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ESTADO VERSUS MERCADO: FALSAS DISJUNTIVAS E A NATUREZA DOS FENÔMENOS SOB UM OLHAR DA HISTÓRIA PDF Imprimir

 

“O Brasil é uma criação do Estado português. Não se trata de
uma sociedade que construiu um Estado e sim de um Estado que
constituiu uma sociedade.”
Celso Furtado

 

A citação de Celso Furtado em uma entrevista importante revela o quanto a questão é importante,delicada e difícil. O Estado e sua ação sobre o território e para atender às populações é um tema da maior complexidade e sua importância, para o Brasil ou para os países que foram colonizados, parece ser ainda maior e mais complexa. Ao observar o que foi erigido pela sociedade brasileira, é difícil deixar de perceber que o Estado teve um papel fundamental e que sua atuação foi decisiva para que todas as iniciativas nos campos econômicos e sociais fossem bem-sucedidas. As empresas brasileiras que mais obtiveram sucesso, o crescimento da riqueza material e a recente melhoria das condições de vida que estão beneficiando a sociedade tiveram por origem iniciativas e, sobretudo, uma ação proativa do Estado.

Ainda assim, é patente o recorrente questionamento feito ao Estado por parte de expressivos segmentos mais privilegiados da sociedade e, a julgar pelo conteúdo de muito do que é veiculado pelo debate público brasileiro, o Estado pode ser considerado um vilão, no sentido de que possui um custo muito elevado e pouco atende à sociedade. Em alguns aspectos, muitas vezes, fica a impressão de ser necessário conter o Estado para que o país possa crescer, mas estas tentativas, nos anos 1980 e 1990, resultaram em uma década perdida e uma década vazia, em que pouco foi construído em razão das limitações às quais o Estado foi submetido pelas circunstâncias históricas.

Esse foi o contexto em que a dicotomia entre Estado e mercado foi mais valorizada, para destacar a superioridade das potencialidades deste último, e agora é possível perceber como este tipo de debate foi nocivo e pouco útil para gerar subsídios para uma ação que tenha por meta o desenvolvimento.

O conceito de comunidades epistêmicas, formulado por François Merrien, ajuda a entender melhor o debate e porque é essencial sua compreensão em um momento em que a reconstrução da sociedade diante de novas oportunidades apresenta um novo horizonte que, se for bem aproveitado, pode romper com a sucessão de milagres, mencionada por Sérgio Buarque de Holanda, ou dos ciclos econômicos, que redundavam em estagnação, tão bem descritos por Celso Furtado.

Uma comunidade epistêmica é composta por redes de especialistas que possuem um modelo comum, no que diz respeito à causalidade e ao conjunto de valores políticos. Eles unem-se pela crença inabalável no engajamento para formular políticas públicas que busquem a melhoria e o bem-estar da humanidade.

Para se restringir ao período mais recente, o Consenso de Filadélfia – Bretton Woods, que se impôs entre 1945 e 1973, foi o triunfo da ideia de regulação internacional econômica e social, em um contexto propício à ação dos economistas desenvolvimentistas e keynesianos. Ou seja, as elites no fim da Segunda Guerra Mundial consideravam que o desenvolvimento social era necessário para retomar o desenvolvimento econômico. Neste contexto, o social era considerado um complemento indispensável para o econômico. A Declaração de Filadélfia, de 1944, era incisiva:
o homem não é uma mercadoria.

Segundo o ideário reinante, era preciso enfrentar os riscos da existência humana com base na responsabilidade moral e coletiva. Como as sociedades consolidaram-se calcadas no desenvolvimento da relação salarial, era preciso ultrapassar a luta de classes para chegar a um compromisso corporativista.

O Estado deveria perseguir o interesse geral, ou seja, corrigir e suplementar as falhas do mercado, sendo, portanto, um mediador para favorecer o desenvolvimento econômico e social e conciliar os interesses opostos entre o capital e o trabalho. Esta era a essência da concepção weberiana. Esse momento era marcado pelo Consenso de Filadélfia – Bretton Woods, com uma concepção keynesiana da economia. Neste sentido, a economia privada era considerada míope e o equilíbrio não seria um fator natural. Assim, os governos deveriam gerir as políticas com os instrumentos da macroeconomia e o pleno emprego era visto como o fator para amortecer as crises cíclicas. A concepção intervencionista, tão atacada pelos neoliberais de hoje, era hegemônica.

A concepção mudou radicalmente após 1973 e, sobretudo, nos anos 1980. A concepção do tipo neoliberal estava em foco e era centrada no indivíduo. O julgamento sobre o que é justo e não é justo é quase o oposto do que prevaleceu no pós-guerra.

Existem alguns elementos externos essenciais para entender por que a concepção mudou de forma tão radical. Entre estes, é preciso assinalar a derrocada do sistema de Bretton Woods, a estagflação e a perda de confiança em relação à capacidade de intervenção do Estado. Por fim, os problemas sociais, referentes à democracia, e de competitividade sistêmica já assolavam o mundo socialista. Isto colocou em xeque sua exequibilidade econômica e social, inviabilizando este tipo de sociedade como uma alternativa viável à sociedade capitalista vigente.

A maior parte das críticas à comunidade epistêmica prevalecente concentrou-se sobre os efeitos perversos das atividades de regulação e redistribuição exercidas pelo Estado. Então, segundo as linhas do public choice (teoria da escolha pública), o novo paradigma nega a intrínseca capacidade das elites do Estado em promover o bem comum. Os valores da concorrência e do individualismo suplantaram os da solidariedade. O princípio da responsabilidade individual veio à tona e o social voltou a ser considerado como um apêndice subsidiário do econômico.
Com a adoção de medidas alinhadas com as novas comunidades epistêmicas, foram enfraquecidas, ou até mesmo destruídas, muitas das instituições criadas após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. As medidas da nova comunidade epistêmica visavam estabelecer limites ao poder do capital e, assim, diminuíam os focos de resistência dos assalariados em face de seus empregadores.

O Consenso de Washington simboliza essa reversão. Segundo as novas concepções, o mercado seria o melhor mecanismo para alocar riquezas e a meta seria liberar sua ação para elevar o padrão de vida. De modo geral, o novo paradigma indicou a redução do papel do Estado como produtor direto de bens e serviços, mas manteve seu papel regulador, que era considerado essencial para garantir o funcionamento eficiente dos mercados. A meta era adotar políticas públicas adequadas para manter o ambiente macroeconômico estável, com condições previsíveis para o cálculo de risco.

Com base no conceito de Estado Mínimo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD) passaram a recomendar enfaticamente a:

• disciplina fiscal dos governos;
• privatização;
• focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura;
• desregulamentação do processo econômico e da legislação trabalhista;
• liberalização do comércio exterior; e
• eliminação de restrições ao investimento direto estrangeiro.

No Consenso de Washington, as instituições privadas com fins lucrativos ou não lucrativos são consideradas mais eficientes e menos corruptas do que as instituições públicas, sendo necessário privatizar as empresas e o serviço público. Na área da proteção social, era necessário privilegiar o  seguro privado e a concorrência. Além disso, o indivíduo ou o ator deixa de ser considerado uma vítima, e passa a sê-lo como um ser racional, responsável e que calcula o que é vantajoso para si. Então, é preciso permitir que ele faça escolhas racionais e evite o moral hazard ou a seleção adversa.

Por fim, a concepção da sociedade não passa a ser vista mais como uma sociedade de classes, e sim como uma sociedade de indivíduos, em que podem existir diversos graus de riqueza, de afluência, ou até mesmo uma polarização entre favorecidos e desfavorecidos. A política pública deveria ajudar os menos favorecidos a adquirir autonomia via focalização das ações, o que também vem sendo chamado de gestão social do risco. Os outros grupos sociais devem prover sua segurança às próprias expensas.

Uma das perguntas atuais é se estamos nos encaminhando para um novo consenso, pois as crises na Ásia e na América Latina revelaram que as teses do Consenso de Washington fracassaram. Existem cinco pontos a serem considerados detidamente:


1. O mercado, ao agir livremente, não gerou equilíbrio econômico.
2. Existiram consequências políticas e sociais em ajustes drásticos.
3. Era essencial reforçar as instituições do Estado antes de liberar os mercados.
4. A política econômica devia estar atrelada às políticas sociais.
5. Era preciso levar em conta as heranças institucionais e normativas.

Diante das crises financeiras, das baixas taxas de crescimento econômico e do aumento da pobreza na América Latina, a ortodoxia econômica reconheceu as limitações da agenda de reformas. O Consenso de Washington havia enfatizado demais a privatização, a desregulamentação e a liberalização comercial, dando pouca atenção às instituições e à complementaridade entre as esferas pública e privada na economia. A liberalização financeira e a abertura comercial aumentaram a exposição do risco dos países, sem ampliar sua capacidade para enfrentá-los. Houve muita privatização e fortalecimento do setor privado, mas foi escassa a importância conferida à melhoria do setor público.

No fim dos anos 1990, as palavras de ordem mudaram para reformas de segunda geração, governabilidade e revigorar a capacidade do Estado. O foco passou a ser a busca do Estado eficiente, com um conjunto amplo de funções agora reconhecidas como não transferíveis, substituindo a ideia do Estado mínimo. A meta passou a ser a complementaridade entre Estado e mercado.

A nova agenda de reformas incluía a criação de instituições adequadas à preservação dos direitos de propriedade, o respeito aos contratos e a consolidação de um ambiente regulatório com regras objetivas e estáveis. A meta era minimizar a incerteza do ambiente econômico e político, reduzindo os riscos para os investimentos privados.

O Estado deveria voltar-se à competitividade sistêmica do país por meio de políticas efetivas em: educação, ciência e tecnologia, infraestrutura e políticas de promoção do comércio exterior.
A recente crise financeira internacional, deflagrada pelo desmoronamento do mercado imobiliário americano ancorado no sistema de subprime, recoloca em pauta a discussão acerca do papel do Estado sob o capitalismo. Em sua obra principal, intitulada A dinâmica do capitalismo, Fernand Braudel já ensinava que o Estado e o capital sempre foram inseparáveis. Ali, o historiador francês destacava que a gênese do capitalismo somente foi possível por meio da ação do Estado, e que o Estado continuou a ter papel fundamental na acumulação capitalista por séculos. Braudel, portanto, não se referia apenas ao processo de acumulação primitiva, de resto, magistralmente descrito por Marx.

Ele estava também referindo-se aos esforços industrializantes de todos os países que seguiram a senda da Primeira e da Segunda Revolução Industrial, bem como aos projetos nacionais de desenvolvimento que marcaram o século XX. Os ensinamentos de Braudel também permitem discutir, em termos históricos e teóricos, o papel que os Estados nacionais detêm até hoje, quando o capitalismo vive uma crise de dimensão que não se via desde a crise de 1929.

Sob o capitalismo desregulamentado ou sob o capitalismo globalizado do fim do século XX e início do século XXI, o Estado seguiu atuando com papel decisivo, ao contrário do que sustenta o senso comum ou do que celebram – ou celebravam – os liberais. Na verdade, sob o acirramento da concorrência, os Estados nacionais passaram a exercer um “novo” papel, a saber, o de apoiar as grandes empresas de seus respectivos países no cenário da concorrência global. As grandes corporações empresariais, cada vez mais devotadas à acumulação do capital também na esfera financeira, exigiam e obtinham – pelo menos, as mais exitosas – não só apoio político de seus respectivos Estados nacionais – quer seja nos fóruns internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outros, quer seja nas mudanças na legislação trabalhista, flexibilizando os mercados de trabalho, isto é, promovendo mudanças legais no sentido de reduzir os custos do trabalho e facilitando seu uso –, como também apoio financeiro.


Dessa forma, os Estados nacionais impulsionavam a escala de produção de suas grandes corporações, favorecendo os processos de centralização e concentração de capitais, e abrindo espaço também em mercados cada vez mais “livres” em âmbito internacional.

O próprio processo de abertura comercial, tão celebrado por alguns, foi resultado da ação dos Estados nacionais mais fortes, que definiram, ao longo dessas décadas da chamada globalização neoliberal, as regras do jogo, conforme mostrou o renomado pensador conservador inglês John Gray em seu livro Falso amanhecer. Paul Sweezy, autor de formação diferente à de John Gray, reitera, em seu livro Teoria do desenvolvimento capitalista, que “o Estado é o primeiro e mais destacado defensor da propriedade privada”. Sweezy postula que o Estado, sob o capitalismo, não foi mais que um instrumento de poder das classes dominantes de cada momento histórico em favor da acumulação de capital em cada uma de tais épocas.

Os Estados nacionais, na lógica do jogo de poder que caracteriza o capitalismo contemporâneo, têm em suas grandes corporações um instrumento decisivo. É por isso que se torna cada vez mais comum observar chefes de Estado empenhando-se pessoalmente para conseguir garantir negócios para grandes empresas de seus países. Também nas compras governamentais, os Estados nacionais arbitram, escolhem vencedores e promovem a acumulação de capital de grandes grupos empresariais que, assim, ampliam suas respectivas escalas de produção e credenciam-se, em última instância, para o enfrentamento da concorrência internacional. Mas isto não é nenhuma novidade, conforme apontou Braudel, pois:

Uma economia nacional é um espaço político transformado pelo Estado; em virtude das necessidades e inovações da vida material, num espaço  econômico coerente, unificado, cujas atividades podem encaminhar-se em conjunto numa mesma direção (1987, p. 65).

O poder econômico das grandes corporações e de seus executivos, por sua vez, dada a ampliação das possibilidades de acumulação de capital – inclusive na esfera financeira – acabam invadindo as esferas da política e da ação republicana destes Estados nacionais que os turbinaram. Em outras palavras, segundo Braudel:

O Estado moderno, que não fez o capitalismo mas o herdou, ora o favorece, ora o desfavorece; ora o deixa estender-se, ora lhe quebra as molas. O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado (1987, p. 44)

Apesar das críticas acerbas e continuadas em relação à ação do Estado e dos resultados pouco animadores apresentados após as décadas perdidas e vazias, o arcabouço jurídico-institucional existente, que se consolidou de forma notável, é importante e constitui uma das referências mais marcantes e que distinguem o Brasil no contexto dos países em desenvolvimento, sendo considerado, inclusive, um modelo sobre como reagir à crise e minimizar seus impactos negativos.

Normalmente, os economistas, até os anos mais recentes, vinham defendendo que, para adaptar-se à globalização, é preciso que haja mais competição e menos Estado. Mas as evidências revelam-se no sentido oposto, pois as sociedades mais competitivas são as do norte da Europa,que dispõem de maior coesão nacional e social. Embora todas as sociedades mais industrializadas, entre estas, a do Brasil, façam da ação social o foco de suas ações institucionais e de suas iniciativas mais importantes e com maior dispêndio orçamentário, as diferenças qualitativas contam. Em outras palavras, a dotação de recursos e o foco da ação são essenciais para explicar porque existem exemplos melhor ou pior sucedidos e, em geral, os países com preocupações sociais mais destacadas são os que apresentam as melhores respostas aos desafios da contemporaneidade.

É chegado o momento de entender que o econômico precisa ter metas sociais e que o social é parte essencial do econômico. Do contrário, uma sociedade fica condenada a oscilações sem sentido. Para atingir tais metas, o papel do Estado é essencial. É esta a preocupação, considerando o caso brasileiro, que motivou esta publicação.

Última atualização em 22/06/2010 18:27
 

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