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Vacinas contra malária podem ser desenvolvidas mais rapidamente, demonstra experiência com a covid-19

A busca por imunizantes eficazes e viáveis contra a doença tropical transmitida pelo mosquito anofelino mostra-se hoje bem mais promissora, diz especialista da Fiocruz

Flavio Lobo

No início deste mês de outubro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou recomendação de ampla imunização de crianças na África Subsaariana com uma nova vacina contra malária. Na longa e dificultosa história de busca de vacinas contra essa doença tropical, é a primeira vez em que um imunizante é considerado suficientemente seguro, eficaz e viável para ser adotado em larga escala.

Nesta entrevista ao CTS, Cristiana Ferreira Alves de Brito, pesquisadora titular em saúde pública do Instituto René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), comenta essa promissora novidade.

Cristiana, que é doutora em bioquímica e imunologia, especialista em malária e atual secretária regional da SBPC em Minas Gerais, aponta desafios que terão de ser superados para que a vacina anunciada possa efetivamente salvar muitos milhares de vidas, e diz como alternativas mais eficazes poderão ter seu desenvolvimento acelerado com base na experiência do combate à covid-19.

Na história da busca por vacinas contra malária, qual tem sido o peso, por um lado, de fatores econômicos e políticos, e, por outro, de desafios propriamente científico-tecnológicos inerentes às especificidades da doença?

CRISTIANA FERREIRA ALVES DE BRITO - Não há dúvida de que fatores econômicos e políticos têm influência, e que, se a malária afetasse regiões mais ricas e politicamente poderosas no cenário internacional, haveria mais recursos para pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Os fatores biológicos são muito desafiadores também. Para se ter uma ideia, o coronavírus tem 12 proteínas que podem compor vacinas, já o plasmódio, o parasita que causa malária, tem 5 mil. Além disso, o ciclo biológico do plasmódio é muito mais complexo, ele passa por vários estágios de desenvolvimento dentro do corpo do hospedeiro e, em cada estágio, diferentes proteínas são produzidas. Uma vacina dirigida a um determinado estágio do desenvolvimento da malária não funciona nos outros estágios.

Hoje o número anual global de casos de malária é de cerca de 200 milhões, dos quais mais de 90% são registrados na África Subsaariana. As grandes empresas farmacêuticas, de modo geral, não têm interesse comercial em fazer os investimos necessários para tentar superar os desafios impostos pelo complexo processo biológico de uma doença que atinge populações e países pobres, que dificilmente poderiam recompensar os altos custos e riscos assumidos comprando vacinas caras. Circunstâncias especiais, como a infecção de militares estadunidenses que atuaram em guerras e conflitos em regiões afetadas pela malária, em alguns momentos aumentaram o interesse por parte de governos e organizações mais providos de recursos no sentido de fomentar o desenvolvimento de vacinas. Mas não há dúvida de que o fator comercial tem pesado bastante nessa longa história.

Que impacto deverá ter a vacina recentemente anunciada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a primeira a viabilizar campanhas massivas de imunização?

CFAB - Está longe de ser uma vacina ideal, mas é a melhor hoje disponível. Sua eficácia é relativamente baixa. Nos cenários mais pessimistas, ela produzirá uma proteção na faixa dos trinta e pouco por cento. Mas tendo em vista que, na África Subsaariana, cerca de 400 mil crianças morrem anualmente do tipo de malária que ela combate – forma especialmente letal da doença, causada pelo Plasmodium falciparum – a perspectiva de evitar pelo menos um terço dessas mortes justifica a adoção desse imunizante para ampla vacinação.

Na longa história de desenvolvimento dessa vacina, há a participação, muito importante, do casal de pesquisadores brasileiros Ruth e Victor Nussenzweig, que, várias décadas atrás, identificaram a proteína chamada circunsporozoíta, que reveste o plasmódio da malária numa fase de seu desenvolvimento dentro do corpo do hospedeiro na qual ele assume uma forma denominada esporozoíto. Essa vacina, chamada RTS,S, utiliza exatamente essa proteína como agente disparador de resposta imunológica.

O impacto da vacina ainda é difícil de estimar, em razão dos desafios, em termos de mobilização de recursos, organização e logística, para a imunização em larga escala conforme recomendado pelos desenvolvedores do imunizante. A recomendação é de aplicação de três doses e mais uma de reforço, quatro doses ao todo. Aplicar essas quatro doses respeitando limites de prazo, nas populações de grande parte do continente africano, em países e condições muito diferentes, nos quais a falta ou precariedade de serviços de saúde será um importante obstáculo a superar, está longe de ser tarefa trivial.

A vacinação-piloto vem sendo realizada desde 2019 em três países – Gana, Malawi e Quênia – com 20 milhões de doses doadas pela GlaxoSmithKline (GSK), laboratório que desenvolveu o imunizante. Mas, como ressalta um artigo muito interessante sobre os custos da imunização com essa vacina, sua ampliação nesses mesmos países e em toda a região afetada pela doença dependerá de consideráveis investimentos, a começar pela compra da vacina, cuja disponibilidade não está assegurada.

Há alternativas melhores no horizonte?

CFAB - Sim, a OMS divulgou expectativa de surgimento de uma vacina com eficácia acima de 75% até 2030.

Já existe outra vacina em fase avançada de desenvolvimento, a R21, que parece ter potencial de eficácia acima dos 70%, mas que ainda precisa ser testada em ensaio clínico amplo.

Hoje, graças à experiência com as vacinas contra covid-19, sabemos que existem plataformas eficientes e flexíveis para desenvolvimento relativamente rápido e seguro de novos imunizantes. Exemplos como o da plataforma da Oxford-AstraZeneca, que era utilizada para o desenvolvimento de vacinas contra o vírus influenza e foi rapidamente adaptada para o enfrentamento do coronavírus demonstram que, se houver vontade política e suporte econômico, esse tipo de iniciativa é viável – e pode servir também ao combate à malária e outras doenças negligenciadas.

É de se esperar que, diante dessas evidências, aumente a pressão para que recursos sabidamente disponíveis sejam mobilizados para o enfrentamento de problemas humanitários urgentes como a malária, possivelmente com a constituição de fundos internacionais de financiamento maiores que os atualmente existentes.

Qual é a situação da malária no Brasil? E quais as nossas perspectivas em relação a vacinação?

CFAB - Em 2020, no Brasil, foram registrados quase 150 mil casos de malária. Cerca de 90% dos casos são causados pelo Plasmodium vivax, menos letal que o P. falciparum. Como as proteínas circunsporozoítas desses dois tipos de plasmódio não são iguais, teríamos de testar se a vacina RTS,S produz “proteção cruzada”: se tem eficácia também contra o P. vivax. Como a eficácia desse imunizante contra o próprio P. falciparum já é baixa, não devemos ter grandes expectativas em relação à sua adoção no Brasil.

Mais promissora, para nós, é a possibilidade de utilização de plataformas. Existe a possibilidade de usar o mesmo sistema de produção da RTS,S ou – o que poderá ser mais viável, dada a maior eficácia – da R21 para fazer uma vacina com a proteína do P. vivax, e também de outros espécies de plasmódio presentes em diferentes regiões do planeta. Lembrando que, mesmo essas adaptações de plataformas podendo ser relativamente rápidas, os ensaios clínicos têm de ser feitos novamente para cada nova vacina.

Em conjunto, o desenvolvimento dessas duas novas vacinas, a RTS,S e a R21, e a experiência de rápida adaptação de plataformas para produzir vacinas contra covid-19 mudam bastante – para melhor – as perspectivas em relação à imunização contra malária.