2005. Ano 2 . Edição 7 - 1/2/2005
"A experiência tem demonstrado que o equacionamento de problemas sociais, dentre os quais se destaca a questão da fome, não se dá por meio de programas isolados e setoriais. É preciso integrar ações assistenciais com medidas capazes de gerar mudanças estruturais, como as de educação, saúde e geração de renda”.
Anna Peliano
Afinal, temos ou não temos fome no Brasil? Eis a questão levantada após o lançamento de pesquisa do IBGE que confirmou a queda da desnutrição no país. Diversos estudos vêm apontando para a melhoria dos indicadores sociais brasileiros, entre eles, a desnutrição. O Relatório Brasileiro de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio, apresentado pelo presidente Lula nas Nações Unidas, destaca que a desnutrição infantil caiu cerca de 70% entre os anos de 1975 e 1996. A depender da medida utilizada, a desnutrição atingia, naquele último ano, 10,5% das crianças menores de 5 anos (com déficit de altura para idade), 5,7% (com déficit de peso para idade), ou 2,3% (com déficit de peso para altura).
É sabido que o país não tem problemas de fome semelhantes a países africanos ou asiáticos. Nunca se explorou por aqui imagens de famintos esquálidos. Elevados percentuais de desnutridos são encontrados em países em que parte dos habitantes é submetida a episódios agudos de insuficiência alimentar. Ainda que no Brasil o problema não se apresente com tal gravidade, ele não deve ser menosprezado. Cerca de 49 milhões de brasileiros vivem, segundo o IBGE, com renda mensal equivalente a meio salário mínimo, 130 reais, inferior ao custo da cesta básica calculada pelo Dieese (de 146 reais em novembro de 2004). Essas pessoas enfrentam dificuldades para se alimentar: sacrificam outros gastos básicos, recorrem a programas como a merenda escolar e a alimentação do trabalhador ou dependem da caridade. Tais dificuldades foram, também, captadas pelo IBGE: cerca de 47% das famílias declararam que têm restrições para comprar alimentos e, dentre essas, 14% afirmaram que o alimento disponível é insuficiente.
Apesar dessas informações e do baixo nível de renda de grande parcela da população, de repente parece que não se sabe bem se a fome existe no Brasil e até mesmo qual é o significado do termo. Em dicionários a palavra fome é sinônimo de penúria, miséria, míngua de víveres. Josué de Castro um dos maiores estudiosos sobre o tema no Brasil, já definia há décadas a fome como um complexo fenômeno de manifestações biológicas, econômicas e sociais. Em sua avaliação, ela devia ser entendida e tratada como sinônimo de subdesenvolvimento.
Qual a surpresa do momento? O debate é semântico, teórico, ideológico ou político? Poderia ser teórico: analisada sob o aspecto biológico, a fome se tornaria uma questão de políticas públicas quando chegasse a seu extremo, com desnutrição de grandes contingentes da população. Poderia ser ideológico: no período da ditadura não se podia sequer mencionar o termo fome nos programas oficiais. Ela era associada a questões econômicas, sociais e, portanto, políticas. Já se reconhecia que a solução do problema demandaria mudanças estruturais na organização da sociedade.
Por outras razões, no momento o debate se encaminha para o campo político. Isso se deve à prioridade atribuída pelo atual governo à fome. Ótimo. Ela requer soluções políticas. Assim, o que importa é identificar qual o problema que se quer atacar e que opções são pertinentes. Se a opção for enfrentar a má nutrição, a prioridade poderia ser uma política focalizada nos desnutridos. Se a opção for pelo campo da segurança alimentar, o enfoque tem de ser múltiplo e abrangente. A experiência tem demonstrado que o equacionamento de problemas sociais não se dá por meio de programas isolados e setoriais. É preciso integrar ações assistenciais com medidas capazes de gerar mudanças estruturais, como as de educação, saúde e geração de renda. Esse foi o entendimento que conduziu ao desenho do Programa Bolsa Família e à estratégia do Fome Zero.
Entendida como sinônimo de miséria, penúria, míngua de víveres, a fome só pode ser combatida por meio de programas intersetoriais e integrados, que são difíceis de ser entendidos e implementados, demoram para dar resultados e requerem persistência. Questionar a existência da fome é negar a condição de miséria em que vive boa parte dos brasileiros.
Anna Peliano é diretora de Estudos Sociais do Ipea
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