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Ellen Gracie - A visão de Ellen Gracie sobre eficiência do Judiciário brasileiro, custos dos processos, relação entre os três poderes, e participação do Brasil no cenário geopolítico mundial

2011 . Ano 8 . Edição 68 - 16/11/2011

Foto: Sidney Murrieta

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Bruno De Vizia – de Brasília

“O Judiciário é o mais transparente dos três poderes, não há nada a portas fechadas”

A Justiça brasileira está longe de ser uma unanimidade no país. Considerada lenta, cara e desigual por grande parte da população, teve sua atuação cerceada durante os anos de regimes autoritários, mas ganhou vigor após a Constituição de 1988. Contudo, o excesso de recursos nas diferentes instâncias judiciais brasileiras e as dúvidas de toda ordem que acabam por desaguar na Suprema Corte do país esperando definição têm gerado críticas à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão desde um excesso de atribuições até uma eventual “judicialização da política”.

Para a ministra Ellen Gracie Northfleet, entretanto, o judiciário brasileiro não ocupa espaços de outros poderes, age somente quando provocado, e tem evoluído a passos largos para dar mais celeridade aos julgamentos e maior acesso à Justiça para todos os cidadãos. Em seu sóbrio e amplo gabinete no Anexo II do STF, a ministra, nas vésperas de anunciar sua aposentadoria, recebeu a Desafios do Desenvolvimento para uma extensa conversa, na qual detalha sua visão sobre a eficiência do Judiciário brasileiro, os custos dos processos, a relação entre os três poderes e a participação do Brasil no cenário geopolítico mundial.

Desenvolvimento - Como o Judiciário brasileiro pode atuar no auxílio ao desenvolvimento econômico e social do país?

Ellen Gracie - O Judiciário participa do desenvolvimento do país e está presente em muitos questionamentos a respeito das políticas públicas. O Supremo Tribunal Federal, de modo muito particular, tem estado sempre presente na vida brasileira. Esta casa tem 200 anos, desde que começou com Dom João VI, e por aqui tem passado tudo o que acontece no país, desde a revolta da Vacina, com o Oswaldo Cruz (1904), recentemente a questão das células-tronco foi discutida aqui, questões políticas, os problemas dos Estados e os problemas federativos todos passam pelo Supremo. Ou seja, tudo o que acontece no Brasil passa de uma forma ou de outra pelo Supremo Tribunal Federal.

Desenvolvimento - Perpetua-se na população a ideia de que os cidadãos de maior renda têm mais acesso à Justiça, mais possibilidades de recursos, e julgamentos mais brandos. Em suma, há a percepção de que não somos todos iguais perante a Justiça brasileira. Como a senhora avalia esta imagem?

Ellen Gracie - Eu diria que a percepção é correta, porque, de fato, quem tem maior acesso à informação, a recursos financeiros, e pode contratar bons profissionais da advocacia, tem mais chances no processo. Os juízes devem equalizar as partes: a primeira tarefa do juiz é fazer com que as partes cheguem a um ponto em que ambas tenham condições de contraditar o que a outra diz. Mas isso é um projeto ideal, nem sempre é possível fazê-lo.

Veja que temos defensorias públicas no Brasil em número reduzido, alguns estados sequer têm defensorias públicas. Isto deixa que o cidadão que não tem recursos fique ao desamparo quando ele precisa, não apenas defender sua liberdade, em matéria criminal, mas também para defender seus direitos patrimoniais, ou para reclamar alguma arbitrariedade que lhe tenha sido cometida.


Perfil

A jurista, ministra e juíza Ellen Gracie Northfleet é natural do Rio de Janeiro. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, na mesma universidade, especializou-se em Antropologia Social. Em 1983 foi jurista em Residência da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e bolsista da fundação Fullbright, também nos EUA.

Foi diretora-fundadora da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio Grande do Sul OAB/RS entre 1986 e 1987; vice-presidente do Instituto dos Advogados do RS entre 1988 e 1989, e Procuradora da República entre os anos de 1973 a 1989.

É professora (licenciada) de Direito Constitucional na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e presidente-fundadora da Associação de Diplomadas Universitárias do Rio Grande do Sul, além de membro do Conselho Consultivo da Global Legal Information Network, e da International Association of Women Judges.

Tomou posse no cargo de ministra Supremo Tribunal em dezembro de 2000, e ocupou a presidência deste tribunal e do Conselho Nacional de Justiça no biênio 2006 – 2008.

 

Foto: Sidney Murrieta

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A grande preocupação que tem o Judiciário brasileiro – e esta é uma preocupação muito antiga – é o acesso à justiça. Por isso a gente tem ampliado tanto os serviços de justiça, e os temos estendido ao máximo possível, facilitando inclusive com os juizados especiais de pequenas causas, em que as pessoas podem aparecer sem advogado para resolver pequenas querelas, e também por meio da prática da conciliação, recentemente bastante desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é absolutamente necessário, quando se fala em acesso à justiça, que todo mundo compareça a juízo, e que se tenha um juiz para cada controvérsia.

O que se diz quando se fala em acesso a essa Justiça, com letra maiúscula, é que a justiça na verdade é uma tarefa de todos nós. Faz justiça aquele cidadão que respeita a faixa de pedestre, e fazem justiça, em última instância, os próprios julgadores. Mas as partes que estão em controvérsia conhecem todos os detalhes do porquê eles estão em desacordo. Nem todos estes detalhes, especialmente na área comercial, industrial ou de finanças, podem ser trazidos para uma questão judicial, eles são às vezes segredos de negócio detidos pelas partes, e a decisão do juiz nesse caso é tomada com muito sacrifício, e será sempre uma decisão imperfeita, exatamente porque ele não tem a oportunidade de conhecer todos os detalhes.

Mas se as partes se sentarem e puderem rever todas as motivações que levaram aquela controvérsia, elas tendem, ao longo do tempo, a encontrar um ponto médio em que concessões são feitas de uma parte e de outra, e que satisfaça ambos. Então, quando se consegue fazer este trabalho de conciliação, temos uma solução de maior qualidade do que a solução judicial. Não que os juízes não se esforcem muito, mas intrinsecamente é mais produtivo fazer um acordo ou conciliação, até porque a execução é imediata, se a pessoa construiu ou ajudou a construir a solução, ela imediatamente vai aderir ao cumprimento daquela avença.

Desenvolvimento - O que fazer para mudar este sentimento de favorecimento dos cidadãos de maior renda? Há algum plano neste sentido no Judiciário, ou a tarefa é simplesmente expandir a atual estrutura?

Ellen Gracie - Mais da mesma coisa não resolve, esse mero incrementalismo não é a solução para o Judiciário. Isso vem sendo discutido com mais eficiência a partir da criação do Conselho Nacional de Justiça [em 2004]. Até então, o Judiciário brasileiro não tinha um centro de pensamento estratégico, e cada tribunal era independente, de modo que cada unidade da federação reservava os recursos que entendia adequado para seu sistema judiciário, e nós não tínhamos uma centralização desse pensamento estratégico. O CNJ oferece esta possibilidade, e é quem tem lançado estas grandes linhas.

 

Mas como é que vamos chegar a toda população? Por meio de uma difusão muito criteriosa de todas estas formas de fazer justiça. Por meio das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro, por exemplo, até a presença de defensores e promotores de justiça, e de juízes conciliadores, para que no futuro, em um momento que espero não ser muito distante, os cidadãos realmente possam tem uma sociedade mais pacífica. O objetivo do poder Judiciário é a pacificação social. Então toda essa violência social que assistimos decorre, em boa parte, da ausência desses serviços.

Desenvolvimento - O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo (segundo o índice de Gini, que mede a desigualdade social). Como a Justiça brasileira é afetada por esta desigualdade?

Ellen Gracie - O Brasil é um dos países com grande índice de desigualdade, embora o tenha reduzido de maneira muito dramática nos últimos anos. Como é um problema extremamente antigo, não podemos resolvê-lo em um passe de mágica, e será necessário algum tempo até que a gente tire toda a população da linha de miséria, e que essa população possa subir para as classes médias, e ter especialmente um bom acesso à educação e às oportunidades de emprego.

Foto: Sidney Murrieta

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O Judiciário é afetado por esta desigualdade, na medida em que temos a consciência de que não estamos atendendo toda a população. E não atendemos não só porque as pessoas, muitas vezes, não têm acesso a um advogado, mas porque muitas vezes as pessoas sequer tem esclarecimentos a respeito dos direitos que têm.

Houve há algum tempo um esforço nosso de divulgação de direitos básicos, do dia a dia do cidadão, e isso se fazia por meio de rádio-novelas da Rádio Justiça, que ilustravam pequenas historietas populares. Casos uma questão de aluguel, de guarda de filhos, enfim, estas querelas do dia a dia eram dramatizadas. O resultado foi muito positivo, naquela época tivemos um grande retorno, e já tive a oportunidade de propor, em outros países, recentemente em uma reunião em Kuala Lumpur, o mesmo modelo. Esta forma de comunicação pelo rádio é muito popular, as pessoas geralmente levam um rádio consigo quando estão trabalhando, se deslocando, e deste modo podem, de uma maneira muito lúdica, tomar conhecimento de alguns mecanismos que existem e que estão à sua disposição, e especialmente dos direitos que lhe são assegurados.

Desenvolvimento - Em fevereiro de 2010 o Ipea e o Conselho Nacional de Justiça firmaram acordo para realização de pesquisa sobre os custos dos processos judiciais. Como a ministra avalia esse tipo de parceria?

Ellen Gracie - As interações entre direito e economia são absolutamente necessárias, porque o direito não existe em uma nuvem, não é uma coisa etérea, que não tenha correlação com a realidade. Ele influencia diretamente a economia, e é influenciado pela economia. Então existe uma interação necessária, existe uma escola norteamericana inteiramente dedicada a isto, e nós trouxemos para o Brasil a discussão, realizamos em 2008 um seminário justamente para diminuir esta distância entre as duas disciplinas, uma distância inexistente, e causada por incompreensão.

Desenvolvimento - Em relação ao custo dos processos, temos uma Justiça cara?

Ellen Gracie - Durante muito tempo, nós juízes e nós do mundo jurídico, atuamos como se vivêssemos em uma nuvem, e, portanto, não nos preocupávamos com as questões materiais ligadas ao Judiciário. Recebíamos um orçamento, encaminhado pelo Poder Executivo, e tínhamos relativamente pouca margem de manobra além daquilo. Então se o orçamento era bom, mantinha-se um tribunal funcionando bem. Se o orçamento fosse diminuído, este tribunal certamente teria seu funcionamento prejudicado. Mas os juízes não consideravam como parte de sua função atuar no sentido de demonstrar precisar de mais recursos para isso ou para aquilo. Esta foi nossa prática durante toda a República, e no período anterior.

Mais recentemente, e aí volto à criação do CNJ, os magistrados passaram a entender que precisam tomar nas suas mãos a administração do Judiciário, ele exige administração, não é só matéria jurídica. Precisamos saber quanto custa um processo. Antigamente alguém que falasse nisso era imediatamente estigmatizado, sob o argumento de que a Justiça não tem preço. Ora, a Justiça não tem preço, a liberdade de alguém não tem preço, mas tem custo. É preciso pagar o juiz, o promotor, etc, e tudo isto tem custo, e quem paga é o povo. Então é preciso ter muito clara esta ideia para que nós possamos retornar a quem nos paga o salário um serviço de boa qualidade.

Então, a partir de um determinado momento, os juízes se deram conta de que são responsáveis pela administração, e que precisam traçar prioridades, precisam estabelecer metas, enfim, adotar metodologia que já é disponível em outras áreas de administração pública e privada, mas que não eram utilizadas no Poder Judiciário. Por isso vejo como um demonstrativo muito positivo esta parceria do CNJ com o Ipea, para que realmente possamos calcular o preço do processo, que vai desde o papel que se utiliza, aos toners de impressoras, ao salário dos juízes, aos deslocamento, aluguel de imóveis, e tudo isso deve ser inserido no custo dos processos.

Eu diria que no Brasil o processo não é muito caro. Não saberia citar um valor preciso, mas aqui no Brasil o acesso a advogados é mais possível do que em outros países, como os Estados Unidos e Inglaterra, em que os honorários de advogados são extremamente elevados, e a menos que a pessoa conte com assistência judiciária, poucos conseguem arcar com as despesas. Além disso, no exterior, e a Inglaterra é também exemplo, as custas judiciais são caras, e são acrescidas a cada instância que se sobe. Lá, se eu tenho uma sentença desfavorável em primeira instância e ainda sim insisto em recorrer, se perder na segunda instância eu pago as custas em dobro, o que desestimula o recurso fútil. No Brasil todo mundo quer chegar até o Supremo Tribunal Federal, a quarta instância.

Foto: Sidney Murrieta

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Desenvolvimento - Em maio de 2009 a ministra foi indicada para representar o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC). Como a ministra avalia a evolução do país nas negociações neste órgão?

Ellen Gracie - Eu diria que é um dos fóruns mais importantes para um país em franco desenvolvimento como o nosso, porque as normas que regem o comércio, especialmente em um mundo globalizado, são determinantes para todo nosso intercâmbio. De modo que todas as questões de protecionismo, dumping, e as questões que às vezes as grandes economias tentam impor à economias de menor poder têm um fórum adequado de solução na OMC. E esta organização mantém um sistema de solução de controvérsias, que é como se fosse uma primeira e segunda instâncias judiciárias. Não é propriamente um tribunal, mas atua como se fosse, e as partes signatárias do tratado se submetem às decisões destas instâncias. Foi para lá que o Brasil levou a questão [com os Estados Unidos, sobre subsídios agrícolas] do algodão, e a disputa da Embraer com a empresa canadense [Bombardier].

A solução destas controvérsias é feita em duas instâncias: há um primeiro julgamento, e depois há uma corte de apelação. Foi para esta corte, para uma vaga aberta com a retirada de nosso representante, Luis Olavo Batista, que foi apresentada minha candidatura. Mas, ao final, a organização entendeu que deveria haver uma rotação de países americanos, e neste sentido deu a vaga ao candidato mexicano, que é uma pessoa extremamente qualificada, como todos os outros candidatos que se apresentaram.

Particularmente vejo aí uma dificuldade para o Brasil e para a América do Sul, porque até então a distribuição regional das cadeiras no órgão de apelação fazia uma distinção entre América do Norte e América do Sul. A América do Norte sendo representada desde o início pelos Estados Unidos, uma vaga para a União Europeia, outra para a Ásia, uma da China, que é também permanente, uma para a África e outra para a América do Sul, que era ocupada pelo Brasil com professor Luis Olavo. Agora esta vaga foi transferida para o México, que embora seja um país latinoamericano, faz parte da América do Norte, e tem uma economia muito atrelada a dos Estados Unidos. Com esta decisão vejo que a América do Sul ficou menos representada do que deveria ser, de acordo com as normas anteriores.

Desenvolvimento - Mas é possível reconquistar este espaço, e até ampliá-lo?

Ellen Gracie - Não só numa posição destas, que é eminentemente jurídica, mas em todas as outras questões. O Brasil está crescendo tanto e tem uma representatividade tão grande, que ele precisa de fato ocupar um número maior de posições nos organismos internacionais. Este fato que aconteceu na OMC tem se repetido em outras organizações, com uma série de chamadas derrotas do Brasil em candidaturas. Não se trata propriamente de derrotas, mas de encaminhamento do país exigir uma posição que seja compatível com sua dimensão, não só econômica como populacional.

Desenvolvimento - Em relação ao ensino de Direito Internacional e formação de quadros técnicos, estamos preparados?

Ellen Gracie - Creio que não. Precisamos incentivar grandemente os estudantes, os professores e as faculdades de Direito para que orientem o seu currículo de uma maneira mais objetiva para este grande comércio exterior. Este é um tipo de litígio altamente técnico, não é algo que seja corrente nos escritórios de advocacia, e o Brasil, nestas grandes demandas, tem se valido basicamente de escritórios estrangeiros. Como estamos crescendo, e pretendemos crescer muito mais, vai ser necessário ter um corpo próprio de pessoas qualificadas para enfrentar este tipo de controvérsia.

Desenvolvimento - Após extensa carreira acadêmica, no Brasil e no exterior, como a ministra vê a relação entre o ensino do Direito e Economia no Brasil hoje?

Ellen Gracie - Vejo que já avançamos bastante, temos hoje uma série de oportunidades de verificar esse intercâmbio necessário entre direito e economia. Ao meu tempo de faculdade, os currículos e a formação acadêmica eram excessivamente formalistas, ou seja, havia uma preocupação muito maior com o processo do que com o direito substantivo. E isso tem explicação sociológica: em um regime autoritário, fechado, é muito mais seguro, ou menos arriscado, ganhar uma ação, especialmente contra o governo ou as pessoas que estão no poder, por meio de desvios processuais, de questões técnicas, de detalhes técnicos, porque aí se evita entrar em choque no mérito.

Em todos os regimes militares a gente verifica que há um crescimento do processualismo. Foi assim na Itália, de quem nós herdamos boa parte de nosso sistema processual, e na nossa origem portuguesa, especialmente por meio do direito canônico e das formas da Inquisição, em que também as formalidades eram altamente desenvolvidas e requintadas.

Depois, na época do fascismo (1922- 1945) a Itália experimentou t um enorme crescimento em seu direito processual, e esse direito processual foi herdado pelo Brasil, pois para cá vieram muitos professores italianos no pós-guerra. Aqui já vivíamos a ditadura de Vargas (1937- 1945), e novamente, com o regime militar (1964-1985), se verificou fases nítidas de crescimento da processualística.

Há um grande prejuízo, pois se isso é uma estratégia de sobrevivência para aqueles que precisam militar no foro, nestas circunstancias difíceis, existe um prejuízo muito grande para a clareza do Direito, porque ele fica enevoado em uma série de exigências ritualistas e formais, e não se enfrenta realmente o que é o cerne da controvérsia. Com isso temos hoje no Brasil muitas matérias que não se sabe bem como é que foram decididas, se é que foram decididas, se a decisão é válida, etc. Já temos um bom tempo de retorno da democracia, e estamos corrigindo isso como país.

Conseguimos, com a aprovação da Emenda Constitucional 45, estabelecer a força vinculante do precedente judicial. Conseguimos também estabelecer a possibilidade do STF declarar a repercussão geral de uma questão, ou seja, impedindo o que acontecia até ontem, com centenas de milhares de processos sobre a mesma questão de direito, que era repetidamente resolvida em todas as instâncias nacionais, e subia, em recurso extraordinário, ao STF. Para termos ideia de quanto isso é nocivo, em 2007 chegamos a ter 150 mil processos distribuídos na Casa.

A partir de 2008 começamos a aplicar a sistemática da repercussão geral, pela qual se agrupam os processos do mesmo tipo, da mesma controvérsia. Quando há um bloco, podemos reunir e declarar que aquilo tem repercussão geral, ou seja, não para uma controvérsia que diga respeito a dois particulares apenas, mas para uma questão mais ampla que interesse a todos os demais, a todos os contribuintes que pagam um determinado imposto, por exemplo, ou a todos os aposentados que recebem um determinado benefício, em outro exemplo.

O tribunal então começou a trabalhar de uma maneira bem mais racional, e estabelecemos algo que foi fundamental para tornar viável esta reforma: um plenário virtual. Este é na realidade uma intranet (rede virtual interna) dos ministros. Em vez de nos reunirmos fisicamente e discutirmos processo por processo se há ou não repercussão geral, nós fazemos isso por meio eletrônico. Lançamos nossos votos, e cada relator diz as razões porque considera que se há ou não repercussão geral, e os demais colegas se manifestam também.

Então fomos reduzindo o número de processos, e atualmente estamos com cerca de 30 mil processos. Há uma marcada tendência de diminuição, e o STF deve chegar aquele ponto em que haverá um número tolerável de processos, que possam ser razoavelmente apreciados pelos julgadores.

Desenvolvimento - Ainda assim é um número alto, pois seus pares na suprema corte norte-americana julgam, em média, pouco mais de uma centena de processos por ano. Qual a origem deste grande número de processos avaliados por um magistrado no Brasil?

Ellen Gracie - É até uma piada recorrente, toda vez que mencionamos no exterior que julgamos cem mil, 150 mil processos por ano, as pessoas pensam que cometemos um engano de tradução, que confundimos hundred (centena) com thousand (milhar). Esta anedota demonstra o quanto não era viável este sistema, que era uma falência anunciada. Na Constituição de 1988 se extinguiu o poder desta Casa de fazer o que na época era chamado de arguição de relevância: só as causas consideradas relevantes eram trazidas a julgamento para o STF, e esta análise da relevância era feita de uma maneira bastante simplificada, como é agora a nossa repercussão geral.

Quando na Constituição de 1988 esse poder foi retirado do STF, podia-se imaginar que com o decurso dos anos haveria um acúmulo de processo desta ordem. Mas estamos, desde 2007, em condições de começar a abater este grande passivo formado em quase vinte anos.

Desenvolvimento - É possível julgar com qualidade com tantos processos simultâneos?

Ellen Gracie - O número de casos é muito grande, e isso causa muitas despesas e custos, há a necessidade de contratar mais servidores, de mais computadores, salas e prédios, e tudo. Mas a questão de direito pode ser a mesma para 50 mil processos. Um exemplo é a questão da correção do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) era uma matéria que envolve todas as pessoas que tem uma carteira de trabalho assinada, e que eventualmente poderiam [os processos] se multiplicar por este número.

Felizmente conseguimos resolver aqui de uma maneira a extinguir este tipo de demanda antes que ela surgisse, antes que houvesse essa proliferação tão grande. Mas sempre as pessoas esperam que a reforma dê resultados instantâneos e imediatos. Isso não é possível, pois temos um passivo para tratar, e este precisa ser analisado caso a caso. Mas pode-se fazer boas decisões? Digo que pode, e fazemos boas decisões, e analisamos com extrema minúcia as causas que são muito relevantes, e as causas que são repetitivas recebem o mesmo tratamento. Eu posso decidir sobre a alíquota de um imposto hoje, e amanhã, o processo que vier, os dez ou vinte processos que vierem sobre a mesma matéria serão decididos do mesmo jeito, ou seja, não vai me exigir um novo esforço.

Mas há questões de grande interesse social, cito por exemplo nossa discussões sobre as uniões homoafetivas, em que cada um dos ministros realmente se debruça sobre o tema, analisa, lê, faz compartivos com o direito internacional, dentre outros. Acho que fazemos justiça de boa qualidade, sei que é difícil fazer elogio próprio, mas não o faço a mim, faço ao tribunal e meus colegas, pois fazemos uma justiça de boa qualidade em condições difíceis, porque realmente é uma preocupação muito grande esta pilha [de processos].

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Fomos reduzindo o
número de processos, e
atualmente estamos com
cerca de 30 mil processos.
Há uma marcada
tendência de diminuição,
e o STF deve chegar aquele
ponto em que haverá
um número tolerável de
processos, que possam ser
razoavelmente apreciados
pelos julgadores

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Desenvolvimento - O próprio governo é responsável por mais de 90% dos processos que chegam ao STF. Qual a origem desta disfunção? O que fazer para minimizá-la?

Ellen Gracie - Passamos por um período de altíssima inflação no campo da economia, e neste período era muito proveitoso, era muito oportuno alguém ser devedor, e protelar ao máximo possível o pagamento de suas dívidas. Isso era feito, muitas vezes, através do juízo, ou seja, o juízo era instrumentalizado para que os devedores não pagassem seus compromissos.

Um destes devedores é exatamente o poder público, nas várias esferas: município, estado e União, que protelavam os pagamentos, fazendo com que processos se prolongassem na justiça, quase que indefinidamente, o que é facilitado pelo processualismo que mencionei anteriormente.

A quantidade de recursos existentes no Brasil não se verifica em lugar nenhum do mundo. Nós temos uma possibilidade de enfrentar qualquer decisão interlocutória do juiz, ou seja, quando o juiz dá um despacho qualquer de mero expediente, a parte já pode ingressar com algum pedido, ou pedir uma retratação ou uma alteração daquela decisão. Isto é uma coisa que não vemos no direito internacional: as decisões interlocutórias, que são as que não são finais, são, em geral, irrecorríveis, e só no final do processo, quando vem a sentença, se examinam inclusive questões processuais prévias, o que faz com que tudo tenda ao resultado de mérito, e não fique trancado nas questões intermediárias.

Desenvolvimento - Com a criação da TV Justiça e sua transmissão em grande parte da grade das televisões a cabo do país, os julgamentos do Supremo, em especial os de maior repercussão social, começaram a ser acompanhados por um número crescente de pessoas, muitas delas não ligadas ao universo jurídico. Como a ministra avalia este fato? É possível avaliar o impacto destas transmissões na formação, no pensamento e julgamento de juízes em instancias de primeiro, segundo e terceiro graus?

Ellen Gracie - Eu acho que tem uma influência muito grande, e a TV Justiça, como tudo, tem lados positivos e negativos. Se quisermos enfatizar apenas os aspectos positivos, eu diria que ela cumpre uma função educacional muito importante. Porque não só ela dá acesso a todos os cidadãos, que podem assistir pela televisão uma sessão do Supremo Tribunal – o que causa surpresa em nossos visitantes estrangeiros – mas também porque ela serve a propósitos declaradamente educacionais: eu sei de vários professores de direito preparam seus alunos para determinadas questões que já estão agendadas para uma ocasião futura. Então os alunos assistem juntos à transmissão da TV Justiça, e fazem comentários posteriormente, de modo que é um instrumento educacional útil.

O lado negativo é a excessiva exposição dos ministros da Casa, que pode nos causar algum problema, mas no geral há um retorno muito bom. E não só são as pessoas ligadas ao direito, mas também pessoas que não são ligadas a este universo, e que começam a acompanhar com certa frequência. Creio ser muito importante que a população possa assistir debates de ideias, às vezes bastante acalorados, entre colegas que tem opiniões divergentes sobre uma matéria, e que sustentam suas posições, dão as suas razões, aceitam o contraponto do colega, e depois, democraticamente, contam os votos e alcançam o resultado. É importante que o povo assista a este exercício de dialética democrática.

Desenvolvimento - Em períodos de eleição, e mesmo fora destes, a quantidade de processos de natureza política – a exemplo da decisão sobre fidelidade partidária e Ficha Limpa – cuja definição se deu pelo STF, geram reclamações sobre a ocorrência de uma suposta “judicialização da política”. Como a ministra avalia esta possibilidade?

Ellen Gracie - Existe certa incompreensão a respeito disso, quando se diz que o Supremo assume encargos demais, ou ocupa espaços do próprio Legislativo. Não é verdade, pois o Supremo, e o Judiciário todo, não têm uma atuação ex-oficio, ou seja, precisamos de provocação de alguma pessoa que esteja legitimada a exigir a atuação do tribunal. Uma vez feito isso, nenhum juiz pode se furtar a cumprir sua tarefa, que é definir a questão legal que lhe foi trazida.

O que acontece bastante, recentemente, é que os partidos políticos no Congresso muitas vezes não conseguem obter uma maioria necessária para a aprovação de determinadas medidas, ou certas medidas que são aprovadas desagradam a minoria derrotada, e são estes partidos políticos, geralmente, que trazem a questão ao reexame do STF. Tudo está perfeitamente previsto dentro da nossa Constituição, mas há questões que o Supremo poderia, em um melhor funcionamento de instituições, ser dispensado de analisar.

Esse foi o caso, por exemplo, do direito de greve dos servidores públicos. Passados vinte anos da edição da Constituição este direito não tinha sido regulamentado, e as greves no serviço público se sucedendo durante todo este tempo, sem qualquer regulamentação. O que fez o Supremo? Para não ser acusado de legislar, o Supremo apropriou a legislação que já havia, que se aplica aos empregados do setor privado, e enquanto não haja uma nova regulamentação específica, votada pelo Congresso Nacional, definimos que se aplicam as mesmas regras em tudo o que couber.

Há outros exemplos, como a questão do aborto, que volta e meia é trazida ao STF, e ao respeito da qual existe um sem-número de propostas tramitando no Legislativo, mas nenhuma delas em andamento acelerado ou em condições de virar logo uma lei.

Outra foi a questão da aplicabilidade ou não da chamada ficha-limpa. O que veio para nós foi saber apenas se aquela legislação, perfeitamente válida, aplicava-se ou não às eleições do ano passado, ou seja, se esta legislação aplicava-se às eleições realizadas no próprio ano de sua edição. Pois existe uma norma constitucional que diz que as regras que alterem o processo eleitoral devem ter um ano de antecedência, para não causar surpresa a quem vai participar das eleições.

O tribunal dividiu-se, e eu fiquei na ala vencida, por entender que a exigência de uma ficha limpa não é uma inovação trazida pela lei, mas já era uma exigência constitucional, que está inserida há muito tempo na Constituição, e o que a lei fez foi explicitar. Nós, a corrente vencida, não entendíamos nisso uma alteração de processo eleitoral, ou seja, meios e modos pelos quais os candidatos se apresentam, são escolhidos pelos partidos, requerem sua inscrição junto ao Tribunal Regional

Eleitoral, e depois são procedidas as eleições, apurados os votos. Esse processo, no que diz respeito ao Judiciário, se encerra com a diplomação que é feita pelos tribunais regionais eleitorais ou pelo Tribunal Superior Eleitoral. Este é o processo eleitoral, com todas as suas etapas, e a exigência de uma qualificação dos candidatos, como a de não terem determinado tipo de ocorrência em seus registros, é algo que não diz respeito ao processo, no nosso entendimento. Mas prevaleceu a tese contrária, de que também seria necessário respeitar nesse caso a anualidade. A lei portanto, devido a esta última decisão do supremo, é válida para as próximas eleições.

Foto: Sidney Murrieta

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Desenvolvimento
- Como a ministra avalia nos últimos anos a evolução da relação entre os três poderes?

Ellen Gracie - Vejo com muitos bons olhos a democracia brasileira, que está evoluindo com tranqüilidade. Ainda há pouco comentava que a Constituição de 1988 foi muito criticada, porque ela foi elaborada em um período de efervescência democrática, em que todo mundo queria colocar tudo dentro da Constituição, todos os direitos e mais alguns. Mas nem tudo era viável, muitas coisas eram meramente programáticas, e o Congresso ficou com o grande ônus de ter que regulamentar centenas de direitos nossos, então a Constituição recebeu todas estas críticas, que são merecidas.

Mas por outro lado precisamos também levar em conta que nestes vinte anos ela nos assegurou uma democracia estável, sem maiores percalços, e que atravessou períodos muito difíceis. Quem é que consegue sobreviver a uma inflação aos níveis que nós tínhamos no governo Sarney [José Sarney 1985-1990]? São poucos os países que não se desorganizam totalmente nesta situação. Quem é que consegue sobreviver a uma grande decepção nacional como foi o falecimento do Tancredo Neves [1985] às vésperas da posse? Depois tivemos um impeachment que transcorreu dentro das regras, na maior tranqüilidade, e a democracia brasileira tem sido reforçada. Isto se deu, é necessário que se diga, porque há um marco constitucional que é sólido, apesar dos defeitos periféricos, e também porque o país aderiu à democracia, a população aderiu à democracia de maneira muito convicta.

Não se vê atualmente um poder excedendo aos seus limites, ou querendo usurpar o que é tarefa do outro. Como mencionei, nós do poder Judiciário somos acusados de legislar, mas o fazemos no exercício da nossa jurisdição, por provocação, na maioria das vezes de alguém que vem do mundo político. O poder Executivo, com relação ao Judiciário, tem sido extremamente correto no intercâmbio, posso dizer isso do meu período de presidência [do STF, em 2006- 2008], posso dizer de antes e de agora, sem que haja choques. Há por vezes interesses diversos, o poder Executivo pode ter todo o interesse em defender a construção de uma determinada obra pública, que está sendo contestada por outra parte, e afinal o poder Judiciário decidir que não deve ser construída. Mas isso não é uma questão de invasão de atribuições de uns sobre os outros, são divergências normais, que fazem parte do equilíbrio democrático.

Desenvolvimento - Pouco após assumir o governo em seu primeiro mandato, o presidente Lula mencionou a necessidade de controle externo do Judiciário, com intuito de abrir a “caixa preta”. Como a ministra avalia a possibilidade de controle externo do judiciário?

Ellen Gracie - O controle externo do Judiciário já existe por meio do CNJ, no qual participam não apenas magistrados, mas também membros do Ministério Público, representantes da sociedade indicados pelo Senado e pela Câmara, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil. Isto é o que se chama de controle externo, ou seja, que não é exercido exclusivamente por magistrados. Em muitos países o controle é exercido apenas por magistrados. Aqui no Brasil optou-se por esta composição mista, que reúne juristas indicados por vários órgãos além do Judiciário.

Pela minha passagem pelo CNJ posso dizer que esta participação é muito bem vinda e oportuna, porque são pessoas que nos trazem a experiência de outras atividades, a atividade da advocacia, da promotoria, e também preocupações sociais que vem trazidas por meio do Congresso Nacional. Cada representante tem um voto.

O que acontece muitas vezes é que o Conselho, como qualquer órgão da administração pública, está também submetido a controle judicial. E por vezes decisões do Conselho são questionadas perante o STF, que é o órgão que tem a competência para isso. E muitas vezes atitudes e decisões do Conselho são censuradas pelo Supremo, de novo, como parte deste grande mecanismo democrático, em que há freios e contrapesos em que cada instituição, de certa forma, promove o controle sobre as demais, e o STF, de certa forma, no pico desta pirâmide.

Desenvolvimento - Então na sua avaliação não há “caixa preta” da Justiça?

Ellen Gracie - A Justiça brasileira é tão transparente que nós julgamos em público, damos nossas razões em públicos, o que não acontece na maior parte dos países. Quase todos os países as sessões são secretas, as deliberações são mantidas em sigilo, e em muitos lugares sequer são assinadas, não se sabe quem é que participou daquele julgamento. Muitas vezes por questões de segurança, em certas cortes internacionais, por exemplo, isto é praxe. A decisão é colegiada e não há exposição individual de nenhum de seus membros.

Aqui no Brasil o Judiciário é extremamente transparente, pois nós sempre decidimos em público, sempre publicamos nossas decisões, que podem ser lidas e criticadas por qualquer pessoa. Em matéria de transparência o STF tem até dificuldade de avançar mais, porque tão logo decidimos alguma coisa no plenário, isso é imediatamente comunicado ao nosso setor de imprensa, que cuida de fazer um material de divulgação em termos mais acessíveis, e colocar imediatamente no site, então todos sabem o que está sendo decidido praticamente na mesma hora da decisão. A transmissão praticamente imediata possibilita exatamente isso, ou seja, o cidadão está dentro do tribunal assistindo.

O que talvez acontecesse era um desconhecimento da própria mecânica administrativa dos tribunais, talvez não houvesse clareza com relação a orçamentos, aplicação de recursos. E aqui e ali, como em qualquer outro lugar, foram verificadas algumas irregularidades que estão sendo devidamente apuradas e tratadas. Mas não vejo como poder ser mais transparente do que isso. Até nossas sessões administrativas são públicas, não há nada que seja escondido. Eu diria que o Judiciário é o mais transparente dos três poderes, não há nada a portas fechadas.

 
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