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Diferentes tecnologias garantem segurança e eficácia das vacinas contra Covid-19

Pesquisa e desenvolvimento otimizaram produção sem desconsiderar etapas cruciais ou minimizar avaliações clínicas rigorosas em ampla escala

Samuel Antenor

A pandemia provocada pelo novo coronavírus suscitou uma corrida sem precedentes pelo desenvolvimento de vacinas capazes de conter o avanço da Covid-19 que, até o momento, de acordo com o painel de monitoramento mantido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), já contaminou mais de 75 milhões de pessoas e fez perto de 1,7 milhão de vítimas fatais ao redor do mundo.

Em diferentes países, laboratórios e instituições de pesquisa passaram os últimos meses em processos acelerados de estudo, a fim de desenvolver um imunizante apropriado para minimizar o impacto de saúde causado pelo SARS-CoV-2. Para tentar frear o avanço da doença, cientistas lançaram mão de diversas plataformas de pesquisa e diferentes tecnologias para desenvolver uma vacina segura e eficaz em tempo recorde.

Várias dessas tecnologias possibilitaram desenvolver diferentes tipos de vacinas, algumas em fase avançada de testes em humanos, outras registradas em alguns países para uso emergencial nas últimas semanas, inclusive já sendo aplicadas na população de países como Reino Unido, Estados Unidos e Canadá.

No Brasil, onde o Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, não implementou uma ação nacional articulada e coordenada para o controle da pandemia, o número de casos segue entre os mais altos do mundo. Ainda assim, o país está entre os que participam de estudos internacionais e já inicia a produção de pelo menos duas vacinas, resultantes de pesquisas multicêntricas.

Uma delas, desenvolvida em cooperação entre a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford (Reino Unido), conta com a parceria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para testes no Brasil, e deverá, se aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ser fabricada no país pelo laboratório Bio-Manguinhos, da Fiocruz.

A outra, desenvolvida pela biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech, já está em produção no Instituto Butantan, que coordenou os ensaios clínicos da fase III no Brasil. Ambos os casos têm previsão de transferência de tecnologia.

Da pesquisa à aprovação para uso populacional

O processo de desenvolvimento de vacinas é normalmente complexo e, entre tentativas e erros, leva bastante tempo até chegar ao produto final. Por isso, a busca internacional por um imunizante contra a Covid-19 foi acelerada, e as primeiras vacinas para uso na população, com registro para uso emergencial, foram aprovadas menos de um ano após a declaração de pandemia feita pela OMS.

No caso das vacinas contra a Covid-19, estudos clínicos multicêntricos de fase III de diversas vacinas candidatas, desenvolvidas com diferentes tecnologias vacinais, já envolveram em torno de 60 mil pessoas em todo o mundo, e foram avaliados preliminarmente sem esperar o prazo usual mínimo de 12 meses.

Atualmente, 164 candidatas a vacina estão em fase de pesquisa pré-clínica, em laboratório e em modelos animais, e 48 já estão em etapa de testes clínicos nas fases I, II e III, em diferentes países.

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Desenvolvimento atual

De acordo com a médica epidemiologista Cristiana Toscano, pesquisadora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (IPTSP/UFG), somente após a avaliação preliminar ou definitiva de fase III é que acontecem a aprovação, registro, licenciamento e liberação para uso de uma vacina na população.

Para o desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19, um esforço multicêntrico e multisetorial permitiu canalizar investimentos internacionais intensos voltados para pesquisa e produção de imunizantes frente à doença.

Embora considerado de risco, visto que normalmente apenas 20% dos estudos chegam aos ensaios clínicos com humanos (fase II), esses investimentos permitiram ampliar o leque de vacinas candidatas, utilizando plataformas tecnológicas distintas e aumentando as chances de se obter imunizantes com potencial de aprovação quanto à sua eficácia e segurança em tempo recorde e nível global.

Para tanto, segundo Toscano, que também integra o Comitê Técnico Assessor da Organização Panamericana da Saúde para Vacinação (TAG-Opas) e o Grupo de trabalho para vacinas Covid-19 do Comitê Consultivo Estratégico de Especialistas (SAGE, na sigla em inglês) em Imunização da OMS, resultados de estudos anteriores foram fundamentais, bem como de pesquisas nas últimas décadas no desenvolvimento de plataformas tecnológicas inovadoras para a produção de vacinas, como as de ácidos nucleicos e de vetores virais.

“Acompanhamos agora uma primeira leva de vacinas que serão usadas para iniciar a imunização internacional contra a Covid-19, mas haverá ainda vacinas de segunda e de terceira gerações, que deverão chegar aos estudos de fase III nos próximos meses”, afirma a pesquisadora. De acordo com ela, essas plataformas já estavam sendo estudadas para outros tipos de coronavírus, como o SARS e o MERS.

 

Panorama Covid-19 – vacinas candidatas em desenvolvimento

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Fonte: The Vaccine Centre of London School of Hygiene & Tropical Medicine

 

Contudo, com os resultados em mão, será preciso ampliar a capacidade de produção para essas novas vacinas, considerando que todas as outras mantiveram-se em produção em laboratórios de todo o mundo. A produção mundial de vacinas contra a Covid-19 concentra-se atualmente na Europa, América do Norte e Ásia.

“Para isso, está sendo feita uma antecipação da escala de produção, um investimento de risco que permite encurtar o tempo habitual para o desenvolvimento, avaliação e produção que permite o acesso às vacinas contra a Covid-19. Esse desenvolvimento segue um modelo inovador, que amplia e antecipa a escala de produção, iniciando-a junto com os estudos clínicos, ainda antes do registro e licenciamento da vacina”, explica.

Assim, a pesquisa por vacinas contra a Covid-19 conseguiu otimizar as etapas de produção sem pular fases ou minimizar as exigências de avaliações clínicas rigorosas em ampla escala, especificamente em análises nas fases I, II e III, essa última com dez vacinas candidatas atualmente em estudos.

Tecnologias emergentes

Na corrida por uma vacina eficiente e segura contra a Covid-19, o uso de várias vacinas candidatas utilizando plataformas diferentes aumenta as chances de bons resultados na imunização, e embora algumas tecnologias sejam novas, todas têm se mostrado promissoras.

As principais plataformas tecnológicas usam vírus inativados ou atenuados, vetores virais, subunidades proteicas e ácidos nucleicos (RNA ou DNA). Há um número crescente de candidatas de segunda e terceira gerações, em particular as baseadas em subunidades proteicas, consideradas de desenvolvimento mais complexo.

No mundo, há atualmente quatro vacinas candidatas que usam tecnologia inativada, com previsão de avaliação preliminar em fase III. A da Sinovac está entre elas. Há mais quatro vacinas de vetores virais, uma delas a da AstraZeneca. Há ainda duas vacinas de RNA, que recentemente foram avaliadas preliminarmente com mais de 90% de eficácia. Finalmente, há uma vacina de subunidade proteica sendo avaliada em fase III.

Usando o composto BNT162b2 com um trecho sintético da molécula de RNA-mensageiro do novo coronavírus, a vacina da Pfizer-BioNTech carrega uma proteína da coroa do Sars-CoV-2 encapsulada em partículas de gordura que se fundem às células humanas, produzindo uma proteína viral que, identificada pelo organismo, induz à produção de anticorpos. A da Moderna segue o mesmo princípio, mas utiliza o imunizante mRNA-1273, desenvolvido com o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos.

Para Toscano, essas vacinas, que usam tecnologia inédita para imunizar seres humanos, são bastante promissoras na área de vacinologia, e os resultados apresentados, considerando um período de seguimento médio de dois meses após a vacinação, apresentaram resultados muito bons de eficácia para evitar casos de Covid-19.

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Até o momento, há evidências de que o SARS-CoV-2 seja mais estável e menos sujeito a mutações do que outros vírus compostos por RNA, como o da influenza, o que indicaria não ser necessária a vacinação periódica para cobrir variantes virais, segundo a pesquisadora.

No entanto, ainda não se sabe qual a duração da proteção conferida pelas vacinas. Para isso, será necessário acompanhar os participantes dos estudos clínicos em andamento por mais tempo. Assim, a avaliação dos ensaios clínicos deverá continuar em 2021.

Acesso global às vacinas Covid-19

Entre os desafios atuais está a capacidade de produção e distribuição equitativa entre os países. Conforme artigo publicado na revista Nature em agosto, a capacidade global de produção das diferentes vacinas, em fase de autorização e início de aplicação, chega a algo próximo de 11 bilhões de doses até o final de 2021.

Já a distribuição dessas doses envolve os compromissos de compras já firmados por diferentes países, de forma individual, e também mecanismos multilaterais, como o Covax, pilar de vacinas do Acelerador de Acesso às Tecnologias COVID-19 (ACT, na sigla em inglês), incluindo tecnologias diagnósticas, terapêuticas e preventivas.

Mecanismo global de compartilhamento de riscos para aquisição e distribuição equitativa de eventuais vacinas contra a Covid-19, o Covax reúne 190 países e é coordenado pela OMS em conjunto com a Aliança Global de Vacinas (GAVI, na sigla em inglês), parceria entre a Fundação Bill e Melinda Gates e a OMS, e a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI).

Por meio do Covax, 92 países pobres deverão ter acesso a 1,3 bilhão de doses de alguma vacina contra a Covid-19 no primeiro semestre de 2021. Outros 80 países, entre eles o Brasil, aparecem na lista do Covax como economias com “autofinanciamento potencial”.

Contudo, o país conta com estratégias de acesso bilateral, como a transferência de tecnologia da AstraZeneca para a Fiocruz, com possibilidade de produção em Bio-Manguinhos de aproximadamente 220 milhões de doses até o final de 2021, e da Sinovac Biotech para o Instituto Butantan, que tem possibilidade produtiva de 46 milhões de doses até o final de 2020 e previsão de expandir a produção para 100 milhões de doses até o final do primeiro semestre de 2021.