2010 . Ano 7 . Edição 60 - 28/05/2010
Bruno Milanez
Em 20/04/2010, realizou-se o leilão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que o governo federal pretende construir no rio Xingu. O leilão atraiu a atenção da mídia devido aos diversos protestos suscitados e à "guerra de liminares" entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia Geral da União. Apesar da cobertura da imprensa, pouco foi dito sobre as questões legais dessa obra, algumas das quais são tratadas a seguir.
O Estatuto da Cidade regulamentou em 2001 a política de desenvolvimento urbano, cuja garantia do direito a cidades sustentáveis inclui a oferta adequada de transporte urbano. O Estatuto também obriga cidades acima de 500 mil habitantes a terem um plano de transporte urbano integrado.
Discutir os impactos socioambientais de Belo Monte está além do objetivo deste texto; todavia, algumas informações são necessárias. Para a construção da hidrelétrica, haverá o barramento do rio Xingu e o desvio de suas águas por canais até a casa de força. Como o barramento está à montante das Terras Indígenas Paquiçamba e Arara, estudos prevêem que, se a hidrelétrica for construída, haverá meses em que a vazão do rio que corta essas terras indígenas passará de 18,1 mil m3/s para 4 mil m3/s. Segundo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a mudança de vazão prevista poderá causar, entre outros impactos, o comprometimento do abastecimento de água e a perda de recursos para subsistência dos povos indígenas. Além disso, os estudos feitos pelos próprios empreendedores estimam que a obra aumentará a exposição dos índios a doenças como malária e leishmaniose, e promoverá sua desorganização social, política e cultural.
Dado esse contexto, o MPF se manifestou em duas das liminares (Ações Civis Públicas 410-72.2010.4.01.3903 e 411-57.2010.4.01.3903) levantando nove pontos, dos quais três são tratados aqui. O primeiro deles remete ao descumprimento da Constituição Federal (CF) no que diz respeito à questão indígena. A CF estabelece que "[as] terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo [...] dos rios [...] nelas existentes" e ainda que "[o] aproveitamento dos potenciais [da energia hidráulica] somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União [...] na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em [...] terras indígenas". Entretanto, como não houve a elaboração de lei que estabelecesse essas condições, segundo o MPF, atos ou ações que permitissem a construção de Belo Monte seriam nulos.
Um segundo problema diz respeito ao descumprimento da Resolução 237/1997 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), que define que a Licença Prévia deverá ser emitida "atestando a viabilidade ambiental" de um projeto. Porém, na Nota Técnica IBAMA 04/2010, emitida no mesmo dia do Parecer Técnico Conclusivo do próprio IBAMA, que fundamentou a Licença Prévia, os técnicos afirmam que "[a] equipe mantém o entendimento de que não há elementos suficientes para atestar a viabilidade ambiental do empreendimento até que sejam equacionadas as pendências apontadas nas conclusões do Parecer 6/2010". Da mesma forma, uma das condicionantes da Licença Prévia 342/2010 estabelece que o hidrograma proposto no EIA "deverá ser testado após a conclusão da instalação da plena capacidade de geração da casa de força principal". Com esta condicionante, o IBAMA indica que, apesar de a Licença Prévia ter sido concedida, não há garantias de que as previsões sejam confiáveis.
Uma terceira questão diz respeito às audiências públicas que debateram a implementação de Belo Monte. A Resolução CONAMA 09/1987 define que ao final de cada Audiência Pública "[a] ata da(s) audiência(s) pública(s) e seus anexos, servirão de base, juntamente com o RIMA, para a análise e parecer final do licenciador quanto à aprovação ou não do projeto". Todavia, o IBAMA, em seu Parecer Técnico nº 114/2009, ressalta que "tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas". Tal afirmativa indica que, apesar dos esforços de envolvimento dos movimentos sociais, o próprio IBAMA reconheceu que o ritmo de implementação do projeto comprometeu a incorporação de contribuições no processo de licenciamento.
Apesar desses e outros problemas legais listados nas Ações Civis Públicas, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região cassou as liminares concedidas pela Subseção Judiciária de Altamira que suspendiam o leilão de Belo Monte, permitindo que o leilão fosse realizado. Indo mais além, a Advocacia Geral da União anunciou que iria estudar a possibilidade de processar os autores de tais Ações Civis Públicas.
Apesar de o leilão já ter ocorrido, as irregularidades apontadas pelo MPF ainda não foram sanadas, e os desdobramentos de tais ações precisam ser acompanhados pela sociedade. O debate público sobre obras dessa importância não se faz sem diversidade de opiniões e interesses. Porém, ele também não pode ocorrer sem o devido respeito à legislação vigente, única forma para garantir e fortalecer a democracia e o Estado de direito no país.
Bruno Milanez, é técnico em planejamento e pesquisa da diretoria de estudos e políticas regionais, urbanas e ambientais (Dirur)
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