2012 . Ano 9 . Edição 73 - 28/08/2012
As reflexões de Celso Furtado sobre cultura e Estado
Gilberto Maringoni – de São Paulo
Coletânea de textos mostra pensamento multifacetado e perspicaz, para além das disputas econômicas. Revela um intelectual que via a cultura não apenas como uma “dimensão” da realidade social, mas como “a realidade inteira”
É difícil classificar Celso Furtado (1920-2004) apenas como economista, tal a gama de interesses e temas que ele abordou em profundidade ao longo de sua vida intelectual. Uma prova dessa versatilidade pode ser percebida em Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, lançado pela editora Contraponto e pelo Centro Celso Furtado. Como lembra sua viúva, Rosa Freire D’Aguiar Furtado, na introdução do livro, “Celso dominou como poucos a lógica e as ferramentas econômicas, mas soube ir muito além. Com seus primeiros livros, entre eles o clássico Formação econômica do Brasil, levou a história para a economia. Pouco a pouco, nesta englobou os valores maiores da vida, do cotidiano, das necessidades espirituais e intelectuais, ensaiando assim um entendimento plural do subdesenvolvimento para buscar sua superação”.
Nesse pensamento universalista e multidisciplinar é que os estudos sobre cultura ganharam fôlego em meio a uma obra de mais de trinta livros. Vários de seus ensaios sobre o tema foram reunidos anteriormente em Criatividade e dependência na civilização industrial, de 1978. Para Furtado, "A cultura não é uma ‘dimensão’ da realidade social, mas a realidade toda inteira”.
Nas palavras de Luiz Carlos Bresser-Pereira, em seus estudos culturais, Furtado revela-se um "pensador universal, preocupado não apenas com o desenvolvimento econômico, ou o pleno emprego, ou a repartição da renda, mas também com o próprio destino do homem e com a realização da sua liberdade”.
MINISTÉRIO E AÇÃO PÚBLICA Assim, não foi sem propósito que um dos mais completos intelectuais brasileiros do século XX assumisse o recém criado Ministério da Cultura, entre 1986 e 1988. Ninguém à época tinha muito claro o papel do órgão, nascido de uma costela do Ministério da Educação e Cultura (MEC), fundado em 1930. O desmembramento mereceu uma aguda reflexão de Furtado, em palestra na Escola Superior de Guerra, em setembro de 1986:
“[É necessário] evitar a confusão corrente entre política cultural e política educacional. (...) O Estado interfere na educação para universalizá-la, para corrigir desigualdades sociais, e ainda para arbitrar entre distintos projetos de socialização que emergem da sociedade civil, traduzindo clivagens étnicas, religiosas ou outras. (...) Mas o essencial da atividade cultural está na criatividade, que se alimenta da ruptura com o estabelecido. Neste caso, o papel do Estado tem que ser de outra ordem, pois toda pretensão de monitoramento pode produzir resultados inversos aos que se buscam. Isso não significa que o Estado deve ausentar-se, limitar-se a assegurar a liberdade de criação artística, de produção e consumo de bens e serviços culturais. (...) Na política cultural, como a compreendemos, o Estado, longe de se substituir à sociedade, aplica-se em criar as condições que propiciem a plenitude das iniciativas surgidas dessa sociedade”.
Na mesma conferência, ele apresentava uma notável síntese sobre a ação do poder público:
“A política cultural consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo central é contribuir para que o desenvolvimento assegure a progressiva realização das potencialidades dos membros da coletividade. Ela pressupõe um clima de liberdade e a existência de uma ação abrangente dos poderes públicos que dê prioridade ao social. Essas são as condições necessárias para que a atividade cultural brote da própria sociedade, para que se manifeste e desabroche o gênio coletivo dos indivíduos”.
ANÁLISE E IMAGINAÇÃO Na juventude, Celso Furtado não pretendia se dedicar à Economia. “Queria inicialmente ser romancista, ficcionista. A minha grande leitura até hoje é literária. A descoberta que faço do homem é através da literatura, nunca pela ciência. As ciências sociais são métodos de reduzir, e o homem só se capta totalmente. É preciso inventá-lo. Todo o global depende muito da imaginação. (...) Quando penso uma realidade, penso primeiro pela imaginação, depois pela análise”.
O vigor literário de Furtado faz da leitura de suas obras um exercício desafiante e prazeroso. Estamos diante de um cultor do inesperado, que surpreende com versatilidade cerebral e conclusões sempre criativas. Seu estilo é seco e enxuto, sem conversa jogada fora. Há um quê da sobriedade estilística de um Graciliano em suas linhas, numa concisão articulada, em que cada palavra parece ter sido buscada com o rigor de um investigador objetivo. Furtado é antes de tudo uma leitura eficiente.
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