Maluco beleza - Uma experiência bem-sucedida de reintegração de doentes mentais à sociedade |
2005. Ano 2 . Edição 8 - 1/3/2005 O hospital Dr. Cândido Ferreira, de Campinas, tem sucesso na experiência de reintegração à sociedade de doentes mentais que antes viviam confinados
Usuários trabalham na produção de papel reciclado, em uma das 11 oficinas do Cândido Ferreira Quem sintoniza a rádio Educativa FM de Campinas (101,9 MHz) tem a oportunidade de conhecer um programa diferente. É o Maluco Beleza, que está no ar desde maio de 2002. Com uma hora de duração, ele trata de assuntos polêmicos, como a luta para acabar com os manicômios no Brasil ou as drogas. É produzido por pessoas com transtornos mentais, atendidas pelo Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, de Campinas, cidade do interior paulista, e registra boa audiência. Essa é uma das iniciativas do pessoal do hospital, fundado em 1924 como Hospital de Dementes Pobres do Arraial de Souzas, que mudou de nome e, a partir de 1990, também de rumo. Aderiu ao movimento da Reforma Psiquiátrica. A proposta desse movimento é restringir ao máximo a internação de doentes mentais e proporcionar sua reintegração à sociedade, combatendo preconceitos. Produtores e locutores do Maluco Beleza não vivem no hospital, mas com suas famílias ou em casas que funcionam como repúblicas estudantis. Sua atividade como radialistas não é apenas uma terapia ocupacional, mas parte de um processo de inclusão social e de resgate da cidadania. Eles participam da Oficina de Comunicação do Cândido Ferreira, que também edita um jornal mensal chamado Candura, "um espaço aberto para um novo pensamento", com tiragem de quatro mil exemplares. A Reforma Psiquiátrica defende "o reconhecimento dos direitos fundamentais dos portadores de sofrimento mental, enquanto pessoas e cidadãos, e o respeito à vida e à convivência na diversidade". O movimento é inspirado no exemplo do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que nos anos 70 revolucionou a medicina em sua área ao extinguir manicômios e inserir os internos em seu núcleo social. Para o movimento que defende a Reforma Psiquiátrica, a internação, em hospitais, asilos ou hospícios, isola as pessoas com doenças mentais da família, do trabalho e da sociedade - o que faz com que percam as referências de vida e qualquer possibilidade de reintegração ao mundo. O atendimento clínico e terapêutico deve ser dado em centros especializados. Em Campinas há sete Centros de Atenção Psicossocial (CAP), e cada um atende 200 pessoas por dia, três deles sob supervisão do hospital. História A história da experiência campineira é exemplar. Em 1993 o Cândido Ferreira foi considerado pela Organização Mundial da Saúde um hospital de referência no tratamento de saúde mental. Tudo começou em 1990, quando a instituição, filantrópica, tratava os doentes mentais de maneira convencional e estava praticamente falida. Então uma nova equipe assumiu sua direção. Foi feito um convênio com a Prefeitura Municipal de Campinas, e verbas do Sistema Único de Saúde (SUS) passaram a entrar no caixa. Mais que isso, foi alterada a concepção de tratamento de doentes mentais. Liderada pelo psiquiatra William Valentim, a equipe começou a extinguir a internação dos pacientes. "Quando chegamos, havia cerca de 190 pessoas vivendo em nossas instalações. Começamos a tentar transferi-las para suas famílias. Em muitos casos os doentes não foram aceitos e em 1991 fizemos a primeira experiência de montar uma residência externa, alugada, mobiliada e mantida pelo hospital, para que eles vivessem ali", diz o psiquiatra Nobusou Oki, superintendente do Cândido Ferreira. Segundo ele, a grande virtude dessas moradias é permitir a integração com a vizinhança. "A vida confinada num hospital psiquiátrico representa a privação da vontade e se limita à rotina de aguardar a hora da medicação, da comida ou de dormir." A convivência com vizinhos, com o dono da padaria, com a faxineira, ao contrário, é estimulante. Aos poucos, aqueles que deixam o hospital voltam a ter desejos, a sonhar com uma vida diferente, e isso facilita o processo de recuperação. Atualmente, o Cândido Ferreira, cuja sede fica no distrito de Souzas, a 10 quilômetros do centro de Campinas, atende aproximadamente 1,2 mil pessoas, mas apenas um pequeno grupo, cerca de 80 doentes, é interno. Estes têm problemas mais sérios, deficiências clínicas ou estão sendo submetidos a tratamento de dependência de drogas ou álcool. Com a nova orientação, a camisa-de-força, o tratamento com choques elétricos ou a prática de lobotomia foram banidos. Os funcionários não usam uniformes nem crachás. Dessa forma, evitam-se as distinções entre as pessoas que ocupam o prédio. No princípio foi difícil superar os preconceitos, mas hoje os funcionários têm orgulho de participar da equipe e o hospital tornou-se uma espécie de comunidade terapêutica. A instituição mantém 31 moradias, onde vivem 130 pessoas com problemas mentais. Algumas até tentaram voltar para casa quando foram liberadas, mas por conflitos ou pelo gosto de experimentar a independência, preferiram se mudar para as repúblicas. Quem recebe tratamento no hospital é chamado de "usuário", e não de paciente. ProjetosUma das primeiras providências da equipe, quando houve a mudança de rota, foi localizar a família dos internados. E essa não foi uma tarefa fácil. Em alguns casos, foi necessário descobrir a identidade da pessoa, pois muitos haviam sido recolhidos nas ruas, transferidos de um hospício para outro e não tinham nenhuma identificação. Nesse processo aconteceram histórias inesperadas. Uma delas se deu com Rita de Cássia, uma interna que não lembrava seu nome nem coisa alguma sobre seu passado. Ela gostava de pintar e participava de uma oficina de arte. Um dia, enquanto pintava, seu nome lhe veio à mente. Depois, numa ocasião em que exibiu sua obra numa exposição em Santos, no litoral paulista, viu um barco e disse ao monitor que a acompanhava que a embarcação pertencia a seu tio. Pronto. Uma funcionária do hospital localizou sua família, numa vila perto de Guarujá, e a moça, que estava completamente perdida, hoje vive com o pai e o irmão. André Luiz Nery, de 35 anos, entrou no Cândido em 1989. Hoje participa ativamente da luta antimanicomial, vai a reuniões e tem um projeto pessoal: está guardando dinheiro para ir a Trieste, na Itália, conhecer de perto a obra de Basaglia. Ele vive numa casa com outras quatro pessoas - e as tarefas de manutenção do lugar são divididas entre todos eles. Luiz Buzinario é o cozinheiro. Há um companheiro mais problemático, que tem dificuldade de integração, porque, como explica Nery, "ficou muito prejudicado pelos choques elétricos que levou quando estava internado". Este recebe atenção especial da terapeuta do Cândido, que visita a residência pelo menos uma vez por semana. A limpeza mais pesada é feita por uma faxineira, duas vezes por semana. Os cinco dividem essa e outras despesas. Podem se dar esse conforto porque recebem um benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) - um salário mínimo que o governo libera, desde agosto de 2003, quando foi criado o auxílio-reabilitação psicossocial para pessoas com transtornos mentais que saíram de instituições psiquiátricas. A criação desse auxílio resultou da pressão do movimento antimanicomial, que já tinha conquistado, em 2002, o reconhecimento dos Serviços Residenciais Terapêuticos, que permite usar verbas do Sistema Único de Saúde (SUS) para manter moradias como essa onde vivem Nery e Buzinario. "Faço a terapia na oficina de papel reciclado para não cair na vida", diz. Antônio Moreira Filho atua na oficina de carpintaria, responsável pelo acabamento final dos trabalhos de marchetaria, delicadas caixas decoradas. Faz questão de posar para a fotografia ao lado de peças prontas para serem enviadas à loja ou a algumas das feiras onde é vendido o artesanato produzido no Cândido Ferreira. Uma vez por semana a equipe toda se reúne. "Fazemos a avaliação do trabalho, definimos como será feita a partilha da receita, levando em conta a quantidade de horas trabalhadas e a qualidade do serviço", explica a nutricionista Daniela de Lima Pereira, coordenadora da oficina. Quem cuida do estoque de mercadorias é a usuária Olga de Jesus dos Santos, que mora com a família. Faturamento O hospital mantém uma espécie de filial no centro da cidade, onde também funcionam oficinas de vitral plano, velas e gráfica, com 50 trabalhadores, e a loja Armazém das Oficinas, um espaço para a comercialização das mercadorias produzidas. O faturamento mensal da loja é da ordem de 15 mil reais, mas o artesanato também é vendido em feiras como a Gift Fair. Em média, cada um dos usuários que trabalha nas oficinas recebe entre 150 e 450 reais por mês. As oficinas são geridas por uma organização não-governamental, a Associação Cornélia Vlieg, formada por funcionários do hospital, doentes que trabalham e seus familiares. A orientação terapêutica das oficinas fica a cargo da equipe do Cândido Ferreira. Cleusa Cayres, gerente da unidade de oficinas do hospital, onde trabalha desde 1990, explica que a prefeitura de Campinas criou um passe livre para pessoas portadoras de deficiências mentais e, dessa forma, elas podem tomar ônibus para ir trabalhar nas oficinas. Embora ainda haja muito preconceito, quem trabalha tem chance de conseguir um emprego fora do ambiente protegido do hospital - especialmente quando se trata de casos de dependentes químicos recuperados. Mora sozinho e diz que no Cândido teve espaço para se reintegrar à sociedade. Ativo militante do movimento antimanicomial, participou da implantação das oficinas existentes em Guarulhos, representa os usuários na Secretaria da Saúde de Campinas e colabora no Maluco Beleza. O lema do Cândido, explica ele, é "Trancar não é tratar. Liberdade é o melhor remédio". Homero Aparecido Gonçalves é um dos artistas do ateliê. Tem dificuldade para falar, mas faz questão de mostrar, orgulhoso, as telas de sua autoria penduradas na parede da oficina "costurando a imaginação", que também funciona no Centro de Convivência, onde são feitos trabalhos de bordado e outros artesanatos. É lá que Alexandre Machado também passa boa parte do tempo quando não está na Oficina de Comunicação, pois é um dos locutores do Maluco Beleza. Seu sonho é ser jornalista. Ele pretende cursar uma faculdade depois que concluir o supletivo de 2º grau. Em outro espaço vivem 25 pessoas mais idosas, que o superintendente Oki espera transferir para uma residência a ser construída no terreno do hospital. Para quem saiu da internação, é até prazeroso voltar àquele lugar e trabalhar nas oficinas ou visitar o Centro de Convivência. Não é uma beleza? |