Artigo

Plataformas digitais e atividade científica: três décadas de coevolução

A compreensão atualizada dos papéis e potenciais desses instrumentos tecnológicos é vital para a formulação e aperfeiçoamento de políticas de CT&I

Tulio Chiarini e Victo Silva*

Nos últimos anos tornou-se cada vez mais comum o uso de plataformas digitais para consumo sob demanda. Seja para entrega de um produto, um deslocamento urbano ou mesmo a contratação de um profissional freelancer, as plataformas se multiplicaram oferecendo conveniência e facilidade, mas também são objeto de muitas críticas. O que talvez poucos saibam é que esse fenômeno também está presente na esfera científica. Hoje, cientistas podem acessar uma plataforma para várias finalidades. A plataforma Prolific, por exemplo, conecta pesquisadores com indivíduos ao redor do mundo dispostos a responder questionários (sendo remunerados para isso).

Um observador casual poderia pensar que a ciência finalmente está seguindo as tendências de digitalização e plataformização. No entanto, nosso artigo recentemente publicado na Minerva – periódico acadêmico alemão com estudos sobre ciência e tecnologia desde a década de 1960 – demonstrou que foi justamente na esfera das atividades cientificas que as tecnologias digitais foram sendo experimentadas e deram as bases para as plataformas digitais, muito antes de se tornarem um modelo a ser seguido pelos empreendedores mundo afora.

O online já nasceu como instrumento da ciência

Os anos 1980 marcaram o início de um processo lento de fragmentação de infraestruturas acadêmicas de publicação/divulgação tradicionais. Esse processo foi duplo: por um lado, observou-se a obsolescência das estruturas convencionais (por exemplo, periódicos impressos); de outro, novas entidades online – repositórios, bibliotecas digitais, repositórios institucionais, plataformas de gerenciamento de conteúdo, protocolos abertos, agregação de metadados – começaram a surgir.

Esse movimento foi inicialmente impulsionado pela própria comunidade acadêmica a partir da criação da World Wide Web (www), dentro do Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (CERN), com o objetivo de facilitar a comunicação e a disseminação científicas. A World Wide Web reformulou drasticamente a forma como a produção científica era armazenada e compartilhada, permitindo que as comunidades de pesquisa criassem suas plataformas na web. Foi o caso do físico Paul Ginsparg, que desenvolveu um repositório acadêmico online, o ArXiv em 1991.

O ArXiv foi disruptivo e se tornou modelo para outras áreas do conhecimento. Em 1993, foi criado o NetEc – um site para melhorar a comunicação da pesquisa em Economia – que, em 1997, tornou-se o RePEc, um repositório descentralizado de artigos científicos na área. Outro exemplo foi a iniciativa e-biomed, que buscou formas de atualizar a divulgação de resultados em ciências da vida. Os resultados do e-biomed agora são PubMedCentral e PLoS, centros essenciais de ciência aberta. Outras iniciativas foram florescendo em todo o mundo, como o desenvolvimento da rede de dados geológicos e ambientais (Pangea) em 1993, na Alemanha. Além de repositórios e arquivos, a comunidade científica também desenvolveu as chamadas plataformas de ciência cidadã (citizen science platforms) para engajar cidadãos comuns em práticas científicas. A primeira foi a Zooniverse (antes conhecida por Galaxy Zoo), lançada em 2007.

Diversidade de atores e iniciativas

Além dos impulsos da própria comunidade acadêmica, governos também promoveram mudanças essenciais relacionadas a algumas etapas da produção científica com a criação de e-portfólios nacionais. O exemplo mais emblemático é a Plataforma Lattes, desenvolvida pelo governo brasileiro no final dos anos 1990, que, embora hoje sucateada, foi pioneira no mundo em padronizar os currículos dos pesquisadores e a disponibilizar IDs únicos (antes do ORCID). Essa padronização teve como objetivo construir um banco de dados, possibilitando encontrar especialistas e obter estatísticas sobre a distribuição da pesquisa científica em todo o país, facilitando, por exemplo, a gestão dos processos de concessão de bolsas e subsídios para a pesquisa.

Os governos nacionais ainda foram os responsáveis por implantar e financiar programas de desenvolvimento de plataformas de computação em grid (grid computing), nos anos 2000. Essas plataformas visavam compartilhar poder computacional, antecipando o uso de “ativos ociosos”, um pilar da economia de plataformas/economia do compartilhamento[1] que emergiu anos depois. Um exemplo emblemático é o Terascale Computing System, projeto lançado pela National Science Foundation (NSF) dos Estados Unidos, que contou com recursos que somaram 51 milhões de dólares à época. Foi sob contratos multimilionários dos governos que empresas como IBM, Sun e Microsoft desenvolveram e experimentaram tecnologias digitais e plataformas, adquirindo know how para transformar seus negócios. Com o amadurecimento da infraestrutura tomando o rumo da “servitização”, as encomendas tecnológicas de plataformas cientificas feitas pelo governo serviram como um espaço protegido e de baixo risco para que as grandes empresas de tecnologia desenvolvessem um modelo que, anos depois, teria sua lógica estendida e chamada “computação em nuvem” (cloud computing).

Na segunda década do século XXI, governos ainda apoiaram o desenvolvimento de “portais da ciência” (science gateways), que, de certa forma, são a contrapartida de software para o hardware criado na década anterior (a cyberinfraestrutura de grid computing). Em outras palavras, os science gateways são plataformas digitais que facilitam o uso de recursos complexos de pesquisa. Um exemplo é o GHub, que também contou com recursos do NSF, e hospeda um conjunto de dados e ferramentas para unificar observações e modelagens de mantos de gelo.

É preciso destacar a participação ativa do setor privado no amadurecimento de plataformas digitais cientificas. Inicialmente, o setor procurou “plataformizar” fluxos pré-existentes: periódicos, tradicionais plataformas de publicação e circulação do conhecimento científico, tornaram-se plataformas online. As editoras privadas se tornaram verdadeiros oligopólios controladores de uma ou várias destas plataformas digitais. Logo, o setor privado encontrou outras oportunidades: emulando o modelo de redes sociais como Facebook e Twitter, foram criadas redes sociais acadêmicas, como ResearchGate e Academia.edu.

Evolução e fases do fenômeno

Até aqui, a primeira contribuição do estudo publicado na Minerva relaciona-se ao panorama histórico apresentado, mostrando que (i) o desenvolvimento de plataformas digitais na ciência não é um fenômeno novo, mas um longo processo com fases que se sobrepõem e que (ii) a comunidade científica, governos e o setor privado participaram (ora em cooperação, ora em conflito) dessa transformação. A Figura abaixo sintetiza essa evolução: partindo dos anos 1990, ela registra o surgimento das pioneiras, como os Archives e os e-portfolios, e à medida que as décadas avançam, ocorre a justaposição de plataformas de uma nova geração, e.g. crowdwork.

Plataformização da Ciência 1 

Tipos de plataformas digitais na ciência

A segunda contribuição do artigo está na exposição dos diferentes tipos de plataformas digitais na atividade científica; em comum, todas caracterizam-se como sistemas de governança digital de espaços virtuais, capazes de alavancar efeitos de rede relacionados a uma (ou mais) fase(s) do processo de pesquisa científico.

A terceira contribuição relaciona-se à distribuição desigual de diferentes tipos de plataformas digitais ao longo das fases do processo cientifico. Em outras palavras, ao fragmentar o ciclo de pesquisa científica em seus macroprocessos, que vão desde a conceituação do objeto a ser investigado até a divulgação dos resultados da pesquisa (conforme apresentado na figura abaixo), distintos tipos de plataformas digitais são mais ou menos predominantes. 

Por exemplo, as plataformas digitais que estão relativamente mais dedicadas à fase de coleta de dados da pesquisa são as de crowdwork, as plataformas de ciência cidadã e os portais da ciência. Esses inclusive, são uma categoria de plataformas digitais que estão em quase todas as fases do ciclo de pesquisa científica, conforme apresentado a seguir.

Plataformização da Ciência 2

Ao esclarecer a proximidade entre as plataformas digitais e a ciência, o estudo publicado na Minerva permite reflexões, especialmente aos formuladores de política científica e tecnológica, dado o caráter público da ciência e o caráter pervasivo das plataformas: algumas das plataformas digitais na ciência se tornam novas ferramentas, úteis para determinadas fases do processo científico; outras se tornam tão essenciais que são consideradas verdadeiras infraestruturas. Quanto a estas últimas, é preciso refletir sobre a adequação de sua governança (pública, privada, mista) e do seu objetivo. 

Qual o efeito dessa “plataformização” sobre a ciência?

Longe de ser naturalmente positivo e invariavelmente benéfico para os cientistas e para a ciência, nosso estudo publicado na Minerva traz olhares críticos sobre a “plataformização” da ciência. A plataformização pode otimizar processos e abrir novas portas, mas pode, por outro lado, restringir acessos, criar barreiras artificiais ou mesmo acabar aumentando os custos de se fazer ciência (um cenário possível caso a fragmentação da infraestrutura se acentue mantendo um formato não interoperável, por exemplo).

Uma consequência geral do desenvolvimento de uma plataforma é centralização do fluxo de dados. Justamente pensando na manutenção e na autonomia dos dados, a União Europeia implementou o European Open Science Cloud (EOSC), para integrar a pesquisa continental de forma interoperável e acessível. Sua escala e escopo são tão abrangentes que o EOSC é chamado de “hiperinfraestrutura” conforme sugerido em estudo liderado por Koenraad de Smedt, da Universidade de Bergen na Noruega.

O Brasil possui uma extensa rede de infraestrutura científica, como apresentado em estudo publicado pelo Ipea. Abre-se, portanto, uma importante agenda de pesquisa sobre como esse parque infraestrutural vêm sofrendo o efeito da digitalização. Finalmente, cabe ressaltar que plataformas digitais desenvolvidas apenas como ferramentas auxiliares com o passar do tempo podem se tornar infraestruturas. Formuladores de política cientifica e tecnológica devem, portanto, acompanhar e avaliar continuamente a evolução do panorama da plataformização da ciência.

 

 * Tulio Chiarini é pesquisador do CTS/IPEA; Victo Silva é pesquisador da Radboud University.

[1]    A AirBnb, talvez a mais emblemática plataforma de compartilhamento, se fundamenta na otimização de ativos ociosos, no caso, de residências temporárias. Uma plataforma científica nacional que também se apoia no conceito de otimização de ativos ociosos é a SociaLab, criada na Universidade de São Paulo (USP): ela conecta laboratórios e universidade do país para o compartilhamento de reagentes e material de pesquisa.