Artigo
A avaliação de tecnologias em saúde e sua incorporação ao sistema único
Novas terapias surgem a cada dia, várias já estando autorizadas para uso humano em alguns países. No entanto, como decidir se novas tecnologias devem ser incorporadas ao sistema de saúde se, de forma geral, seus custos são altos?
Publicado em 23/07/2020 - Última modificação em 08/04/2021 às 16h27
Os métodos de terapia médica estão mudando em função das novas tecnologias desenvolvidas e, aos poucos, muitas se tornam acessíveis à sociedade. A medicina regenerativa já permite a introdução de células modificadas para resgatar a função de corações e cérebros que sofreram infartos. As ferramentas de edição gênica, cada vez mais aprimoradas, podem modificar o DNA de células retiradas do próprio paciente, que podem ser reintroduzidas para funcionar de forma ideal, resolvendo doenças degenerativas que incapacitam ou nos levam a óbito.
Se já existiam sensores para medir externamente as variações do nosso corpo, a nanotecnologia em breve permitirá a existência de sensores internos que poderão circular pelo corpo procurando irregularidades que possam ser reparadas. A bioengenharia em breve permitirá a substituição do transplante de órgãos tal como fazemos hoje, de um indivíduo para outro, por órgãos elaborados em laboratórios em bioimpressoras.
Mas como decidir se novas terapias devem ser incorporadas ao sistema de saúde? Como avaliar se é possível assumir o custo adicional de novas tecnologias em um sistema único de saúde, levando em conta também as necessidades e perspectivas de seus usuários?
No Brasil, novos medicamentos e produtos para a saúde gerados localmente ou no exterior passam pela avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que analisa criteriosamente seu uso, para autorizá-lo no país. Para serem incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), no entanto, novas tecnologias passam por um segundo crivo, a avaliação de tecnologias em saúde (ATS), em um processo orquestrado pelo Ministério da Saúde.
Nesse caso, entende-se por tecnologia não somente medicamentos e produtos para a saúde, mas também procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte, além de programas e protocolos assistenciais. Podem ainda envolver prevenção e tratamento de doenças, assim como a recuperação da saúde (Portaria Nº 2.510/GM de 19 de dezembro de 2005).
A área de ATS cresceu impulsionada, por um lado, por um cenário de aumento dos gastos e de restrição de recursos em saúde e, por outro, por uma mudança no perfil epidemiológico da população e surgimento contínuo de novas tecnologias, sobretudo a partir dos anos 1990.
Evidências científicas
Segundo a área técnica do Ministério da Saúde, a ATS busca evidências científicas para avaliar diversos fatores relacionados a tecnologias novas e já existentes: eficácia, efetividade, segurança, riscos, custos, relações de custo-efetividade, custo-benefício e custo-utilidade, equidade, ética, implicações econômicas e ambientais.
A ATS surgiu no mundo na década de 1960 e começou a ser discutida no Brasil nos anos 1980. No entanto, apenas nos anos 2010 a ATS se tornou indispensável para a tomada de decisão sobre a incorporação de tecnologias em saúde no SUS, conforme estabelecido na Lei 12.401 de 28 de abril de 2011.
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), criada por lei em 2011, é responsável por assessorar o Ministério da Saúde (MS) na incorporação de novas tecnologias e na constituição de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Para as avaliações, há uma rede de instituições nacionais parceiras da Conitec, que constituem a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats).
A Rede conta hoje[1] com 123 membros distribuídos pelo Brasil e compreende instituições de ensino e pesquisa públicas e privadas, instituições gestoras do SUS e da saúde suplementar, hospitais de ensino ou unidades prestadoras de serviços e hospitais filantrópicos. Dentre elas, os Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS).
As demandas de inclusão de novas tecnologias ao SUS podem ter origem na indústria, em sociedades médicas ou associação de pacientes, no poder judiciário, em instituições de saúde e de ensino e pesquisa, em organizações não governamentais, em profissionais de saúde, pacientes ou seus familiares ou ainda no próprio Ministério da Saúde ou órgãos do governo federal.
Se inicia pela entrega do documental contendo estudos de eficácia, segurança, avaliação econômica e de impacto orçamentário (instruído pela Portaria Nº 26, de 12 de junho de 2015 do Ministério da Saúde) no Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGITS). Tendo o documental sido conferido, estabelece-se o prazo de 180 dias para a conclusão dos pedidos protocolados (com possibilidade de prorrogação de 90 dias).
Avaliação e incorporação
Entre 2012 e 2019, tramitaram na Conitec 671 processos de avaliação de tecnologias, conforme dados disponíveis no site da comissão[2]. Dessas tecnologias, 45,2% foram incorporadas ao SUS e 24,3% tiveram decisão de não incorporação, enquanto outras aparecem com diferentes status temporários ou definitivos, conforme se observa na Figura 1.
Figura 1 - Distribuição do total* de avaliações de tecnologias em saúde pela Conitec no período de 2012 a 2019, segundo o status.
*Uma mesma tecnologia pode ter sido submetida mais de uma vez, por diferentes motivos (indicações terapêuticas distintas, demandantes diferentes em momentos diferentes, readequação de população-alvo ou por ter sido negada em análises prévias).
Fonte: http://conitec.gov.br/index.php/tecnologias-em-avaliacao-demandas-por-status
Segundo Caetano e colaboradores (2017), dentre as tecnologias incorporadas entre 2012 e 2016, destacam-se os anti-infecciosos para uso sistêmico e os antineoplásicos e agentes imunomoduladores. Como se observa na Figura 2, há um decréscimo de pedidos com decisão de incorporação entre 2012 e 2019, refletindo o total de processos tramitados na Conitec (125 em 2012, 80 em 2015, 66 em 2019).
Figura 2 - Distribuição das tecnologias incorporadas ao SUS por ano segundo a categoria
Fonte: http://conitec.gov.br/index.php/tecnologias-em-avaliacao-demandas-por-status
A avaliação em si é realizada pelos NATS. Os primeiros NATS foram criados em 2009 e atualmente, segundo a Rebrats, há NATS em 24 instituições de ensino no país. Um documento de 2018 da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) indica que a composição dos NATS deve ser multiprofissional, mas não há especificação sobre a formação de base de seus membros, apenas sobre a necessidade de competências para realizar estudos de ATS.
O trabalho dos NATS consiste em buscar evidências na literatura da eficácia e segurança do produto, e de calcular seu custo-efetividade e impacto orçamentário de sua incorporação no sistema. A análise de custo-efetividade leva em conta o custo global do novo tratamento, comparando sua eficácia com a de tratamentos existentes.
Mas como determinar se uma nova tecnologia é custo-efetiva? É possível estimar as despesas e os ganhos monetários de seu uso, mas os ganhos na saúde não são tão facilmente mensuráveis, já que não há uma unidade de valor clínico. Para isso, foi criado o índice QALY (quality-adjusted life-years), que mede o número de anos com qualidade de vida que se espera para uma pessoa, quando da adoção de uma tecnologia.
A partir dele, é possível atribuir valores monetários a cada QALY ganho. A análise de custo-efetividade que expressa o custo a cada QALY ganho é amplamente utilizada em diversos países, incluindo o National Institute for Health and Care Excelence (NICE), do Reino Unido, que é uma referência mundial. É possível utilizar também o índice DALY (disability-adjusted life-year), que expressa o número de anos perdidos pelo adoecimento, incapacidade ou óbito precoce. Mas como determinar a partir de que valor vale a pena pagar pela tecnologia, ou seja, um limiar?
Parâmetros de custo
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o conceito de custo de oportunidade deve ser o mais relevante para os provedores de saúde, que precisam utilizar os recursos disponíveis para melhorar o atendimento. É necessário estimar não somente o impacto positivo (ganhos na saúde) dado pelo uso alternativo dos recursos para implementar uma nova intervenção, mas também o impacto negativo de sua não implementação.
O limiar mais comumente citado na literatura é o que se baseia no Produto Interno Bruto (PIB) per capita, e a OMS sugere que uma intervenção capaz de reverter um DALY por menos de três vezes o valor do PIB per capita do país é custo-efetiva. De acordo com Shiroiwa e colaboradores (2009), no Reino Unido o limiar de custo-efetividade se situa entre £20 mil e £30 mil por QALY, enquanto nos EUA está entre US$ 50 mil a US$ 100 mil por QALY.
O Brasil não adota limiar de custo-efetividade (Conitec, 2017), mas há um Projeto de Lei do Senado (número 415 de 2015) que propõe alterar a Lei Orgânica da Saúde (8.080/1990) e, entre outras medidas, tornar obrigatória a definição em regulamento e a divulgação do indicador ou parâmetro de custo-efetividade utilizado na análise das solicitações de incorporação de tecnologia.
Uma vez que a Conitec analisa o relatório feito pelo NATS, o parecer é submetido à consulta pública e a recomendação é ratificada ou retificada. Antes da decisão final pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, pode haver audiência pública.
Conclusão
O Brasil adota protocolos internacionalmente difundidos para avaliação de tecnologias a serem incorporadas a seu sistema único de saúde. A adoção de parâmetros de custo-efetividade parece ser um gargalo que precisa ser discutido, para que sejam definidos padrões a serem adotados pelos NATS em suas avaliações. A análise dos dados disponíveis na Conitec demonstra uma redução no número de avaliações dessas tecnologias entre 2012 e 2019, o que merece melhor investigação.
[1] Pesquisa realizada no site em janeiro de 2020
[2] pesquisa finalizada pela autora em dezembro de 2019