. O cenário nacional é hoje dominado por veículos híbridos importados ou que dependem de importações para serem fabricados, o que acaba encarecendo o preço do produto — quase todos os modelos comercializados no Brasil custam na faixa de R$ 150 mil e R$ 300 mil.
Os incentivos oferecidos pelo governo também são modestos: isenção de IPVA (a depender do estado), liberação do rodízio municipal na capital paulista, e imposto de importação reduzido ou zerado para modelos importados — esse último, adotado em 2015, deverá acabar no segundo semestre de 2023, segundo a Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (Abeifa).
A alíquota zerada tinha fim esperado. Deveria se encerrar em dezembro de 2021, mas foi prorrogada. Recentemente, a Abeifa propôs ao governo uma retomada escalonada do imposto para modelos eletrificados, variando de acordo com sua eficiência: 2% para veículos elétricos a bateria, 4% para veículos híbridos, 7% para veículos híbridos leves 48V. Segundo a proposta, o aumento do imposto seria gradual, começando em 2% até chegar a 20%, equivalente à Tarifa Externa Comum (TEC) adotada pelos países-membros do Mercosul.
Paralelamente, o Projeto de Lei nº 5308/2020 se encontra desde março de 2021 em análise na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviço (CDEICS) da Câmara dos Deputados. O texto propõe zerar o Imposto de Importação dos veículos elétricos e híbridos até 31 de dezembro de 2025.
Ou seja, o diagnóstico atual indica que o Brasil não dispõe de uma política robusta que apoie a tecnologia do motor elétrico, muito embora o setor automotivo, além da política tarifária, tenha sido beneficiado ao longo dos anos por políticas de atração e estímulo, nacionais e regionais. Uma delas foi o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto), que vigorou de 2013 a 2017.
Seu objetivo era construir “condições para o aumento de competitividade no setor automotivo, produzir veículos mais econômicos e seguros, investir na cadeia de fornecedores, na engenharia, na tecnologia industrial básica, na pesquisa e no desenvolvimento e capacitação de fornecedores”, por meio de um regime tributário que isentava as empresas do aumento de 30 pontos percentuais na alíquota do IPI para automóveis importados.
Criado pela Lei n° 12.715/2012, o intuito principal do regime não era apenas proteger a indústria nacional, mas impulsionar os processos produtivos e os investimentos em inovação e engenharia, de modo a elevar o patamar da produção nacional e obter automóveis melhores, mais eficientes e com menos emissão de carbono.
Ao analisar essa política e os entraves e incentivos para a popularização dos automóveis elétricos no Brasil, o sociólogo Rodrigo Foresta Wolffenbüttel, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), constatou que não houve na política um percentual mínimo de veículos com emissão zero de gases de efeito estufa. “Tampouco existe em sua redação qualquer incentivo específico para o desenvolvimento de tecnologias relacionadas a fontes de energias alternativas, como motores elétricos, híbridos e células de combustível”, escreveu o pesquisador em artigo publicado em 2022 na Revista Brasileira de Inovação.
Essas ausências, além de representarem entraves à consolidação de um Sistema Tecnológico de Inovação voltado aos veículos elétricos — como a entrada de novos atores, formação de um mercado embrionário, legitimação da tecnologia, e mobilização de recursos —, acabaram por favorecer a produção de externalidades positivas para o motor de combustão interna e reforçar seu domínio. Como consequência, o Inovar-Auto não produziu nenhum efeito expressivo sobre a produção, venda ou desenvolvimento de pesquisas relacionadas a automóveis elétricos e híbridos no sistema tecnológico.
Enquanto espera por incentivos mais eficazes para a transição energética na indústria automotiva, o Brasil tem outras propostas em andamento no Congresso. Entre elas, o Projeto de Lei nº 6.020/2019, que cria uma política de incentivo tributário à pesquisa e ao desenvolvimento da mobilidade elétrica no Brasil.
O texto foi aprovado recentemente pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. Em linhas gerais, determina que as empresas beneficiadas por renúncias fiscais do Programa Rota 2030 deverão aplicar 1,5% da redução em impostos em pesquisas feitas em instituições públicas e voltadas ao desenvolvimento de tecnologias de mobilidade elétrica. A medida deverá, entre outras coisas, impulsionar estudos sobre baterias avançadas para veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia estacionária.
As baterias representam um dos principais gargalos tecnológicos da eletrificação no Brasil e no mundo. Elas ainda têm um custo muito alto e há problemas ligados à mineração que precisam ser mais bem trabalhados. A bateria de um veículo elétrico dura cerca de 15 anos e é composta por materiais difíceis de serem recuperados. Se lançadas em aterros sanitários, correm o risco de passar por um processo chamado fuga térmica, uma reação química que pode fazer com que aqueçam a ponto de queimar ou explodir, provocando sérios impactos ambientais, como contaminação do solo e da água.
Alguns países, como a Noruega, já se preparam para reciclar todas as baterias de carros elétricos a partir de 2025, com um aumento significativo no volume até 2030.
Para que esses projetos avancem no Brasil, é preciso desenvolver parcerias consistentes e incentivos adequados às companhias do setor para dar condições ao desenvolvimento da tecnologia necessária para produção dos módulos das baterias no país.