Artigo
Ciência e pseudociência durante a pandemia de COVID-19
O papel dos “intermediários do conhecimento” nas políticas dos governos estaduais no Brasil
Publicado em 30/11/2021 - Última modificação em 06/06/2022 às 16h21
Para que evidências científicas possam ser incorporadas em políticas de forma adequada, é preciso um conjunto de pessoas e organizações que sintetizem conhecimentos científicos e os transformem em material que possa ser diretamente utilizado por governos. Estes são denominados na literatura de “intermediários do conhecimento” (no original, knowledge brokers) (Smith, 2013; Lomas, 2007; Ward, House, and Hamer, 2009, 200; Meyer, 2010). Sua importância decorre do fato de que gestores ou autoridades de governo raramente possuem formação científica, tornando mais difícil o uso adequado e preciso de informações científicas nas políticas públicas. Assim, intermediários do conhecimento prestam um serviço essencial à efetiva incorporação de conhecimentos científicos em políticas, “traduzindo” conhecimentos científicos e, neste processo, adaptando-os a fim de que possam ser diretamente utilizados por não-experts (Meyer, 2010).
Durante a pandemia de COVID-19, intermediários do conhecimento tiveram um papel central: ao mesmo tempo em que respostas precisavam ser rápidas, governos enfrentaram problemas relacionados à escassez de informações nos estágios iniciais da pandemia, ao alto volume de informações em seus estágios posteriores e à disseminação de informações sem base em evidências científicas durante toda a epidemia. Estas características e dinâmicas da pandemia demandaram pessoas capazes de filtrar informações de qualidade e “separar o joio do trigo”. Um esquema simples de como funciona um sistema de intermediação de evidências científicas – e alguns dos resultados produzidos a partir dele – é apresentado na figura 1. Para além de filtros de produção científica (número 2 na figura), são necessários filtros adicionais (número 4 na figura) que transformem a produção científica em material útil para governos, adaptado a situações específicas e com linguagem acessível. Diversos tipos de organizações podem desempenhar este papel: comitês científicos, grupos de experts, organizações da área de saúde (OMS, OPAS, Fiocruz, por exemplo), institutos públicos de pesquisa, e grupos ou organizações que façam revisões sistemáticas (algumas revistas científicas, por exemplo). Alguns destes podem desempenhar simultaneamente os papéis de filtro de produção científica e filtro para governos, produzindo resultados diferentes para públicos diferentes, tal como se observa em revistas científicas de alta qualidade ou em instituições que não apenas geram mas também intermediam conhecimento (Fiocruz, por exemplo). Neste processo, intermediários (ou filtros) não apenas divulgam ou reproduzem conhecimentos, mas também geram um certo tipo de conhecimento – o chamado conhecimento intermediado (brokered knowledge) (Meyer, 2010).
O trabalho Ciência e pseudociência durante a pandemia de COVID-19: o papel dos “intermediários do conhecimento” nas políticas dos governos estaduais no Brasil (Moraes, 2021) compara como os governos dos estados brasileiros filtraram evidências da área de saúde e de outras disciplinas importantes para a contenção da epidemia (por exemplo, economia da saúde, ciência de dados, ciências comportamentais) e as incorporaram em políticas de enfrentamento à COVID-19. Foi avaliado se – e em que medida – os arranjos institucionais de enfrentamento à pandemia criados pelos governos estaduais apresentaram as seguintes características: 1) criação tempestiva; 2) escopo abrangente e preciso; 3) participação de especialistas; 4) interdisciplinaridade; 5) transparência; e 6) proximidade com o processo político. Para cada um destes aspectos, atribuiu-se o valor de “2” caso o arranjo tenha apresentado estas características de forma substancial, “1” caso as tenha apresentado de forma parcial, e “0” caso não as tenha apresentado ou as tenha de forma limitada. Os resultados são apresentados no mapa 1.[1]
Estes dados indicam que todos os governos estaduais agiram de forma relativamente rápida no início da pandemia, criando ou ampliando arranjos institucionais específicos para elaborar políticas e adotando medidas obrigatórias de distanciamento social. Contudo, houve variação substantiva quanto às demais características destes arranjos. Alguns governos estaduais mobilizaram especialistas de referência em áreas importantes para o enfrentamento da pandemia (infectologia, virologia, epidemiologia, ciência de dados, economia da saúde, dentre outras), como ocorreu na Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, e São Paulo. Outros, contudo, criaram comitês com formatos não adequados à gestão de uma pandemia, compreendendo majoritariamente pessoas com pouca ou nenhuma experiência nestas disciplinas, como ocorreu no Mato Grosso, Rio de Janeiro (durante parte do período em análise), e Roraima.
A interdisciplinaridade nos comitês estaduais (ou equivalentes) foi o ponto mais deficiente, havendo contudo algumas exceções (Rio Grande do Sul, por exemplo). Trata-se de um problema, pois uma equipe interdisciplinar poderia oferecer métodos diversos para se enfrentar a pandemia, combinando conhecimentos da área de saúde pública e de outras disciplinas (ciência de dados, economia da saúde, ciências comportamentais, por exemplo). A transparência dos trabalhos foi também um ponto deficiente em muitos estados, havendo neles pouca informação divulgada ao público sobre como os comitês trabalhavam e seus resultados.
Um ponto comum (e positivo) na maior parte dos estados foi a influência dos comitês. Embora alguns estados tenham tido comitês especialmente influentes (Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe), em poucos casos se observaram comitês sem influência. Situações como estas foram observadas apenas no Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro (em parte do período analisado).
Além destes seis parâmetros, o trabalho investigou se – e em que medida – governos usaram informações sem base em evidências científicas. Estas poderiam estar relacionadas ao chamado “tratamento precoce”, a outras formas de tratamento ou prevenção da COVID-19, ao desencorajamento do distanciamento social, ou à defesa da imunidade de rebanho via transmissão da doença. De forma semelhante aos demais critérios, atribuiu-se o valor de “-2” caso governos tenham adotado políticas ou feito recomendações com estas características de forma substancial, “1” de forma parcial, e “0” caso não as tenham feito ou as tenham feito de forma limitada. Os resultados são apresentados no mapa 2 (em uma escala de -6 a 0).[2] Dos 15 estados nos quais políticas ou recomendações deste tipo foram observadas, 14 foram as do “tratamento precoce” e uma (no Distrito Federal) à imunidade de rebanho.
Com base nos dados gerados nesta pesquisa e em informações da literatura secundária, sugere-se o seguinte para governos (e cientistas):
- Cientistas (ou grupos de cientistas) de referência devem ter papel central no apoio à elaboração de políticas de enfrentamento à pandemia. Eles prestam um serviço essencial, qual seja o de filtrar evidências de qualidade, especialmente em um contexto de elevada produção científica e ampla circulação de informações falsas, distorcidas, ou de estudos que não atendem aos requisitos de uma pesquisa rigorosa.
- Seja no formato de comitês científicos seja em outros formatos, estes espaços devem ser mantidos até o final da pandemia (e de preferência por um tempo razoável após o seu término) de forma que governos se mantenham a par da produção científica relacionada à doença.
- Caso ainda não o tenham feito, governos devem abandonar políticas pseudocientíficas e esclarecer a população sobre seus riscos. Se recomendações não científicas foram feitas, deve-se enfatizar os erros cometidos e corrigi-los por meio do esclarecimento da questão junto à sociedade. Uma comunicação transparente e efetiva é central para se evitar danos ainda maiores.
- A pandemia demonstrou a importância não apenas da utilização de evidências científicas, mas também da popularização da ciência como instrumento de saúde pública. Quanto mais pessoas tiverem conhecimento sobre o que é a ciência – e como ela pode (e deve) ser utilizada – menor a probabilidade de que informações falsas ou distorcidas sejam influentes, e maior a probabilidade de que a população demande do Estado políticas baseadas em evidências.
- Ao se pensar na utilização de evidências científicas, é importante que cientistas antecipem o quanto um governo está disposto a incorporar evidências científicas em políticas. Neste sentido, governos podem ser de três tipos: i) os que buscam incorporar evidências, mas têm dificuldade em fazê-lo; ii) os interessados em incorporar evidências, mas que valorizam mais outros critérios na tomada de decisão (interesses de grupos de pressão, por exemplo); e iii) os sem interesse em utilizar evidências e que tomam decisões baseadas em outros critérios, tais como “intuição” das autoridades ou tradição. Na primeira situação, o trabalho é relativamente fácil, tendo em vista que evidências científicas estão sendo buscadas por gestores. Na segunda situação, é necessário um processo de persuasão acerca da importância do uso de evidências científicas e de como estas são vantajosas em relação a outros critérios na tomada de decisão. Na terceira situação, é pouco provável que cientistas consigam persuadir governantes. Nestes casos, sugere-se uma abordagem de contenção de danos a fim de reduzir (ainda que marginalmente) os impactos negativos decorrentes da baixa importância atribuída à ciência.
- Políticos e gestores devem manter arranjos permanentes de intermediação do conhecimento (knowledge brokering), ou seja, não apenas durante situações de emergência. Em função de sua capacidade de filtrar conhecimento útil para uma dada situação a partir de um vasto universo de conhecimento científico, intermediários do conhecimento podem trazer evidências tanto em situações de crise (uma epidemia, por exemplo) como em situações de “rotina”.
* Técnico de Planejamento da Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Dinte) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rodrigo Fracalossi de Moraes agradece os comentários e sugestões de Alexandre de Ávila Gomide, Fabio de Sá e Silva, Flávia de Holanda Schmidt, Janine Mello dos Santos, Natália Massaco Koga, Pedro Lucas de Moura Palotti, e Renato Baumann. Agradece também a Adriano Matias da Silva, Carolina Miranda Futuro e Gabriela da Costa Silva pelo auxílio na coleta de parte das informações e revisão do texto. Este artigo é uma síntese de texto para discussão publicado pelo Ipea (Moraes, 2021).
[1] A definição destas características e os critérios para a codificação destas variáveis são apresentados em detalhes no trabalho original: Moraes (2021).
[2] Os critérios para a codificação destas variáveis são apresentados em detalhes no trabalho original: Moraes (2021).
Referências
Lomas, Jonathan. 2007. ‘The In-between World of Knowledge Brokering’. Bmj 334 (7585): 129–32.
Meyer, Morgan. 2010. ‘The Rise of the Knowledge Broker’. Science Communication 32 (1): 118–27.
Moraes, Rodrigo Fracalossi de. 2021. ‘Ciência e Pseudociência Durante a Pandemia de Covid-19: O Papel Dos “Intermediários Do Conhecimento” Nas Políticas Dos Governos Estaduais No Brasil (Publicação Preliminar)’.
Smith, Katherine. 2013. Beyond Evidence Based Policy in Public Health: The Interplay of Ideas. Springer.
Ward, Vicky, Allan House, and Susan Hamer. 2009. ‘Knowledge Brokering: The Missing Link in the Evidence to Action Chain?’ Evidence & Policy: A Journal of Research, Debate and Practice 5 (3): 267–79.