Artigo

Os psicodélicos vão revolucionar a psiquiatria?

A ciência psicodélica e sua aplicação no tratamento de males como trauma e depressão avançam mundo afora, e pesquisadores brasileiros estão nessa vanguarda

Flavio Lobo

A ciência psicodélica, ramo de pesquisa iniciado em meados do século 20 e quase extinto entre a décadas de 1970 e 80, começou a reflorescer no final do século passado.  De acordo com dados da Web of Science, a escalada iniciada no início dos anos 90 superou a marca de 700 publicações em 2019.

Web of science psychedelic publication count by yearFonte: Petranker R, Anderson T, Farb N. “Psychedelic research and the need for transparency: polishing Alice’s looking glass”. Frontiers in Psychology, 2020.

Mais notáveis que o crescimento do número de publicações são alguns resultados de estudos sobre aplicações medicinais de substâncias como psilocibina, MDMA e LSD[1].

A eficácia de terapias com psicodélicos para distúrbios psiquiátricos como depressão e trauma severos tem se mostrado, em várias casos, superior à dos métodos e drogas atualmente adotados. Com vantagens adicionais, para os psicodélicos, de maior rapidez no alívio dos sintomas e tratamento químico limitado a poucas doses administradas durando protocolos de tratamento que duram entre algumas semanas e poucos meses.

O potencial dos psicodélicos vêm sendo reconhecido nas mais prestigiosas instâncias de legitimação científica, como demonstra reportagem de janeiro de 2021 da revista Nature intitulada “Como o ecstasy e a psilocibina estão chacoalhando a psiquiatria”[2].

Avanços da "ciência psicodélica" (entendida neste artigo sobretudo como o campo dos estudos biológicos das substâncias e seus efeitos – cumprindo assinalar que outras áreas da ciência, como a antropologia e a psicologia, têm sido vitais para o avanço do conhecimento sobre psicodélicos) conquistam espaço e reconhecimento também na imprensa generalista.

No dia 30 de setembro de 2021, uma rápida busca de notícias sobre psicodélicos publicadas na semana anterior resultou em dezenas de resultados. Para ficar num único exemplo, brasileiro, reportagem do UOL publicada no dia 25, informou sobre duas novas pesquisas, já em andamento, acerca de propriedades terapêuticas da ayahuasca (chá de origem indígena, também conhecido como daime, que contém, entre outras substâncias com potencial medicinal, o psicodélico DMT[3]). Conduzidos por pesquisadores da faculdade de medicina da USP de Ribeirão Preto, os estudos preveem aplicação de rigorosa metodologia de testes clínicos – com randomização e utilização de placebo – para investigar os efeitos da bebida no tratamento de alcoolismo e transtorno depressivo maior (TDM).

Substâncias, efeitos, e tecnologias psicodélicas

A definição de psicodélico tem variações e é objeto de disputas, mas a composição da família dos psicodélicos “clássicos” – que inclui LSD, mescalina, psilocibina e DMT – é bastante incontroversa[4]. Apesar das diferenças no que tange aos efeitos percebidos por quem os utiliza, essas substâncias produzem estados de percepção sensorial intensificada e extraordinária (visões vividamente coloridas de formas e padrões geométricos que podem remeter a fractais estão entre os efeitos mais conhecidos).

Outro efeito frequente é uma intensa sensibilidade emocional, com memórias afetivamente carregadas podendo emergir à consciência. O processamento cognitivo durante as experiências varia entre alta velocidade e intensidade de pensamentos e períodos de grande quietude mental, com imersão em sensações e sentimentos. Vivências reportadas como “insights” (revelações impactantes para as pessoas que as vivenciam), dotadas de caráter místico, transcendental e/ou espiritual são relativamente comuns, inclusive entre pessoas que se descrevem como não predispostas a tais experiências.

A categorização dessas substâncias tem sido disputada por perspectivas contrastantes a respeito das suas propriedades. Numa visão focada em efeitos adversos, elas são classificadas como “alucinógeno”: algo, portanto, que distorce, falseia, engana e confunde. Já a etimologia da palavra “psicodélico” sugere algo praticamente oposto. O termo nasceu, na década de 1950, pela associação de duas palavras gregas que juntas significam manifestação da psique ou alma – indicando sobretudo potencial para experiências de autoconhecimento.

A literatura sobre o tema demonstra que a utilização dessas substâncias pode proporcionar tanto confusão e ilusão quanto vivências reveladoras e renovadoras. O fato de as propriedades dos psicodélicos apontarem para diferentes direções possíveis não os distingue de outras drogas farmacológicas, uma vez que, conforme já sabia Paracelso no século 16, “a dose correta diferencia o veneno do remédio”.

A novidade, no caso das novas terapias psicodélicas, é que, além da importância do conhecimento da substância, sua qualidade e pureza, e das características da pessoa e do distúrbio que se pretende tratar, há outro elemento indispensável para a segurança e eficácia do tratamento. O terceiro fator é o ambiente no qual a experiência acontece, o que abarca o local, o(s) terapeuta(s) presente(s) e sua forma de atuar, além de outros elementos que compõem a vivência, com destaque para música. Isso porque, diferentemente dos remédios tradicionais, usados para agir apenas bioquimicamente, sem participação consciente do paciente, a maioria dos modelos terapêuticos com psicodélicos, notadamente os que têm se mostrado mais eficazes, são essencialmente experienciais e se baseiam no tripé substância/dose, paciente/distúrbio, ambiente/condução terapêutica (ou, em inglês, substance, set and setting).

Tendo em vista a potência e o impacto das experiências psicodélicas e a influência que fatores ambientais exercem sobre elas, estudiosos da área, como o antropólogo David Dupuis, propõem parâmetros especiais de cuidado com as “tecnologias psicodélicas” e seus protocolos terapêuticos.

Denomino “tecnologias psicodélicas” dispositivos sociais compostos por elementos materiais, discursivos e interativos que têm a propriedade – seja ela propositadamente constituída ou não – de modelar a experiência do usuário.

(…)

Isso abre a perspectiva de exploração sistemática de fatores extrafarmacológicos da experiência psicodélica (...) Essa melhor compreensão da dinâmica da experiência psicodélica pode levar ao desenvolvimento de tecnologias dotadas de maior precisão.

(…)

Diante das notáveis propriedades dos psicodélicos aqui descritas, as comunidades científica e de usuários devem se manter vigilante em relação aos usos emergentes desse tipo de substâncias e suas implicações éticas no futuro próximo.[5]

Como os psicodélicos podem curar

No processo de renascimento da ciência psicodélica, uma série de avanços, com destaque para o campo da neurociência e das tecnologias de investigação do cérebro, propiciaram a refutação de supostas “verdades científicas” que justificavam a demonização dessas substâncias. A melhor compreensão dos psicodélicos vem permitindo identificar o baixo risco de danos à saúde[6] representado por eles quando usados com conhecimento e responsabilidade.

Juntamente com o dimensionamento mais realista dos riscos, o avanço das pesquisas vem apresentando resultados promissores do emprego dessas substâncias para o enfrentamento de distúrbios de alta prevalência e grande impacto para indivíduos, comunidades e sociedades, como depressão, ansiedade, traumas persistentes, alcoolismo, tabagismo e outras formas de dependência química, adição e comportamento compulsivo. Males para os quais as respostas farmacológicas e terapêuticas hoje prescritas e adotadas vêm se mostrando, em boa medida, insuficientes ou mesmo inadequadas.

Nas últimas décadas do século passado – sobretudo a partir do lançamento de pílulas de fluoxetina sob o nome fantasia Prozac, anos 80 – disseminaram-se expectativas de cura química do sofrimento psíquico e da inadaptação social, impulsionada pela chegada ao mercado de novas gerações de antidepressivos e outros moduladores do humor. Apesar de muitos pacientes se beneficiarem efetiva e significativamente do uso dessas drogas, já neste século, a percepção de existência de “uma crise da psiquiatria” foi se consolidando para parte dos estudiosos e profissionais da área. Evidências das limitações, custos e riscos de um modelo excessivamente centrado em “diagnósticos de manual” e prescrição de fármacos de uso contínuo vêm se acumulando. Além de ineficaz para parte considerável dos pacientes, esse tipo de tratamento é dispendioso e foi se mostrando menos seguro do que inicialmente se anunciava.

Quando, nas últimas décadas, começaram a surgir evidências do potencial promissor de um novo modelo de tratamento, com uso pontual de substâncias, apenas durante processos terapêuticos de curta duração, capaz de curar ou reduzir significativamente os sintomas, a ideia de haver uma revolução psiquiátrica em gestação foi ganhando força.

Com auxílio de tecnologias como a ressonância magnética, a ciência vem identificando os principais efeitos dos psicodélicos na atividade cerebral, como o aumento da quantidade de alguns neurotransmissores, a redução da atividade em certas áreas e aumento em outras. Moléculas parecidas com a serotonina, os psicodélicos aumentam a quantidade desse neurotransmissor e intensificam a atuação do sistema serotoninérgico, ligado à regulação de sensações, emoções, humor, faculdades cognitivas e motoras. A atividade do córtex pré-frontal – região dedicada a processamentos complexos relacionados a sentidos e sensações, pensamentos, sentimentos, atenção, tomadas de decisão e comportamento – é intensificada, enquanto a amigdala, área mais primitiva em termos evolucionários, responsável por emoções e reações de prontidão na luta por sobrevivência, como medo e agressividade, é reduzida.

Numa síntese genérica e simplificada, podemos dizer que o potencial terapêutico dos psicodélicos decorre da sua capacidade de gerar estados e processos neuronais, emocionais e cognitivos que permitem aos pacientes alterar padrões estagnados de processamento de ideias e memórias, percepções, crenças e narrativas aprisionadoras e dolorosas sobre si mesmos e sobre a vida. Quando bem-sucedida, essa renovação mental e afetiva se associa a flexibilização de comportamentos enrijecidos, propiciando mudanças profundas e duradouras.

A “oferta” de novos caminhos de pensamento e ação que o uso seguro de psicodélicos pode propiciar aos indivíduos ganhou novas representações visuais graças a tecnologias de investigação do funcionamento cerebral. Em um estudo cujos resultados foram divulgados em 2014, as ativações de conexões neuronais entre diferentes regiões do cérebro são representadas por linhas no interior de círculos.

rsif20140873f06Fonte: Petri G, Expert P, Turkheimer F, Carhart-Harris R, Nutt D, Hellyer PJ, Vaccarino F. “Homological scaffolds of brain functional networks”. Journal of The Royal Society Interface, 2014.

Geradas com dados colhidos por ressonância magnética, as imagens mostram que, sem efeito de psicodélico (figura a), a quantidade dessas conexões é pequena em comparação com a proliferação de conexões ativas sob efeito da substância estudada (que, no caso da figura b, é psilocibina).

Além do aumento da conectividade, os psicodélicos podem promover neuroplasticidade (capacidade do cérebro de se modificar de acordo com necessidades adaptativas) e a formação de novos neurônios e sinapses.

Pesquisas e instituições de ponta

O acúmulo de conhecimentos rigorosamente fundamentados associado à disposição inovadora de pesquisadores e terapeutas vem gerando novos protocolos de tratamento e pesquisa. Alguns desses protocolos produziram resultados tão expressivos que receberam o selo “terapia revolucionária” (breakthrough therapy) da mais conhecida agência regulatória de fármacos do mundo, a Food ande Drug Administration (FDA) estadunidense. Já foram admitidos nessa categoria, dois protocolos terapêuticos com psilocibina para o tratamento de formas graves de depressão.

Um terceiro modelo de terapia com psicodélico reconhecido como revolucionário pelo FDA utiliza MDMA para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT ou, na sigla em inglês, PTSD). Na liderança do desenvolvimento desse tratamento está uma ONG estadunidense criada em 1986. A Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (MAPS, na sigla em inglês) foi criada exatamente com o objetivo de realizar esse trabalho, apesar de todos os obstáculos políticos, culturais, acadêmicos, regulatórios e econômicos que, na época, muitos consideravam intransponíveis.

Os resultados da “psicoterapia assistida com MDMA” desenvolvida pela MAPS têm se revelado significativamente superiores aos patamares de eficácia terapêutica na área psiquiátrica. Um ano depois de cumprir o protocolo, que dura ao todo três meses e meio, cerca de dois terços dos pacientes atendidos – casos graves, que já haviam se submetido, sem sucesso, aos atuais tratamentos-padrão – não apresentavam quadro sintomático de TEPT. Entre as centenas de pessoas que já passaram pelo tratamento, há muitos veteranos de guerra e sobreviventes de violência sexual, grupos priorizados nos testes da MAPS.

Hoje a MAPS, que parece estar bem perto de realizar sua missão fundadora – segundo previsão divulgada pela própria ONG, modelo psicoterápico com MDMA para tratar TEPT deve ser aprovado nos EUA, Canadá e Israel até 2023 –, se define como uma “instituição de pesquisa e educação sem fins lucrativos dedicada a promover contextos médicos, legais e culturais que permitam às pessoas se beneficiar do uso cuidadoso de psicodélicos e maconha”. A MAPS ajuda a financiar estudos com psicodélicos em vários países e tem pesquisas em andamento com cannabis, LSD, ayahuasca e ibogaína.

Percebendo os potenciais da ciência psicodélica e de suas aplicações para a saúde, tradicionais instituições de pesquisa passaram a investir significativos talentos e recursos na área e, em alguns casos, criaram centros de pesquisa a ela dedicados. Hoje, os dois exemplos mais expressivos nesse sentido, em termos de estrutura, investimento, visibilidade, amplitude e resultados de pesquisa, são o Centro de Pesquisa em Psicodélicos do Imperial College de Londres e o Centro de Pesquisa sobre Psicodélicos e Consciência da Universidade Johns Hopkins, nos EUA.

O centro do Imperial College foi o primeiro a utilizar modernas tecnologias de geração de imagens cerebrais para investigar os efeitos do LSD. Foi também pioneiro no estudo da psilocibina para tratamento de depressão severa e hoje desenvolve várias linhas de pesquisas que o mantém como referência no cenário da ciência psicodélica. Em 2021, em outra iniciativa pioneira, começou um teste clínico com DMT para o tratamento de transtorno depressivo maior.

Para se ter uma ideia da variedade de aplicações terapêuticas de psicodélicos atualmente em estudo, a relação de pesquisas em andamento no centro especializado da Johns Hopkins é um bom ponto de partida. Constam na lista tratamentos para depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, adição e dependências químicas, Alzheimer e anorexia. No final de 2020, um estudo dessa instituição sobre a eficácia da psilocibina utilizada em um protocolo terapêutico para o tratamento de depressão foi amplamente noticiado em razão da expressividade dos resultados.

Ciência psicodélica no Brasil

Pesquisadores e instituições de pesquisa do Brasil têm participado da vanguarda do renascimento psicodélico. Estudos rigorosos desenvolvidos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob a liderança de Dráulio Araújo, sobre os potenciais da ayahuasca para o tratamento de depressão – no sistema de ensaio randomizado com controle de placebo –, cujos resultados foram publicados em 2018, são marco no avanço internacional da ciência psicodélica. Nos últimos anos, o grupo produziu e publicou vários estudos importantes, como o que gerou a imagem que ilustra este artigo, representação computacional da atividade cerebral sem e com influência da ayahuasca.

Em 2019, a publicação de resultados de pesquisa liderada por Sidarta Ribeiro, outro neurocientista da UFRN, e Stevens Rehen (UFRJ e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino) fixaram um marco nos estudos do LSD, indicando potencial da substância para aumentar a aptidão cognitiva e frear declínio mental causado por envelhecimento. A pesquisa foi feita com modelo animal (em ratos) e por meio da tecnologia de “minicérebros” desenvolvida pela equipe de Rehen.

Como sugerem esses dois exemplos e os estudos com ayahuasca recém-iniciados na USP de Ribeirão Preto citados no início deste artigo, o número de pesquisadores e instituições brasileiras que participam destacadamente do renascimento da ciência psicodélica é significativo e crescente. Uma busca no catálogo online da Capes com o termo “ayahuasca”, por exemplo, indica a existência de 142 dissertações de mestrado e 44 teses de doutorado contendo a palavra, e os títulos desses trabalhos mostram que o chá amazônico é objeto central da maioria deles.

Também no campo do empreendedorismo psicodélico, há iniciativas brasileiras em curso. Uma delas é desenvolvida pelo Instituto Phaneros, ONG que, sob a liderança do neurocientista Eduardo Schenberg, oferece cursos para estudantes e profissionais da área de saúde interessados em adquirir conhecimento atualizado sobre psicodélicos e modelos de aplicação clínica dessas substâncias. Schenberg incluiu o Brasil na pesquisa internacional para teste do protocolo terapêutico da MAPS, tratando portadores de TEPT com psicoterapia assistida por MDMA e recentemente anunciou a realização de novos ensaios clínicos com 300 pacientes.

Uma “revolução psicodélica” é possível?

As resistências e interesses contrários aos avanços da ciência psicodélica e sobretudo da disseminação de suas aplicações ainda são consideráveis. Concepções associadas ao ideário da guerra às drogas, mesmo que já superadas pela ciência[7], demonstram ter longa sobrevida na sociedade, na mídia, na própria academia e na comunidade médica. Além disso, uma das grandes vantagens das terapias com auxílio de psicodélicos – a utilização de poucas doses das substâncias dentro de protocolos curtos, em vez de tratamentos químicos diários e contínuos – não parece combinar com os atuais modelos de negócio de indústria farmacêutica.

Há resistências consideráveis no próprio campo profissional da saúde mental. Segundo Dartiu Xavier da Silveira, a psiquiatria brasileira é, de modo geral, conservadora e refratária a novas ideias e alternativas envolvendo substâncias tradicionalmente tratadas pelos médicos apenas como perigo a ser evitado. Psiquiatra e neurocientista pioneiro nas pesquisas de ayahuasca e psilocibina nas áreas das ciências do cérebro e da saúde no Brasil, Dartiu identifica essa mentalidade de seus colegas como obstáculo importante para a adoção e expansão de terapias psicodélicas no país.

Inovações de potencial revolucionário frequentemente requerem mudanças em procedimentais fortemente lastreadas na cultura de comunidades e organizações. Para entidades como o FDA estadunidense e a brasileira Anvisa, a autorização de substâncias hoje ilícitas em muitos países e jurisdições para utilização integrada a modelos psicoterápicos é um novo tipo de desafio regulatório, que demandará certo grau de inovação também por parte dessas agências.

Como informa a revista Nature, o crescente número de testes clínicos – que atingiram o recorde de 17 em 2020 e, no final de janeiro de 2021, somavam um total de 12 já iniciados ou programados para começar neste ano – prenuncia que, em breve, “os órgãos de regulação terão de lidar com protocolos de administração de poderosos psicodélicos”.

Nature clinical trials 27 de janeiro de 2021Fonte: Nature, janeiro de 2021.

A expectativa dos desenvolvedores dessas novas tecnologias terapêuticas integradas, envolvendo aplicação de conhecimentos da farmacologia, neurociência, psiquiatria, psicologia, terapias corporais (e em alguns casos, também saberes tradicionais, de povos que desenvolveram, ao longo de séculos ou milênios, tratamentos com utilização de substâncias provenientes de plantas, fungos e animais) é que os resultados que serão obtidos pelos pacientes, suas famílias e círculos sociais serão remédio eficaz contra preconceitos e outras resistências.

Diante da multiplicação das pesquisas, a abundância de resultados expressivos, a quantidade crescente de ensaios clínicos e o aumento de iniciativas, investimentos e visibilidade midiática, já se pode considerar que modelos de terapia psicodélica deverão se tornar disponíveis nos próximos anos. O acesso efetivo, entretanto, poderá não abranger a maior parte dos portadores distúrbios psiquiátricos. Se os sistemas públicos de saúde não se adaptarem para oferecer essas terapias – que prometem propiciar importante economia de recursos a médio e longo prazo, mas, no início, demandarão investimento considerável, inclusive na formação de profissionais capazes de aplicá-las –, elas poderão ser acessíveis somente para os mais providos de recursos.

Os psicodélicos irão revolucionar a psiquiatria?

Hoje, a resposta realista em face da trajetória da ciência, das tecnologias e terapias psicodélicas, do atual cenário e tendências em curso, se divide em duas partes.

Tratamentos inovadores – e revolucionários dos pontos de vista científico e clínico –tendem, sim, a ser aprovados, regulados e aplicados em diversos países.

Se os resultados se confirmarem tão impactantes quanto sugerido por vários estudos, sistemas públicos de saúde deverão ser instados a adotar esses novos modelos terapêuticos. Caso isso aconteça, os benefícios para a saúde pública, a produtividade, criatividade, bem-estar e qualidade de vida das pessoas, comunidades e sociedades poderão merecer plenamente a expressão “revolução psicodélica”.

 

NOTAS

[1] Psilocibina é princípio ativo contido nos chamados “cogumelos mágicos”. MDMA e LSD são siglas moleculares para 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA) e dietilamida do ácido lisérgico, respectivamente.

[2] Ecstasy é um dos “nomes-fantasia” do MDMA no mercado ilícito – portanto, desregulado – de drogas (no qual é difícil saber se a substância anunciada está mesmo presente no produto vendido, seu grau de pureza e estado de conservação).

[3] Sigla molecular da dimetiltriptamina.

[4] Além dessas substâncias, há outros psicodélicos utilizados terapeuticamente, como a ibogaína, princípio ativo da iboga, raiz de origem africana, usado para tratar dependências químicas, e a escetamina, droga farmacológica que não integra a categoria dos psicodélicos clássicos, por não agir no sistema serotoninérgico, mas pode produzir alterações de consciência comparáveis (utilizada originalmente como analgésico, em novembro de 2020 a escetamina foi aprovada pela Anvisa para indicação médica em casos de depressão resistente).

[5] Dupuis, D. Can psychedelics really change the world? Toward psychedelic Technologies. Mind Foundation, 2021.

[6] O risco de dependência química é particularmente baixo em relação a psicodélicos como LSD, mescalina, psilocibina, DMT, ayahuasca e ibogaína, cujos efeitos dificilmente geram compulsão, “fissura” ou síndromes de abstinência. No caso do MDMA – que alguns especialistas resistem a considerar um psicodélico, inclusive por ele não se caracterizar pela geração de visões, e preferem classificar como empatógeno (causador de conexão afetiva e empatia) – esse risco é um pouco mais alto.

Para um comparativo entre os riscos à saúde de várias drogas lícitas e ilícitas, clique aqui.

[7] Para sínteses atualizadas dos efeitos, propriedades e riscos de vários tipos de drogas psicotrópicas, clique aqui.

 

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

Aday JS, Bloesch EK, Davoli CC. 2019: “A year of expansion in psychedelic research, industry, and deregulation”. Drug Science, Policy and Law, 2020.

Barrett FS, Robbins H, Smooke D, Brown JL, Griffiths RR. “Qualitative and Quantitative Features of Music Reported to Support Peak Mystical Experiences during Psychedelic Therapy Sessions”. Frontiers in Psychology, 2017.

Dupuis D. “The socialization of hallucinations: Cultural priors, social interactions, and contextual factors in the use of psychedelics”. Transcultural Psychiatry, 2021.

Gomes-Medeiros D, Faria PH, Campos GWS, Tófoli LF. “Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários”. Cadernos de Saúde Pública [online], 2019.

Hartogsohn I. “Constructing drug effects: A history of set and setting”. Drug Science, Policy and Law, 2017.

Leite, M. Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira. Fósforo Editora, 2021.

Nutt DJ, King LA, Phillips LD. “Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis”. The Lancet, 2010.

Pasquini L, Palhano-Fontes F, Araujo DB. “Subacute effects of the psychedelic ayahuasca on the salience and default mode networks”. Journal of Psychopharmacology, 2020.

Pollan M. Como mudar sua mente: O que a nova ciência das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência. Intrínseca, 2018.

Ribeiro S. “Novo, mas nem tão admirável”. Folha de S. Paulo, 2014.

Schenberg EE. “Psychedelic-assisted psychotherapy: A paradigm shift in psychiatric research and development”. Frontiers in pharmacology, 2018.