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A importância da infraestrutura para a produção em C&T: o caso CNPEM/Sirius
O Brasil precisa de um plano de investimentos em infraestrutura de pesquisa que amplie a capacidade instalada e impeça a obsolescência
Publicado em 17/11/2021 - Última modificação em 31/05/2022 às 15h55
A disponibilidade de instalações para pesquisa robustas e de qualidade (laboratórios, plantas piloto, coleções, data centers entre outros) é crucial para o sucesso da produção científica e tecnológica e para ampliar as oportunidades inovativas de um país. Essa infraestrutura pode estar localizada em universidades ou, como é o caso de muitos países, em instituições voltadas preponderantemente à pesquisa.
A Alemanha foi um dos primeiros países a criar um sistema dual de pesquisa científica, no qual, além das universidades, institutos de pesquisa autônomos teriam papel crucial, conforme mostra estudo recente. A criação da Sociedade Max-Planck, em 1948, sucedendo o Kaiser Wilhelm Society, de 1911, foi um marco desse processo. O Max-Planck é uma rede de institutos de pesquisa científica financiada pelos governos federal e subnacionais alemães, geridos por uma associação privada sem fins lucrativos e que possuem autonomia e independência na seleção e condução de suas pesquisas. Os Estados Unidos seguiram o mesmo caminho, nos anos posteriores à II Guerra Mundial, quando foram criados a maior parte dos laboratórios nacionais a partir de vultosos investimentos públicos.
Atualmente, a maioria dos países desenvolvidos conta com sistemas de Ciência e Tecnologia compostos tanto por universidades quanto por institutos de pesquisa independentes, financiados com orçamento público. Essas instituições representam parte significativa, quando não a maior, da pesquisa de ponta desenvolvida nesses países. Entre as vantagens desse tipo de infraestrutura estão a multidisciplinaridade de suas equipes e sua escala de produção. Esse tipo de instituição costuma ter centenas ou milhares de pesquisadores, muitas vezes voltados a pesquisas correlatas ou a temas comuns, tal como os Institutos Nacionais de Saúde, dos EUA.
No Brasil, a maior parte da pesquisa científica e tecnológica ainda é realizada dentro das universidades. São poucas as instituições de grande porte, com equipes multidisciplinares, voltadas a desafios comuns e cuja missão principal é a pesquisa, tais como a Embrapa ou a Fiocruz. Livro publicado em 2016, pelo Ipea, identificou que a maior parte das instalações de pesquisa brasileiras são laboratórios de pequeno porte, comportando em média quatro pesquisadores, dentro dos departamentos das universidades brasileiras. Poucas são as instalações multidisciplinares, abertas e multiusuários, como são os Laboratórios Nacionais Norte-Americanos e os Institutos Max-Planck, para ficar apenas nos dois exemplos citados.
O Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM) é uma dessas instituições, onde estão localizados quatro grandes laboratórios de pesquisa: o de luz sincrotron, de biociências, de biorrenováveis e de nanotecnologia. Seu modelo de atuação foi inspirado nos laboratórios nacionais norte-americanos, onde o financiamento é público, mas a gestão é feita por uma instituição de direito privado, uma Organização Social. É uma infraestrutura aberta e multiusuário, o que significa que seus laboratórios estão disponíveis para uso de pesquisadores brasileiros ou estrangeiros, oriundos de qualquer universidade, instituto de pesquisa ou empresa. Assim como nos grandes laboratórios multiusuários ao redor do mundo, os projetos de pesquisa candidatos a utilizar suas instalações são selecionados por cientistas com base na qualidade e viabilidade técnica. Apenas em 2019, por exemplo, foram executados, no CNPEM, 752 projetos de pesquisa. Esses experimentos mobilizaram uma equipe de 1.554 pesquisadores de 152 instituições de pesquisa do Brasil e do exterior.
Uma das principais instalações de pesquisa do CNPEM é o Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS). A luz síncrotron funciona como um grande microscópio que permite a observação da estrutura interna de materiais a partir da radiação emitida por elétrons em alta velocidade, quando desviados por um campo magnético. O Brasil construiu sua própria fonte de luz síncrotron em 1997, com a inauguração do UVX pelo CNPEM, na época Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuz). Foi o primeiro equipamento desse tipo na América Latina e representou um marco para a ciência brasileira. Foi fruto muito mais da vontade política de alguns policymakers que queriam introduzir a chamada big Science no Brasil e de alguns cientistas envolvidos no projeto do que da comunidade científica ou da sociedade em geral.
Os resultados científicos e tecnológicos de uma infraestrutura como essa são significativos. Embora não se pretenda aqui fazer uma análise de impacto robusta, alguns números podem ilustrar os resultados de uma infraestrutura como essa. Entre 2010 e 2019, o fator de impacto das publicações realizadas a partir do uso das instalações do CNPEM aumentou 49%, passando de 2,730 para 4,068. Em pesquisa pelo termo “CNPEM” nos campos de autores da base do Web of Science (WoS), é possível encontrar 2.349 artigos publicados em inglês nesse período, 335 só no ano de 2019. São pesquisas realizadas nas mais variadas áreas, tais como Ciência dos Materiais, Química Física, Física Aplicada, Nanociência e Nanotecnologia, Biologia Molecular, Biotecnologia e Engenharia Agrícola.
Entre os anos de 1990 e 2000, o Brasil só havia publicado 23 artigos com o termo luz sincrotron, de acordo com pesquisa sobre a palavra-chave no WoS (figura 1). No mundo, países como EUA, Alemanha e Japão são referência no que se refere à quantidade de trabalhos publicados sobre o tema. Ao longo dos anos, percebe-se um aumento de artigos desenvolvidos na China e a entrada de países como a Coreia do Sul e Índia no circuito de publicações sobre sincrotron. A partir da inauguração do UVX, o Brasil passa a desenvolver mais pesquisas com o uso dessa tecnologia, passando de uma participação mundial de 1,16%, no início dos 90, para 2,10% em 2020.
A produção tecnológica, direta ou indireta, desse tipo de instalação também é significativa. Uma busca no google patents, mostra que foram quase 80 patentes depositadas pelo CNPEM no mundo, nos últimos 10 anos. Para se ter uma ideia, o CERN, a Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, onde está o maior acelerador de partículas do mundo, depositou cerca de 140 patentes na última década, segundo a mesma fonte. Além disso, muitas empresas utilizam suas instalações para a realização das mais diversas pesquisas e para o desenvolvimento de novos produtos e processos.
Não por acaso, o uso da luz sincrotron no Brasil passou de 229 usuários em 1997 para 2.320 em 2009, o que foi um dos fatores a evidenciar a necessidade de ampliação e modernização desse laboratório. O aumento do número de usuários ao longo dos anos e a possiblidade de construção de fontes de luz mais modernas (de quarta geração) fez com que, em 2006, o CNPEM iniciasse os estudos para a construção da segunda fonte de luz sincrotron brasileira, que receberia o nome de Sirius.
O Sirius foi orçado em US$ 585 milhões, o equivalente a R$ 1,3 bilhões, em 2014. Desse valor, R$ 670 milhões corresponderam às obras, R$ 220 milhões às estações experimentais, R$ 228 milhões à fonte luz sincrotron, R$ 94 milhões à gestão e infraestrutura e outros R$ 88 milhões aos recursos humanos. Ao contrário do que ocorreu na construção do UVX, que teve seus principais componentes desenvolvidos pelos próprios técnicos do CNPEM, o Sirius ofereceria maiores oportunidades de desenvolvimento de novas tecnologias por diversos fornecedores brasileiros. A utilização de encomendas tecnológicas como mecanismo de indução de novas tecnologias durante a construção do Sirius foi originalmente apontada por Rauen (2017), em capítulo de livro publicado pelo Ipea em 2017.
Relato do CNPEM sobre a construção do Sirius mostrou que cerca de 85% das peças, componentes e equipamentos utilizados na construção da nova fonte de luz foram desenvolvidos no Brasil. Cerca de 280 empresas foram contratadas para fornecer peças e componentes e outras 45 desenvolveram soluções tecnológicas utilizadas no projeto. Para isso, de acordo com Rauen (2017), o CNPEM usou diferentes modalidades de compras e aquisições para ter acesso às tecnologias que iriam compor o Sirius. Entre elas, é possível destacar: i) a Avaliação Competitiva, similar a uma concorrência na qual pelo menos três propostas deveriam ser recebidas; ii) a Dispensa, quando o contrato envolvia alta complexidade tecnológica; iii) a Compra de P&D, quando a solução ainda não existia no mercado e; iv) a Encomenda Tecnológica, na qual três empresas entravam em uma primeira etapa para a construção de um protótipo e apenas a mais bem sucedida ganhava o contrato.
Galdino (2020) corrobora os resultados de Rauen em relação à importância do projeto Sirius como exemplo de indução da inovação pelo lado da demanda. O estudo avança na realização de entrevistas com algumas empresas envolvidas no projeto, a fim de identificar os impactos tecnológicos do Sirius nos processos produtivos e de pesquisa dessas empresas. Algumas delas tiveram que criar ou reestruturar seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Esse efeito foi mais relevante em empresas de pequeno e médio porte, que encararam o desafio como uma oportunidade de se capacitarem tecnologicamente, conforme foi relatado, por exemplo, por empresas como Omnisys, Atmos ou a Engecer. Empresas grandes, como a Weg, precisaram desenvolver novas tecnologias ou processos para atender a demanda do Sirius, como Rauen (2017) também havia relatado. Mesmo já consolidada no mercado, a empresa teve que criar um laboratório para atender às especificações do projeto. Apesar de não ter os eletroímãs em seu portfólio natural, a empresa poderá utilizar o know-how adquirido com o projeto para se tornar fornecedora de outros aceleradores a serem construídos ao redor do mundo.
Outras tecnologias foram desenvolvidas pela própria equipe do CNPEM. Entre elas, por exemplo, um monocromador (dispositivo ótico que transmite uma faixa estreita de comprimentos de onda, dividindo a luz em cores individualizadas) desenvolvido especificamente para o Sirius, em 2019, e cuja patente foi depositada nos Estados Unidos, China, Japão, Canadá e Austrália e Europa.
Esses são apenas alguns exemplos de como as instalações de pesquisa podem impactar a produção científica e tecnológica de um país. Além da produção direta de conhecimento e inovações, a própria construção dessas instalações também impulsiona o desenvolvimento de soluções tecnológicas.
O Brasil, embora possua um sistema científico e tecnológico mais diversificado do que vários outros países latino-americanos, ainda está muito longe de ter um sistema dual como a maioria dos países desenvolvidos. A quantidade de instalações de pesquisa de grande porte, abertas e multidisciplinares, se restringe a pouquíssimos casos. Se o país quiser, efetivamente, ser um agente relevante na produção científica e tecnológica mundial, é fundamental o investimento nesse tipo de infraestrutura. Afinal, tanto a qualidade e atualização tecnológica de instalações e equipamentos quanto seu tamanho e escala de produção impactam a eficiência da produção científica e tecnológica.
É necessário, portanto, elaborar um plano de investimentos na infraestrutura científica e tecnológica do país que, ao mesmo tempo impeça a obsolescência das instalações já disponíveis nas Universidades Brasileiras, tenha como objetivo ampliar a disponibilidade de instalações e institutos com foco prioritário na pesquisa e no desenvolvimento tecnológico. Foi isso que fizeram diversos outros países ao perceber que a pesquisa de ponta não cabe mais apenas dentro da Universidade. O Brasil, ao contrário, parece querer desmontar a infraestrutura que logrou construir ao longo de décadas.
* Emanuel Galdino é doutorando em Sustentabilidade pela Universidade de São Paulo (EACH-USP) e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC)