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Comitês de Ética ajudam a regular pesquisas com seres humanos

Mecanismo de controle social com base em princípios éticos busca garantir integridade e dignidade de pessoas participantes de estudos científicos no país

Samuel Antenor

Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) são colegiados multi e transdisciplinares que atuam em todas as instituições que realizam estudos envolvendo seres humanos no Brasil, com o propósito de resguardar os interesses, a integridade e a dignidade dos sujeitos da pesquisa.

Formados por pesquisadores das áreas da saúde, ciências exatas, sociais e humanas, esses comitês avaliam o aspecto ético de projetos de pesquisa em suas respectivas áreas de conhecimento, parte de um procedimento conhecido como revisão por pares. 

De natureza consultiva, deliberativa, normativa e também educativa, os CEP devem agir de forma independente. Além disso, esses comitês contribuem para a qualidade dos trabalhos científicos nas áreas em que se aplicam, avaliando desde a adequação da proposta da pesquisa, incluindo objeto, finalidade, materiais e métodos usados, até as referências bibliográficas propostas.

A ideia é garantir que o procedimento dos pesquisadores durante seus estudos resulte em reconhecimento científico baseado em princípios éticos. Mas nem sempre foi assim. 

Em todo o mundo, antes do surgimento dos comitês de ética, os pesquisadores utilizavam como sujeitos dos experimentos a si mesmos, seus familiares e amigos, incluindo ainda prisioneiros e crianças abandonadas. Situações como essas deixaram marcas nos estudos envolvendo seres humanos, com situações consideradas abusivas em relação às pessoas abrangidas nos diversos estudos. 

De acordo com Ivo Basílio da Costa Júnior, coordenador do CEP da Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o marco da importância da ética para a ciência, em especial para a condução de pesquisas envolvendo seres humanos, remonta ao período pós-segunda guerra mundial, consequência sobretudo das experiências ocorridas em campos de concentração nazistas. 

“As primeiras declarações e documentos normativos sobre ética em pesquisa consolidaram a cultura dos direitos humanos na prática científica. Com o passar do tempo, este tema foi ganhando força nos debates acadêmicos e científicos, e regulamentações oficiais”, conta.

Os primeiros comitês de ética em pesquisa surgiram nos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Em 1964, a Associação Médica Mundial apresentou a Declaração de Helsinque, primeiro documento a propor que os protocolos de estudos com seres humanos fossem avaliados por comitês independentes, especializados no tema em questão e em ética em pesquisa, mas apenas na década de 1980 esses comitês tornaram-se exigência também em países europeus. 

Como um dos documentos mais importantes para a pesquisa clínica mundial, a Declaração de Helsinque vem passando por adequações desde sua criação, incorporando aspectos relacionados a novas técnicas, tecnologias e inovações. A última atualização do documento está ainda em andamento, constituindo-se em sua sexta revisão. 

Histórico brasileiro

No Brasil, as discussões e resoluções voltadas aos cuidados éticos nas pesquisas ganharam corpo nos anos 1990, após a criação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), por meio da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão de controle social vinculado ao Ministério da Saúde. A essa Comissão foi atribuída a função de implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no país, aprovadas pelo CNS e que devem ser seguidas pelos CEP.

Posteriormente, a contribuição para o desenvolvimento de estudos científicos dentro de padrões éticos foi reforçada pelo CNS com a Resolução 466/12, que determina os CEP como responsáveis pelo processo de revisão ética e análise científica de protocolos de pesquisa em cada instituição. Nesse sentido, é dada precedência aos temas de relevância pública e de interesse estratégico da agenda de prioridades do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme indicadores epidemiológicos.

Essa resolução tem base em padrões internacionais, preconizados pela Declaração de Helsinque em suas Diretrizes Internacionais para Pesquisas Biomédicas envolvendo Seres Humanos, documento elaborado pelo Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Segundo Costa Júnior, desde a década de 1990 a globalização da pesquisa em saúde vem se tornando um fator decisivo para a consolidação de diferentes sistemas de revisão ética. Embora de maneira desigual entre os países, esse processo fez com que crescesse o número de estudos multicêntricos internacionais financiados por países desenvolvidos e, em alguns casos, realizados também em países em desenvolvimento. 

“As relações sociais desiguais entre os países e os interesses econômicos envolvidos chamaram a atenção para o tema da ética em pesquisa multicêntrica, contexto em que os documentos de proteção da ética em pesquisa e de defesa dos direitos dos participantes ganharam força em âmbito internacional”, afirma.

Contudo, ele observa que, embora os princípios da ética em pesquisa sejam universais, a tensão entre diferentes interesses econômicos e humanitários levou cada país a estabelecer suas próprias regras de funcionamento dos sistemas de revisão ética, com a finalidade de garantir que erros do passado não mais se repetissem. 

Pesquisa multicêntrica

De acordo com o médico oftalmologista Paulo Schor, diretor de inovação tecnológica e social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro da coordenação de pesquisa para inovação da Fundação de Amparo à Pesquisa de SP (Fapesp), a questão ética deve estar presente desde o desenho da pesquisa, assim como o sujeito e a metodologia, que devem constar já no início do projeto.

“Estudos multicêntricos normalmente são apresentados já com protocolos específicos dos demandantes, que chegam prontos das instituições parceiras no exterior. Isso facilita a avaliação de questões éticas nesses projetos, pois os protocolos chegam densamente construídos”, explica.

Segundo Schor, mesmo nos casos de pesquisa patrocinada, quando todo o estudo é feito com apoio ou sob encomenda de um laboratório privado, por exemplo, a metodologia proposta já vem totalmente desenhada e definida. Ainda assim, durante a avaliação, é dada atenção especial à metodologia do trabalho. “Os países poderiam ganhar muito mais com pesquisas multicêntricas, mas isso ainda acontece de maneira desequilibrada, sobretudo se considerarmos as diferentes fases dessas pesquisas”.

Um exemplo é a pesquisa para obtenção da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, da qual a Unifesp é parceira no Brasil. “A pesquisa já chegou por aqui em fase 3, quando já se sabe o que acontece em laboratório e em pequenos grupos de testagem, em termos de eficácia e segurança. Nessa fase, não se busca o desenho da vacina, mas ampliar o número de sujeitos da pesquisa, pois já se sabe o que se busca em termos de uso e de efeitos colaterais”, observa.

Isso porque, no caso das pesquisas relacionadas à Covid-19 (SARS-COV-2), existe a determinação de que os trâmites dos comitês de ética sejam acelerados, em todo o mundo, visto a urgência em se obter uma vacina contra a doença. Na Conep, esses projetos recebem status de tramitação prioritária (célere). Ainda assim, algo sempre pode ser modificado nos protocolos, caso se descubra alguma especificidade que exija adequação, como um efeito colateral grave que possa mudar os rumos das investigações ou da aplicação dos resultados.

Ele lembra que protocolos multicêntricos, mesmo quando chegam prontos, precisam ser aprovados por todos os centros participantes, que além de verificar sua adequação, podem aplicar especificidades locais, de acordo com as leis de cada país.

“Os comitês de ética em pesquisa são estratégicos para as instituições poderem desenhar o que buscam para a sociedade. Eles avaliam a seriedade da alocação dos sujeitos da pesquisa, e como são relatados os efeitos colaterais, mas nada é pessoal ou individualizado. É algo complexo, que envolve tecnologia, numa combinação entre o consórcio de centros de pesquisa e os resultados que, no final, são compartilhados”.

Ações e monitoramento

A fim de acompanhar a atuação dos CEP em todo o país, a Conep desenvolveu o Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Sisnep), um sistema de informações via internet que auxilia pesquisadores e comitês de ética a cadastrarem e monitorarem todos os projetos de pesquisa, incluindo aqueles conduzidos em parceria com instituições estrangeiras, bem como os pareceres a eles relacionados. 

Por meio desse sistema, a Conep permite o registro dos projetos e informa sobre sua tramitação, para que sejam submetidos à apreciação ética dos procedimentos propostos antes mesmo de seu início, integrando ao sistema todas as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil.

Além de permitir a formação de um banco de dados nacional, o Sisnep tem a função de agilizar a tramitação e facilitar aos pesquisadores o acompanhamento da situação de seus projetos durante a avaliação, possibilitando ainda o acesso público aos dados dos projetos aprovados e em condições de serem iniciados.

No Brasil, a atuação conjunta envolvendo CEP, Conep e CNS busca universalizar a fiscalização das pesquisas e a manutenção dos direitos humanos, como prerrogativa de todos os membros da sociedade, o que é considerada também uma ação educativa e de controle social no campo científico. 

Atualmente, existem 845 CEP em atuação no Brasil e, embora questionados, por exemplo, quanto a aspectos que possam interferir na celeridade dos projetos, eles têm se mostrado imprescindíveis no campo das pesquisas e publicações envolvendo saúde e medicina.

Para Costa Júnior, os CEP ajudam a valorizar o pesquisador que recebe o reconhecimento de que sua proposta é eticamente adequada. “Além de preservar aspectos éticos primariamente em defesa da integridade e dignidade dos sujeitos da pesquisa, individual ou coletivamente, esses comitês levam em conta o pluralismo moral da sociedade brasileira, de acordo com as leis, algo importante também no campo científico”, avalia.

Normas administrativas

Para que uma instituição de pesquisa crie um CEP para avaliar eticamente as pesquisas nela desenvolvidas, independentemente de sua área de atuação, é necessário cumprir vários passos desde a solicitação ao CNS, e preencher requisitos mínimos, tanto acadêmicos como estruturais, incluindo a previsão de renovação de seus membros a cada três anos, conforme orientação da Conep.

Não existem diferenças no funcionamento desses comitês entre os âmbitos público e privado, pois todos devem funcionar de acordo com as normas estabelecidas pela Comissão, que recebe atualmente mais de 90 mil projetos de pesquisa por ano.

Também não há distinções entre a atuação dos comitês nas áreas de pesquisa médica e farmacêutica, mas existem determinadas áreas temáticas, nominadas de especiais, que pertencem ao chamado Grupo I, nas quais a atenção deve ser redobrada. 

Esse grupo concentra as pesquisas realizadas nas áreas de genética e reprodução humana, novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos (fases I, II e III) ou não registrados no país (ainda que aprovados e em fase IV, de acompanhamento) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades, indicações, doses ou vias de administração diferentes daquelas estabelecidas, incluindo seu emprego em diferentes combinações.

Desse mesmo grupo fazem parte os estudos envolvendo novos equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde ou não registrados no país, novos procedimentos ainda não consagrados na literatura e estudos sobre populações indígenas. Estão ainda abarcados nessa modalidade os projetos que envolvam aspectos de biossegurança, pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e as que envolvam remessa de material biológico para outros países.

Embora o rigor quanto à apresentação detalhada de documentos e comprovantes seja citado como burocracia quando o assunto é a celeridade na aprovação de projetos, os CEP devem ter regimentos internos próprios que estabeleçam prazos de acordo com as orientações da Conep para os trâmites dos protocolos. 

No caso da Maternidade Escola da UFRJ, por exemplo, Costa Júnior diz que os projetos devem ser enviados até 15 dias antes da reunião do CEP. “Após a deliberação do colegiado, o pesquisador tem 30 dias para fazer os ajustes das pendências, caso essas existam. Se um projeto for enviado cumprindo todas as determinações da Conep, o prazo para aprovação pode ser entre 15 e 30 dias. Nossa média atualmente é de 22 dias”, exemplifica. 

A aprovação de projetos envolvendo seres humanos por comitês de ética é uma das exigências, entre outras, para o financiamento público de pesquisas.

Panorama atual 

Desde 2012, todos os dados integrados pela Conep estão disponíveis online, com base na Plataforma Brasil. De modo geral, as legislações envolvendo ética em pesquisa são semelhantes em diferentes países, mas, no caso do Brasil, Costa Júnior afirma que a Resolução 510/16 do CNS, atualmente em vigor, passou a situar o país em um alto nível de padrão ético em suas pesquisas. 

Em novembro de 2018, o V Encontro Nacional dos Comitês de Ética em Pesquisa (ENCEP) resultou em uma Carta que, entre outros aspectos, marca a posição dos CEP em relação ao Projeto de Lei nº 7.082/2017, que tramita na Câmara dos Deputados e substituiu o Projeto de Lei nº 200/2015, proposto originalmente pelo Senado Federal para definir regras e diretrizes para a condução de pesquisas clínicas envolvendo seres humanos no país, em instituições públicas e privadas.

De acordo com o documento, o PL atualmente em tramitação retira 55% da participação dos CEP na composição da Conep e reduz a representação do próprio CNS, transferindo essa participação para representantes de órgãos governamentais.