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Entrevista - Celso Amorim

2010 . Ano 7 . Edição 61 - 13/07/2010

"Política externa é uma política pública como as demais. Está sujeita à expressão das urnas"

Por Douglas Portari e João Cláudio Garcia - de Brasília

Celso Amorim lendo um livroReconhecida e elogiada por seus pares no exterior, quase sempre questionada e criticada dentro do próprio país. Essa tem sido a rotina da política internacional brasileira, que nos últimos meses permaneceu sob holofote constante. Mais que isso, a atuação política, comercial ou humanitária do Brasil no exterior não é mais assunto de salas fechadas. É discutida nas escolas, em bares, nas ruas.
Este maior interesse popular pelas questões externas é um reflexo da diretiva do atual governo e do comando do chanceler Celso Amorim, no serviço diplomático há 45 anos. Dono de uma agenda tão atribulada quanto à do próprio presidente da República, o embaixador concordou em conceder à revista Desafios do Desenvolvimento uma entrevista por correio eletrônico.


Nova política externa

Desafios - Em um mundo que considera normal relações comerciais com governos de quaisquer matizes ideológicos, o Brasil não teria evitado críticas se admitisse antever interesses da Petrobras no Irã, assim como no mercado de enriquecimento de urânio, ao mesmo tempo em que se coloca como ator isento, empenhado em evitar um novo conflito no Oriente Médio?

Celso Amorim - O Irã é um grande país em desenvolvimento com o qual o Brasil tem uma importante - e crescente - relação política e comercial. É também um paíschave para a estabilidade do Oriente Médio e para a paz e segurança internacionais, o que é reconhecido por todos.
A principal questão envolvendo o programa nuclear iraniano é a falta de confiança entre Teerã e os países ocidentais. Enquanto o governo iraniano reclama seu direito legítimo de desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos, uma parte da comunidade internacional desconfia que o programa tenha como finalidade a construção de bombas atômicas.
O cenário que se apresenta hoje preocupa o Brasil. A desestabilização do Irã é algo completamente indesejável. Trata-se de um país com grande população, com enorme influência na região, inclusive por ter um regime confessional islâmico. O endurecimento de posições contra o Irã poderia representar uma séria ameaça para a paz.
Brasil e Turquia envidaram muitos esforços para elevar a confiança entre as partes. Por ocasião da visita do presidente Lula a Teerã, chegamos ao acordo que, a um só tempo, ofereceu elementos que permitem a criação de confiança no tratamento do programa nuclear iraniano e faculta ao Irã o acesso aos elementos combustíveis de origem nuclear de que o país necessita. Logramos que o Irã aceitasse as bases do acordo proposto, em outubro, pela AIEA [Agência Internacional de Energia Atômica] e pelas próprias potências ocidentais, e que o Irã havia recusado anteriormente.

Desafios - A última rodada de sanções ao Irã, aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU sem levar em conta esse acordo turco-brasileiro, configura uma derrota para a política externa do País?

Amorim - Nessa questão sensível que envolve o programa nuclear iraniano, o Brasil teve e tem os mesmos objetivos que os demais membros do Conselho de Segurança da ONU. Desejamos que as atividades nucleares desenvolvidas pelo Irã tenham finalidades exclusivamente pacíficas. A diferença está na avaliação dos meios para a obtenção desse fim. O Brasil, bem como a Turquia, entendeu que as sanções não são a melhor resposta no momento. O governo brasileiro está convencido de que a solução da questão do programa nuclear iraniano só será possível por meio da negociação.
A demonstração de coerência com nossas convicções e com nossa iniciativa faz com que o Brasil seja respeitado e mantenha sua credibilidade como interlocutor de todas as partes. Os demais membros do Conselho de Segurança manifestaram, reiteradamente, apreço e mesmo gratidão pela iniciativa turco-brasileira. Não o fizeram por cortesia. Assim se expressaram porque reconhecem o valor e o peso relativo da atuação diplomática do Brasil e da Turquia na matéria.

Desafios - A viagem do presidente Lula ao Oriente Médio foi alvo de inúmeras críticas. Para além do debate ideologizado da mídia, é possível o Brasil se tornar um interlocutor em discussões de paz para a região?

Amorim - A viagem do presidente Lula ao Oriente Médio teve grande êxito. Representou um passo importante na trajetória de aproximação com os países daquela região. Tratou-se também da primeira visita de um chefe de Estado brasileiro a Israel, à Palestina e à Jordânia.
Desde o início, nosso governo tem-se dedicado à tarefa de estreitar os laços com os países do Oriente Médio. O presidente Lula já realizou quatro viagens à região. Organizamos, em Brasília, em 2005, a 1ª Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), que representou um esforço pioneiro de tornar mais próximas duas regiões do mundo em desenvolvimento. Aquela iniciativa pioneira gerou resultados importantes, inclusive o aumento do fluxo comercial entre árabes e sulamericanos.
O Brasil mantém diálogo amistoso e fluido com todos os países do Oriente Médio. Aliás, poucos são os países do mundo que dialogam no mesmo nível com palestinos, israelenses, egípcios, libaneses, sírios, sauditas. No momento, o Brasil está novamente ocupando assento não-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. É natural que estejamos mais envolvidos com as questões globais.
O interesse brasileiro em contribuir para o processo de paz no Oriente Médio não é recente. Como reconhecimento de nossa disposição, o Brasil foi convidado a participar da Conferência de Annapolis, nos Estados Unidos, em 2007, sobre a questão palestina, junto com outros grandes países em desenvolvimento de fora da região. À margem da recente Cúpula do Fórum Ibas [em abril], em Brasília, os ministros das Relações Exteriores de Índia, Brasil e África do Sul receberam o chanceler palestino, Riad Al-Malki. Juntos, emitimos declaração histórica sobre o processo de paz, que apoia o estabelecimento do Estado palestino com as fronteiras pré-1967 e tendo Jerusalém Oriental como sua capital.
O Brasil é hoje reconhecido como um interlocutor importante nas discussões de paz para o Oriente Médio.

Perfil

Celso Amorim ocupa, desde o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o posto de ministro das Relações Exteriores. Ainda que mais longeva, esta não foi sua primeira experiência no cargo. Entre 1993 e 1994, no governo Itamar Franco, tornou-se titular da pasta de Relações Exteriores enquanto ocupava a Secretaria Geral do Itamaraty. Diplomata desde 1965, era embaixador do Brasil em Londres quando recebeu o convite de Lula a retornar ao posto de ministro.

Foi professor de Língua Portuguesa no Instituto Rio Branco e de Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade de Brasília (licenciado), e diretor-geral da Embrafilme, entre 1979 e 1982. Ocupou ainda inúmeros cargos na Organização das Nações Unidas, sendo o último deles o de representante permanente do Brasil, em Genebra, junto à ONU e à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Nascido em Santos (SP) e pai de quatro filhos, Amorim tem 68 anos. É pós-graduado em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena, na Áustria, e cursou doutorado na London School of Economics and Political Science, em Relações Internacionais e Teoria Política (sem entregar a dissertação).



Celso Amorim

"O cenário que se apresenta hoje preocupa o Brasil. A
desestabilização do Irã é algo completamente indesejável"



Desafios - Quais são hoje as ?linhas de força? da política externa brasileira?

Amorim - O governo do presidente Lula é fiel aos princípios históricos que orientam tradicionalmente a política externa brasileira: não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados, respeito às soberanias nacionais e ao direito internacional, defesa da autodeterminação dos povos, entre outros. Estes são princípios também consagrados na Constituição de 1988. Mas a política externa é uma política pública como as demais. Está sujeita à expressão das urnas e da opinião pública. Os princípios são os mesmos, mas as prioridades e agendas podem mudar.

A política externa do governo do presidente Lula escolheu defender e avançar os interesses e valores brasileiros no mundo sem se furtar a prestar solidariedade aos países mais necessitados. Acreditamos que uma política externa solidária é ao mesmo tempo humanista e atende aos interesses brasileiros na medida em que um país é mais bem percebido quando contribui para a estabilidade global e para a redução das assimetrias entre os países. Ao princípio da não-intervenção, agregamos a "nãoindiferença" em relação a povos que atravessam situações de dificuldade, desde que essa solidariedade seja prestada pelos canais legítimos e com a aprovação do país beneficiário.
A reforma da governança global é uma linha de força da atual política externa brasileira. Queremos contribuir para a construção de uma ordem internacional que seja mais justa, democrática e inclusiva para os países em desenvolvimento. A aproximação com outros países em desenvolvimento e a consequente universalização da nossa agenda externa são parte indissociável dessa estratégia. É nesse contexto que se insere o empenho pela integração sul-americana, a principal prioridade do governo do presidente Lula na área internacional.

Desafios - Uma política internacional soberana e independente do eixo Estados Unidos-Europa encontrou mais resistência interna ou externa?

Amorim - Avançamos uma política externa autônoma dos Estados Unidos, da Europa, da China e de qualquer outro país. É claro que não ignoramos - nem poderíamos - o que acontece no resto do mundo. Mas a política externa brasileira é formulada a partir de uma perspectiva nacional. Não creio que haja resistências internas quanto ao novo papel do Brasil no mundo, senão de um ou outro setor mais conservador da imprensa que preferiria que tivéssemos atrelado nosso destino aos interesses dos países ricos. Converso com as pessoas nas ruas e sinto que elas sentem orgulho da atitude desassombrada que o Brasil vem adotando no mundo.
Tampouco houve resistências externas consideráveis. O que testemunhamos hoje é o reconhecimento internacional de que a diplomacia brasileira está disposta a assumir um papel mais importante nas relações internacionais.

Desafios - Recentemente, o ex-ministro Rubens Ricupero afirmou que o Brasil possui um "comportamento que não é coerente" em sua diplomacia. Como o senhor avalia essa crítica?

Amorim - Nossa política externa é perfeitamente coerente com a tradição diplomática brasileira. Não abrimos mão de nossos princípios históricos e constitucionais. O que pode haver - e de fato tem havido - é a atribuição de maior ênfase a um conjunto de temas sobre outros. A integração sulamericana e a aproximação com outros países em desenvolvimento, por exemplo, são linhas de ação percebidas como prioritárias pelo nosso governo.
Nossa política externa é também coerente com as dimensões do Brasil. Nosso governo decidiu, desde o primeiro momento, assumir uma postura desassombrada nas relações internacionais. Procuramos fazer com que o Brasil ocupe o papel no mundo que cabe a um país de nossas dimensões, com a nossa cultura, com as nossas credenciais democráticas. O mundo mudou e o Brasil também. A política externa brasileira precisava acompanhar essas transformações.

Desafios - Em março, na ONU, o Brasil votou condenando violações aos direitos humanos na Coreia do Norte. A nossa postura com relação a Cuba, também cobrada pelas Nações Unidas no tema, não tem sido a mesma. Por quê?

Amorim - A diplomacia brasileira favorece iniciativas internacionais em matéria de direitos humanos que tenham real impacto sobre a vida das pessoas. A imparcialidade, a universalidade e a não-politização são os princípios que orientam nossa postura nessa matéria. Na visão brasileira, os direitos humanos são universais e sua aplicação não deve estar sujeita a conveniências políticas.
Em virtude da percepção de que a Comissão de Direitos Humanos aplicava condenações de forma seletiva e discriminatória em relação a Cuba, nossa posição era, tradicionalmente, de abstenção nas votações. Desde a substituição da Comissão pelo Conselho de Direitos Humanos, em junho de 2006, Cuba deixou de ser objeto de projetos de resolução, em função da atitude construtiva mantida pelas autoridades cubanas durante o processo negociador que levou à fundação do Conselho. O Conselho de Direitos Humanos significou uma evolução em relação ao seu antecessor, na medida em que sua atuação passou a dispensar um tratamento universal à questão dos direitos humanos.

Desafios - Esse novo protagonismo do Brasil, como interlocutor nas questões mundiais, possui um ônus material e humano. O país tem condições de fazer frente a esse ônus?

Amorim - Ter uma ação externa global traz muitos benefícios para o país, que mais do que compensam os custos da maior projeção externa. Desde o início do governo, ampliamos a nossa rede de postos no exterior. Em 2002, havia 150 representações brasileiras no mundo. Hoje são 216. Criamos 35 novas embaixadas, 16 delas na África. Hoje temos representação permanente em todos os países da América Latina e Caribe. Criamos também quase 70 repartições consulares em todos os continentes, com o objetivo de atender aos interesses da crescente comunidade brasileira no exterior.
Ampliamos o quadro de funcionários do Itamaraty. Foram criadas 400 novas vagas para a carreira diplomática. Esse aumento fortalece a nossa atuação no exterior. É preciso que o aumento do número de postos no exterior seja acompanhado por um aumento proporcional dos funcionários. Mas é pouco. O México, por exemplo, dispõe do dobro do número de diplomatas que o Brasil, tendo uma população cerca de metade da população brasileira. Os Estados Unidos anunciaram, em 2009, um incremento nos quadros do Departamento de Estado semelhante ao brasileiro: 40%. Só que o número lá passou de 10.000 para 14.000. O Brasil conta com hoje com 1.400 diplomatas.
É necessário dar seguimento à política de fortalecimento do Itamaraty seguida pelo presidente Lula. Se o Brasil quiser que seus interesses estejam bem representados em um mundo crescentemente interdependente, é necessário estar bem equipado. Não basta sermos portadores das melhores mensagens: é necessário que tenhamos porta-vozes para transmiti-las.

Governança global

Desafios - O senhor acredita ser viável uma reforma da ONU que espelhe a nova correlação de forças no mundo, esse espraiamento de poder entre os emergentes, inclusive com mudança na composição do Conselho de Segurança?

Amorim - O fenômeno mais importante das relações internacionais do pós-Guerra Fria é a ascensão dos países em desenvolvimento e a consequente multipolarização da ordem internacional. Países como China, Índia e Brasil se tornaram imprescindíveis para a manutenção da estabilidade global - e também para sustentar o crescimento da economia mundial. Não sou só eu que digo: o historiador britânico Eric Hobsbawm, em recente entrevista, fez referência aos países do grupo BRIC como protagonistas desse movimento histórico.
A nova configuração de poder nas relações internacionais tem tornado a necessidade da reforma da ONU ainda mais urgente. O Conselho de Segurança tem-se mostrado incapaz de oferecer respostas adequadas às crises muito em função da perda de legitimidade e eficácia que decorrem de sua composição obsoleta. A reestruturação do órgão responsável pela paz e segurança internacionais se insere no contexto mais amplo da reforma da governança global, cuja necessidade ficou mais evidente desde a eclosão da crise financeira. Se a Organização não for reformada, os países recorrerão cada vez mais a outros mecanismos de coordenação internacional - formais ou informais - fora do sistema ONU.
A proposta do G4, formado por Brasil, Índia, Alemanha e Japão, de criar novos assentos permanentes decorre de uma avaliação das reformas necessárias para o fortalecimento da autoridade, legitimidade e eficácia do Conselho. Propostas de reforma demasiadamente tímidas, que contemplem apenas a expansão de membros não-permanentes, não seriam capazes de resolver os problemas do órgão e apenas levariam à permanência da debilidade institucional das Nações Unidas.


"Acreditamos que uma política externa solidária é
ao mesmo tempo humanista e atende aos interesses
brasileiros"

Desafios - O Brasil está disposto a aumentar sua presença em missões da ONU, com o preço político de perdas humanas inerentes a muitas dessas operações?

Amorim - O Brasil está hoje presente em nove missões de paz da ONU em todos os continentes, com 2.256 militares em campo. Como membro-fundador das Nações Unidas e uma tradição externa assentada na busca de solução pacífica para os conflitos, o Brasil está sempre disposto a prestar sua colaboração para o sistema de segurança coletiva, de que as operações de paz são uma importante e útil modalidade.
De todo modo, está prevista na Estratégia Nacional de Defesa de 2008 a crescente participação das Forças Armadas brasileiras em operações de paz da ONU. A decisão de participar de uma operação dessa natureza envolve, entretanto, avaliação de circunstâncias políticas e estratégicas, bem como da disponibilidade de emprego de recursos militares.

Desafios - Dez países deverão pagar 83% dos gastos previstos na ONU com operações de paz em 2010. Qual a participação do Brasil?

Amorim - De acordo com os dados de 2010, os dez maiores contribuintes financeiros para operações de paz são Alemanha, Canadá, China, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido. A Rússia é o único membro permanente que não figura entre eles.
A quota brasileira para o triênio 2010- 2012 será de 0,3222% do orçamento para operações de paz, o que configura aproximadamente US$ 25 milhões anuais. Dentre os países em desenvolvimento, o Brasil é o quarto maior contribuinte financeiro para operações de paz. Pretende, na medida de suas possibilidades, continuar a contribuir para esses esforços.

Desafios - Estamos hoje na "terceira geração" brasileira de operações de paz, do Batalhão Suez, no Egito, passando pela República Dominicana, Moçambique e Timor-Leste, até o Haiti. Que benefícios esta atuação traz ao país?

Amorim - O Brasil acumulou grande experiência com a participação nas operações da paz das Nações Unidas. Desde a época da Liga das Nações, o Brasil tem-se envolvido em esforços desse tipo. Os militares brasileiros já estiveram em 34 operações da ONU. No Haiti, temos tido a oportunidade de comandar o componente militar da operação desde 2004, a chamada Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti). Não há precedentes na história da ONU de um país que tenha ficado tanto tempo à frente de uma mesma operação de paz.
De modo geral, pode-se dizer que a participação em operações de paz favorece a imagem internacional do Brasil. Favorece a percepção de que o país está disposto a contribuir para a solução pacífica dos conflitos e, dessa forma, eleva as credenciais multilaterais brasileiras.
Há benefícios também para as nossas Forças Armadas. Os militares ganham experiência em situações reais de conflitos. O perfil de atuação dos capacetes azuis é muito bem visto nos países, inclusive em razão do desempenho de ações humanitárias e cívico-sociais. O Brasil já conta com um centro de excelência de treinamento dos militares que participam de missões da ONU: o CIOpPaz, no Rio de Janeiro.
O próprio Itamaraty passa a ter melhores condições de refletir sobre a dinâmica dos conflitos contemporâneos. O Brasil ocupa hoje um assento não-permanente no Conselho de Segurança da ONU. A seguida participação em operações de paz beneficia a atuação do Brasil no Conselho. Propiciou, por exemplo, uma melhor compreensão da íntima relação simbiótica entre as questões de desenvolvimento socioeconômico e a prevenção de conflitos. Essa doutrina brasileira de participação, que vincula a construção da paz à promoção do desenvolvimento, encontrou sua concretização prática na Minustah.

Desafios - Para além da Minustah, como o Brasil pretende auxiliar o Haiti no futuro?

Amorim - O compromisso do Brasil com o Haiti é de longo prazo. Nossa solidariedade já era sólida antes do terremoto; tornou-se ainda mais necessária depois da tragédia de 12 de janeiro. Os capacetes azuis brasileiros têm contribuído, ao longo desses mais de seis anos, para a estabilização política daquele país e também prestado um importante trabalho humanitário junto à população haitiana. Avaliamos que uma retirada precoce da Minustah poderia comprometer os avanços conquistados e os esforços de reconstrução do país.
As condições de segurança no Haiti decorrem diretamente da precária situação socioeconômica do país. Combater a pobreza, promovendo a justiça social, equivale a investir na estabilidade política e na paz. A atuação brasileira na Minustah procurou, desde o início, combinar as atividades militares com ações cívicosociais voltadas para a mitigação do sofrimento dos haitianos.
O governo brasileiro desenvolve também uma série de projetos de cooperação técnica voltados para a promoção do desenvolvimento no Haiti. São áreas prioritárias a segurança alimentar, treinamento profissional, saúde e infraestrutura. O Fundo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas) mantém um projeto de cooperação Sul-Sul considerado exemplar pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD): a unidade de reciclagem de resíduos sólidos, em Porto Príncipe, que gera emprego, contribui para a limpeza urbana e combate o desmatamento.
As perdas acarretadas pelo terremoto impuseram a necessidade de concentrar os esforços na reconstrução do Haiti. A Conferência de Doadores, realizada em Nova York, em março, foi importante para reiterar o engajamento da comunidade internacional na ajuda. O Brasil efetuou doação de US$ 55 milhões naquela oportunidade - a maior contribuição dessa natureza jamais feita pelo nosso País -, o que revela que a nossa postura de não-indiferença em relação aos destinos do Haiti permanece firme.

Desafios - O fortalecimento de nossas Forças Armadas, necessário a essa nova posição mundial, poderia inaugurar uma corrida armamentista no continente?

Amorim - O Brasil está em paz com seus vizinhos há quase 150 anos. Creio que seja o único país com essas dimensões que não se envolve em um conflito armado com seus vizinhos há tanto tempo. O perfil de busca da paz de nossa política externa é amplamente reconhecido por todos os países da região, bem como nossa disposição de resolver as questões por meio da diplomacia, da cooperação, da integração e do direito internacional.
Entre os grandes países, o Brasil talvez seja aquele que apresenta menor proporção de gastos militares - somente cerca de 1,5% do PIB (Produto Interno Bruto). O fortalecimento de nossas forças armadas é uma necessidade para a proteção das nossas fronteiras e do nosso litoral - inclusive no que se refere às recentes descobertas dos campos do pré-sal.
O Brasil procura coordenar-se em matéria de defesa e de segurança com nossos vizinhos sul-americanos. Entendemos que as ameaças comuns aos países da região precisam ser tratadas coletivamente. Por isso, apoiamos a criação do Conselho Sul- Americano de Defesa no âmbito da Unasul [União de Nações Sul-Americanas].

Integração sul-americana

Desafios - Novos blocos como a Unasul ou a CALC são respostas a antigos foros como a OEA? Podem trazer maior representatividade?

Amorim - A Unasul é um projeto inovador de integração regional, baseado na convergência de interesses e na consolidação de uma identidade própria dos países da América do Sul. Tem como base a aproximação concreta que vem ocorrendo entre os países da região, em vertentes como a energética, a de infraestrutura, a social e a econômica.
A Unasul tem demonstrado ser de grande utilidade para seus membros, que se reúnem em conselhos que cuidam de temas de interesse comum, como o de defesa, saúde, infraestrutura, combate às drogas, entre outros. A Unasul também se provou instrumental para a pacificação da crise política pela qual passou a Bolívia, em 2008, e para o debate sobre a instalação das bases militares norte-americanas na Colômbia, no ano passado.
No final de 2008, o círculo da integração regional sul-americana foi ampliado para toda a América Latina e Caribe. A convite do presidente Lula, foram reunidos, na Costa do Sauipe, na Bahia, os chefes de Estado e de governo de todos os países latino-americanos e caribenhos. Foi nesta conferência - a CALC, como ficou conhecida - que todos os países da região encontraram-se, pela primeira vez, em dois séculos de história independente (para a maioria deles, já que alguns países só conquistaram a sua independência no século passado), tendo como base uma agenda própria, sem tutela ou ingerência externa. Não é um fato extraordinário - e mesmo surpreendente?
Na cúpula realizada em fevereiro de 2010, em Cancún, acordou-se que a CALC e o Grupo do Rio devem convergir gradualmente para constituir um novo organismo, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
A integração regional assume formas diversas, complementares entre si e que tendem à convergência gradual. O objetivo da CELAC não é isolar país algum ou tornar a OEA obsoleta. A OEA (Organização dos Estados Americanos) continuará a ser muito útil para facilitar o diálogo e a cooperação dos países latino-americanos e caribenhos com Estados Unidos e Canadá. Um sinal de reconhecimento, já que muitos precisam de um atestado dessa natureza, é que o presidente Obama convidou a Unasul para uma reunião à margem da Cúpula das Américas de Port of Spain, no ano passado.

Desafios - O Brasil é tido hoje como uma potência regional. Como tal, vamos assumir o papel de principal interlocutor em situações como as de Honduras, as relações Colômbia-Venezuela, ou as Malvinas?

Amorim - O Brasil entende que tem interesses e responsabilidades no mundo todo. Mas só se envolve em uma questão que não nos afeta diretamente quando é chamado para tal. A política externa brasileira tem como princípios a não-intervenção nos assuntos internos de outro Estado e o respeito às soberanias nacionais. A esses princípios agregamos a noção de "não-indiferença", que implica a prestação de solidariedade a países atravessando situações difíceis, sempre por meio de canais legítimos. A participação brasileira na convocação do Grupo de Amigos da Venezuela em 2003 e a decisão de comandar a operação de paz da ONU no Haiti são exemplos da nãoindiferença da diplomacia brasileira.
No caso de Honduras, nossa postura inicial foi de veemente condenação ao golpe de Estado que derrubou o presidente Zelaya, em consonância às decisões da ONU e da OEA sobre a matéria. Só fomos envolvidos mais diretamente na questão quando o presidente constitucional do país apareceu em nossa embaixada em Tegucigalpa. Tenho a convicção de que a firmeza da posição brasileira contribuiu para que houvesse evolução no diálogo entre os golpistas e o presidente deposto e, portanto, para evitar um maior derramamento de sangue.
O Brasil favorece sempre o diálogo. O presidente Lula, com sua história de líder sindical, ajudou a tornar essa característica da diplomacia brasileira ainda mais pronunciada em seu governo. Portanto, quando as partes envolvidas em uma questão entendem que o Brasil pode facilitar o diálogo - em geral porque mantemos interlocução em alto nível com todos -, nós procuramos contribuir. Foi o que aconteceu, por exemplo, no acordo entre o Irã e a AIEA, para o qual o Brasil e a Turquia contribuíram.

Desafios - Estão marcadas para este ano as eleições indiretas do Parlamento do Mercosul. O que esperar com a efetivação desse foro?

Amorim - O parlamento constitui a forma mais bem acabada de representação política. Essa é uma realidade que se verifica também no contexto dos projetos de integração regional. O Parlamento do Mercosul, aprovado em dezembro de 2006 e em funcionamento desde 2007, pode e deve desempenhar esse papel de catalisar as decisões políticas necessárias ao aprofundamento da integração.

Não há parlamento que se sustente sem legitimidade. E a legitimidade decorre de o parlamento ser percebido como representativo. Os parlamentares do Mercosul entenderam essa importância ao aprovar, em abril de 2009, uma proposta de critérios de representação cidadã, que procura refletir a proporcionalidade das populações dos países, sem, contudo, alienar os membros menores do bloco.
A proposta permitirá a eleição democrática de todos seus membros, mas não alterará, pelo menos por enquanto, a natureza consultiva do parlamento. Se aprovada até o final do ano, permitirá a realização de eleições diretas para candidatos brasileiros a parlamentar do Mercosul já a partir de 2012.

Desafios - O Mercosul ainda tem condições de se tornar área de livre comércio, quase 20 anos depois de sua criação?

Amorim - O Mercosul é uma área de livre comércio para a maior parcela das suas trocas. Excluindo os setores automotivo e açucareiro, que nunca propriamente fizeram parte do bloco, as restrições ao comércio intrazona não superam mais que 15% do intercâmbio comercial entre os sócios. É mais do que gostaríamos, mas é expressivo para qualquer processo de integração regional.
O Mercosul é muito mais do que uma área de livre comércio. Sua vocação é ser uma união aduaneira - um espaço econômico integrado com políticas comerciais e econômicas harmonizadas. Mesmo que imperfeita, a união aduaneira é o que melhor atende aos interesses brasileiros, uma vez que confere acesso preferencial a nossas exportações de produtos de maior valor agregado nos mercados vizinhos.
A América Latina e o Caribe em geral, e o Mercosul em particular, constituem o principal destino de nossas exportações industriais e de manufaturados.
O fortalecimento da união aduaneira e a progressiva consolidação da tarifa externa comum fortalecem o poder de barganha dos países em seu conjunto frente a parceiros externos. Isso impõe maiores desafios em termos de coordenação. Esse é o papel que se espera do Brasil na região.

Desafios - Como o senhor vê as críticas quanto às negociações com vizinhos como Bolívia e Paraguai, caso das revisões de contratos de gás e eletricidade?

Amorim - A prosperidade do Brasil depende, em certa medida, da prosperidade dos nossos vizinhos. Precisamos entender que vivemos em um conjunto e que não podemos ser indiferentes aos problemas que afligem os países que nos cercam, mesmo que essa atitude represente um custo. É do nosso interesse que a Bolívia, com quem partilhamos nossa maior fronteira, e o Paraguai, sócio da principal fonte de hidreletricidade do Brasil, possam também trilhar o caminho do desenvolvimento e da prosperidade. Nossa política tem sido a da solidariedade, sem nunca perder de vista os interesses brasileiros.
A nacionalização das refinarias na Bolívia não afetou as vendas de gás ao mercado brasileiro. Costumo dizer que o consumidor brasileiro não deixou de receber nem uma única molécula de gás. Não houve tampouco mudança no contrato de compra e venda de gás. Petrobras e YPFB [Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos] entabularam longas e intensas negociações que resultaram na assinatura de novos contratos de exploração dos campos de gás operados pela empresa brasileira. E a Petrobras certamente não teria decidido permanecer na Bolívia sem que seus investimentos tivessem razoável rentabilidade econômica.
Temos uma relação muito complexa com o Paraguai, que é um dos países mais pobres da América do Sul. Há muitos brasileiros que vivem lá. As estimativas variam de 80 mil a 150 mil pessoas. É preciso compreender que Itaipu é uma das principais fontes de receita daquele país - os rendimentos recebidos em royalties, remuneração de capital, encargos de administração e cessão de energia representam cerca de 20% da receita fiscal paraguaia. Do ponto de vista brasileiro, o impacto do aumento da remuneração paga pela compra da energia paraguaia de Itaipu será mínimo. Já para o Paraguai representará acréscimo de quase 15% nas receitas fiscais. É inadmissível que um país que é sócio de uma das maiores hidrelétricas do mundo tenha problemas de suprimento de energia para a sua capital.
Por isso, o Brasil vai ajudar a financiar, com os recursos do Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosul, a construção da rede de transmissão de energia de Itaipu a Assunção.

Relações comerciais

Desafios - A que fatores o senhor credita a vitória na OMC, com a permissão para retaliação de cerca de R$ 1,5 bilhão a produtos e serviços dos Estados Unidos?

Amorim - Com o resultado do contencioso do algodão, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio autorizou o Brasil a aplicar contramedidas contra os Estados Unidos que chegam a US$ 829 milhões, com base nos dados de 2008, e que podem passar de US$ 1 bilhão com os dados de 2009. Desse montante, o Brasil pode retaliar até US$ 561 milhões somente em bens e o restante poderá incluir medidas nas áreas de serviços e propriedade intelectual. Essa vitória foi obtida após quase oito anos de litígio em que os subsídios norteamericanos ao algodão foram condenados de modo reiterado em quatro etapas. Todas as decisões reconheceram que os programas de subsídios não estavam de acordo com as normas da OMC e causavam grave prejuízo aos produtores de algodão brasileiros e de outros países. Nós demonstramos que tanto os subsídios à exportação como os programas de apoio doméstico favorecem artificialmente os agricultores norte-americanos e distorcem a competitividade do produto brasileiro - e de outros países - no mercado internacional.
O principal fator para nossa vitória foi a própria ilegalidade das medidas norteamericanas - e a insistência do governo norte-americano em não cumprir as recomendações aprovadas na OMC. A boa articulação do governo brasileiro com o setor privado contribuiu decisivamente, uma vez que permitiu uma boa preparação e coesão política durante todo o processo.
A retaliação não interessa a ninguém, mas foi a única maneira de fazer os Estados Unidos se moverem. Só às vésperas da entrada em vigor da primeira parte das medidas de retaliação - ou seja, o aumento de certas tarifas a importação de produtos norte-americanos - é que o governo norteamericano apresentou propostas concretas para a mesa de negociação. O Brasil espera que a negociação seja bem sucedida e que as medidas distorcivas sejam corrigidas.
Com isso, o contencioso terá beneficiado, além dos produtores brasileiros de algodão, demais produtores em países em desenvolvimento, em especial os dos países africanos cujas economias dependem do comércio desse produto (a exemplo dos integrantes do grupo Cotton-4: Benin, Burkina Fasso, Chade, Mali).

Desafios - Que impacto crê que a permissão para retaliação terá no status das relações comerciais não só com os Estados Unidos, mas também com a Europa?

Amorim - A retaliação é um instrumento legítimo. Se for aplicada pelo Brasil, fará com que os Estados Unidos cumpram as recomendações aprovadas pela OMC. Serve também para preservar a credibilidade do sistema de solução de controvérsias da OMC. A credibilidade do OSC interessa a todos os participantes do sistema multilateral de comércio, inclusive aos Estados Unidos, que são um dos mais importantes exportadores mundiais.
A decisão no contencioso do algodão tem importância histórica. Se for de fato cumprida, demonstrará que as regras do sistema funcionam também em benefício dos países em desenvolvimento. A agricultura é fundamental para esses países, de modo que a redução dos subsídios agrícolas seria de grande importância para suas economias. Demonstraria também que um país com apenas cerca de 1% das importações mundiais, como é o caso do Brasil, também pode ter seus direitos garantidos no sistema multilateral de comércio
O Brasil, junto com outros países que formam o G20 da OMC, tem buscado avançar nas negociações da Rodada de Doha para chegar a um acordo que modifique as regras para o comércio de bens agrícolas. O resultado do contencioso do algodão fortalece a posição de que as políticas que causam distorções no mercado agrícola precisam ser modificadas. A vitória brasileira aponta para o fato de que as políticas de subsídios ilegais tenderão a ser reiteradamente condenadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias.
Como há distorções no comércio agrícola igualmente do lado da União Europeia, a decisão no caso do algodão indica que a mesma via pode ser utilizada sempre que houver violações sérias das normas multilaterais. No caso dos subsídios europeus à exportação de açúcar, o Brasil já obteve vitória categórica na OMC em 2005, o que levou Bruxelas a alterar suas políticas. O mesmo efeito teve a vitória do Brasil no caso da classificação aduaneira de frango salgado e congelado, com a UE, também em 2005.

Desafios - Desde o início da década antevia-se a China como o maior parceiro comercial do Brasil. A crise de 2008/2009 acelerou esse processo. Como é vista, contudo, a posição brasileira, majoritariamente de fornecedor de commodities?

Amorim - O Brasil é um grande exportador de produtos baseados em recursos naturais - e, em função de nossas riquezas, dificilmente deixará de ser. Mas a economia brasileira é também muito diversificada, podendo contar com um sólido parque industrial e com um setor de serviços crescentemente sofisticado. Apenas 5% do Produto Interno Bruto brasileiro são oriundos do setor agrícola. Nossa preocupação não deve ser com o fato de exportarmos commodities, mas com a forma como essa exportação repercute na economia brasileira.
Quando falamos em commodities, não estamos nos referindo somente a produtos in natura. Há muito valor agregado: genética de sementes, produtos agroquímicos, tecnologias de extração de minérios, serviços ambientais, máquinas agrícolas, logística, serviços de informação de mercado, serviços financeiros. A questão, portanto, é saber se o Brasil está se beneficiando em todas essas atividades, se há uma articulação entre essa demanda externa e o desenvolvimento econômico e social aqui.
A Ásia passou de exportadora líquida de alimentos e de matérias-primas a importadora desses bens. As indicações são de que esse processo vai se aprofundar. As populações em muitos países em desenvolvimento estão, felizmente, acedendo a melhores condições de vida. Passam, naturalmente, a consumir alimentos em maior quantidade e mais diversificados.
Os mercados desenvolvidos também sofisticam as exigências de qualidade. A tendência é, portanto, de que continue a haver uma demanda forte por produtos baseados em recursos naturais. O governo brasileiro tem trabalhado, nos fronts interno e externo, para que o País possa tirar o melhor benefício disso.
Diversificar as exportações e procurar exportar também produtos mais elaborados é sempre um objetivo a ser perseguido. Reconhecemos que as exportações para a China, por exemplo, estão muito concentradas em soja e minério de ferro. É preciso que governo e setor privado desenvolvam um esforço conjunto, consistente e de médio prazo para mudar esse quadro.

Desafios - A Nigéria, em 2009, foi nosso 11º parceiro comercial, com quase US$ 6 bilhões de trocas (valor similar ao da China em 2003). Somadas as outras nações africanas, o continente é nosso quarto parceiro comercial. Temos laços históricos e culturais, sem contar os países de língua portuguesa. Dentro da perspectiva Sul-Sul, a África é hoje a nova fronteira?

Amorim - A aproximação com a África foi e é uma prioridade do governo do presidente Lula desde o primeiro momento. Tem fundamento nos laços históricos, culturais e demográficos que unem o Brasil ao continente africano. O Brasil é o maior país negro fora da África. Não é necessário nenhum grande esforço de resgate para constatar essa profunda ligação: viajar, por exemplo, pelo Benim ou pelo Togo é também viajar pelo Brasil.
O presidente Lula já realizou dez visitas ao continente africano desde o início do governo, tendo estado em mais de 20 países. Em julho, realizará novo périplo à África, passando por cinco países. Como reconhecimento, foi o convidado de honra da 13ª Cúpula da União Africana realizada na Líbia em 2009. Nossa disposição de tornar Brasil e África mais próximos é de longo prazo: abrimos - ou reabrimos conforme o caso - 16 embaixadas no continente desde o início do governo. O Brasil conta, hoje, com representação permanente em 35 dos 53 países do continente, além de dois consulados.
Há resultados altamente positivos em todos os setores do relacionamento entre o Brasil e os países africanos. No comércio, o crescimento é mais facilmente verificável: de 2002 a 2008, nossas trocas comerciais mais que quintuplicaram (de US$ 5 bilhões para US$ 26 bilhões, aproximadamente). Em 2009, esta cifra caiu um pouco em função da crise financeira, mas este ano já registra uma retomada do crescimento. Há, evidentemente, potencial para mais. Podemos ampliar o fluxo de comércio, investimentos e pessoas. É necessário um esforço, inclusive do empresariado nacional, para melhorar a infraestrutura de conexão e comunicação com a África.
Existem interesses concretos, seja de natureza política, seja de ordem econômica, que fundamentam essa mobilização diplomática do Brasil em direção à África. Mas nos anima também um sentido de solidariedade. Há resultados muito expressivos, por exemplo, em matéria de cooperação técnica. O continente recebe hoje cerca de 60% dos recursos da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Itamaraty. Há 50 projetos na área de segurança alimentar em 18 países africanos. Realizamos em maio, em Brasília, uma reunião do Diálogo BrasilÁfrica. O escritório da Embrapa em Gana; a fábrica de medicamentos antirretrovirais da Fiocruz em Moçambique; a fazenda-modelo de algodão no Mali; o centro experimental de produção de arroz no Senegal são exemplos concretos desse grande esforço de colaboração brasileira com a promoção do desenvolvimento africano.

Retrospecto

Desafios - Artigo no site da revista norte-americana Foreign Policy de outubro passado chama o senhor de "o melhor ministro de relações exteriores do mundo". O senhor se considera um dos responsáveis pela imagem que o Brasil ostenta lá fora?

Amorim - A boa imagem que o Brasil desfruta no exterior é resultado de um longo processo histórico. Tem a ver com a tradição pacífica de nossa ação externa, com a qualidade do nosso serviço diplomático - um dos mais profissionais e reconhecidos do mundo -, com nossas credenciais democráticas e também com a retomada do crescimento econômico, com a redistribuição de renda, com o avanço dos indicadores sociais e com o carisma do presidente Lula, que se transformou em um dos grandes líderes mundiais dos nossos tempos. A execução da política externa pelo Itamaraty teve um papel importante também, mas as orientações e o envolvimento do presidente da República com os temas internacionais é que inspiram e embasam a atuação da diplomacia brasileira.

Desafios - Em retrospecto, que saldo o senhor considera ter após quase oito anos como chanceler? Qual seu maior erro e seu maior acerto?

Amorim - O governo do presidente Lula contribuiu decisivamente para a elevação do perfil do Brasil nas relações internacionais. Isso foi feito por meio de uma política externa autônoma, solidária, universal, sem preconceitos e com forte compromisso multilateral.
Contribuímos também para a aproximação entre os países em desenvolvimento, em iniciativas como as Cúpulas América do Sul-Países Árabes (ASPA) e América do Sul-África (ASA). Tivemos um papel muito importante no avanço da integração sulamericana (Unasul) e latino-americana e caribenha. Arrisco dizer que o Brasil ajudou a ampliar a discussão global sobre a necessidade de democratizar as instituições internacionais.
O maior acerto foi apostar que o Brasil não poderia ter uma postura meramente reativa no mundo. Precisávamos trabalhar para ajudar a transformar a realidade internacional. Escolhemos colocar em marcha uma política externa não somente "ativa e altiva", mas também "criativa". Foi o que fizemos capitaneando ou apoiando uma série de iniciativas transformadoras, como o G20 da OMC, o Fórum Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), o BRIC ou a Unasul.
Deixo aos historiadores uma avaliação do legado que ficará desse período em que, a meu juízo, vivemos uma importante mudança do peso e da capacidade de atuação do Brasil no mundo.

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Colaboraram Adelina Lapa, Fernanda Carneiro e Fernanda Góes

 
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