De acordo com Marshall (1967), a cidadania é um status que se atribui a membros de uma comunidade com plenos direitos. Todos os indivíduos que possuem esse status são iguais na relação que estabelecem com o corpo político no que se refere aos direitos e deveres que isso implica.

A evolução da cidadania não elimina o status do sistema social, apenas substituiu o status diferencial de classes pelo status uniforme da cidadania, de igualdade perante a lei. Este fundamento de igualdade não elimina as diferenças socioeconômicas, ele define apenas um patamar de igualdade no que diz respeito aos direitos mínimos do cidadão, sobre o qual pode ser construída uma estrutura de desigualdade (Marshall, 1967). Mas, historicamente, o processo de ampliação dos direitos de cidadania representou uma expressiva diminuição dos níveis de exclusão social (Sadek, 2005).

Cerca de duas décadas depois da promulgação de uma Constituição tida exatamente como “cidadã”, permanece para alguns analistas a sensação de que há, em nosso país, dois Brasis – um real e outro legal –, pois o ordenamento jurídico brasileiro seria condizente com as democracias mais avançadas, mas possuiria um significado mais simbólico do que efetivo (Sadek, 2005).

Nos países centrais, a institucionalização de mecanismos para a garantia do acesso à justiça à população carente representou um elemento fundamental no avanço da cidadania (Capelletti & Garth, 1978), não sendo de se espantar que nos países de democratização tardia, como o Brasil, também se formassem grandes expectativas em relação a esse tipo de inclusão1, como bem registra a seguinte passagem de Cunha:

“A Constituição Federal de 1988 ampliou de forma significativa o rol de direitos fundamentais do cidadão brasileiro. Foram formalizados os direitos civis, políticos e sociais, incluindo-se nestes últimos os direitos difusos e coletivos. Quanto à possibilidade de assegurar esses direitos juridicamente, a Constituição Federal também garantiu um conjunto de instrumentos legais e alargou as possibilidades de solução de conflitos sociais através do Poder Judiciário. Neste sentido, o direito de acesso à Justiça ganhou status de direito fundamental, sendo reconhecido enquanto direito essencial para a viabilidade e garantia dos demais direitos. Para que tal direito pudesse ser exercido por todos os cidadãos, a Constituição Federal acrescentou ao rol de direitos fundamentais o direito à assistência jurídica integral e gratuita. E fez ainda mais: assumiu como dever do Estado a prestação da assistência jurídica aos legalmente necessitados através da Defensoria Pública, instituição essencial ao funcionamento da Justiça.” (Cunha, 2001:. 197)

No entanto, análises como a deste Mapa registram que, apesar da previsão constitucional e do progresso recente, a assistência jurídica gratuita ainda não é garantida em 72% das comarcas – ou seja, em 72% dos locais que possuem ao menos um juiz, a população em condições de vulnerabilidade não tem seu direito de acesso gratuito à justiça garantido por um defensor público. Mas a análise também permitiu compreender melhor as nuances da presença e da ausência da defensoria, bem como estimar os déficits e refletir sobre os esforços necessários para enfrentar os desafios colocados para a instituição e, de maneira mais geral, os governos e a sociedade brasileira.

Sem perder de vista a relevância desses resultados, vale destacar três desafios futuros: (a) sua revisão sistemática e periódica; (b) sua utilização como ferramenta de gestão; e (c) a agregação de novos dados para cruzamento, tais como dados de movimentação processual e dados de experiências de conflito, vitimização e vulnerabilidade de grupos específicos. Esses três desafios estão interligados e se retroalimentam.

No que tange a sua revisão sistemática e periódica, é importante destacar que toda pesquisa é capaz de apresentar o registro feito no momento e no espaço delimitado. Assim, ao mesmo tempo em que a equipe de pesquisa trabalha com o recorte realizado, a dinâmica real do objeto pesquisado segue acontecendo e provocando mudanças, mais ou menos aceleradas, mas que, de qualquer modo, impactam nos resultados encontrados na pesquisa, motivo que por si só já justifica a necessidade da sua atualização.

Por outro lado, assim como uma fotografia é incapaz de congelar perfeitamente a realidade, pois há nuances que fogem ao olhar mais astuto e detalhista do fotógrafo, também há detalhes que escapam ou que não se revelam na primeira leitura do pesquisador. Dessa forma, especialmente quando se trata de pesquisa aplicada como a ora apresentada, sua atualização se torna necessária para que alcance eficazmente seu objetivo maior, ou seja, que se torne em insumo básico para o trabalho de planejamento estratégico institucional da Defensoria Pública do Brasil e para um olhar mais arguto sobre o acesso à justiça.

Ademais, apenas quando uma informação é publicada, é possível, por meio das várias leituras críticas que se seguem, refinar a forma como ela é produzida, organizada, disponibilizada e utilizada. Nesse sentido, sua revisão e atualização são primordiais para a qualificação da própria informação e da gestão institucional. Esse processo de revisão e atualização evidentemente não é exclusivo da equipe de pesquisa, mas também dos defensores públicos que estão à frente de suas instituições ou na atividade-fim que podem promover o aperfeiçoamento dos dados produzidos e testar sua utilização. O processo de transformação de um “dado bruto” em conhecimento e sua publicação é rico porque potencializa o olhar do profissional e do usuário do serviço, e intensifica o desenvolvimento de estratégias que qualifiquem e otimizem os serviços prestados.

Nesse sentido, não se trata de estruturar sistema de informações sofisticado ou banco de dados modernos que estoquem informações. O objetivo da pesquisa é verter o dado primário em informação, em conhecimento disponível e de fácil utilização, capaz de impulsionar a ampliação qualificada dos serviços de acesso à justiça à população com insuficiência de recursos financeiros, transformando, como destaca Bobbio (1992, p.97) um discurso geral sobre os direitos e “as aspirações” (nobres, mas vagas) em ações concretas e aplicação de “direitos propriamente ditos”.

________________________________________________________________________________________

1Essa constatação não deve implicar abrir mão de uma sociologia do direito e da justiça que seja crítica e autocrítica, que não sobrevalorize a importância do direito e das instituições jurídicas oficiais na melhoria da vida das pessoas e que seja aberta ao reconhecimento de que, frente a determinados problemas, é possível e perfeitamente legítimo que, em vez de mobilizar o direito e a justiça, as pessoas prefiram “não fazer nada” (Sandefur, 2007; Garth, 2009).