Artigo

A Plataforma Lattes corre o risco de se tornar um tecnossauro?

Por falta de investimento e gestão estratégica, o Brasil corre o risco de perder um instrumento valioso para o desenvolvimento do setor de C&T

Tulio Chiarini e Victo Silva*

No início dos anos 2000, enquanto o lançamento da Plataforma Lattes marcava o sucesso de uma cooperação  governo–universidade–empresa  em aplicar domesticamente os mais avançados conhecimentos da então Web 1.0 para organizar a produção científica nacional, o escritor genovês Nicola Nosengo lançava seu livro L’estinzione dei tecnosauri. No manuscrito, o italiano discute como tecnologias com desempenho inferior se mantêm como padrão em determinado momento. A sobrevivência destes “tecnossauros” deriva do fato de que a difusão de tecnologias e seu estabelecimento como padrão refletem processos dinâmicos que se propagam ao longo do tempo. É comum sistemas, principalmente de tecnologias de informação e comunicação (TICs), que após se tornarem padrão, encastelarem-se devido ao alto custo de mudança para os usuários e/ou desenvolvedores. Perpetuam-se assim não porque são a melhor solução, mas porque aprisionam seus usuários.

Em mais de duas décadas de funcionamento, a Plataforma Lattes – formada pelo “Diretório de Instituições e Infraestruturas de Pesquisa” com 1.760 laboratórios cadastrados; “Diretório de Grupos de Pesquisa” com 37 mil grupos registrados; e, o “Currículo Lattes”, com 6 milhões de cadastros – se tornou a plataforma por excelência da comunidade científica brasileira. Graças à Plataforma Lattes, o Brasil é um dos únicos países do mundo que possui acesso a dados estruturados para talentos e capacidades/competências científicas.

A criticidade da plataforma se tornou patente a partir do “apagão de dados” que ocorreu recentemente, como noticiado pela comunidade científica ao manifestar “consternação e preocupação com a evidente fragilidade da infraestrutura do CNPq” e também pela mídia tradicional, que apontou o efeito sobre a ciência brasileira.  Essa não foi a primeira vez que a Plataforma apresentou fragilidades. Em 2016, por exemplo, foram detectadas falhas no seu sistema de busca e, em 2020, o sistema ficou indisponível.

Como lembra Nosengo, “é justamente quando um sistema entra em crise que se abre uma brecha para entendê-lo (...) [e] basta que apenas uma coisa dê errado para que uma tecnologia potencialmente revolucionária se torne um tecnossauro”. É essa brecha que a queima da placa de um dos servidores do CNPq abriu, exigindo uma reflexão que deve ir além do “apagão de dados”. É preciso considerar a evolução dos recursos para manutenção e modernização da Plataforma à luz dos avanços tecnológicos de fronteira relacionado à “plataformização” da ciência.

Sustentabilidade orçamentária?

A principal fonte de recursos da Plataforma Lattes provém da Lei Orçamentária Anual (LOA). O orçamento alocado para cada programa é uma boa aproximação da importância relativa a ele atribuída pelo governo.

Para o desenvolvimento do sistema foi estimado um volume de recursos de R$ 15 milhões para o biênio 2000–/2001. Os valores orçamentários alocados para a Plataforma Lattes apresentam trajetória decrescente, estando abaixo de R$ 1 milhão desde 2017 (Fig. 1).

Figura 1 Plataforma Lattes estimativa orçamentária

No Plano Diretor de Tecnologia da Informação do CNPq, embora a ampliação do uso da Plataforma Lattes por outros países tenha sido identificada como uma oportunidade de geração de receita, não há nenhuma ação concreta de como fazê-lo. Não obstante a cadeia de valor institucional apresente a Plataforma como um “serviço primário” de fomento à CT&I, no Plano Estratégico do CNPq, em vigor até 2025, ela é apenas mencionada uma única vez, na síntese histórica do documento.

É verdade que o sucesso da Plataforma Lattes permitiu o seu licenciamento – embora não houvesse uma propriedade intelectual que protegesse o artefato – para diversos países como Argentina, Peru, Equador, Uruguai e Portugal. Porém, isso ocorreu em meados dos anos 2000 em um contexto específico da Rede Internacional de Fontes de Informação e Conhecimento para a Gestão da Ciência, Tecnologia e Inovação (ScienTI).

Acesso as atas[1] das reuniões da Comissão de Gestão do Lattes (conselho criado pelo CNPq em 2005 para propor correções na Plataforma e seus aprimoramentos) registram intenções do CNPq de estudar formas de cooperação com o objetivo de tornar a Plataforma sustentável ao longo do tempo, considerando a oferta de serviços pagos.

Inovação aberta como estratégia?

O modelo de negócios em que a Plataforma Lattes se insere relaciona-se às atividades de gestão de bases de dados de CT&I. No entanto, embora não explicitado, é possível afirmar que, seja pela constante queda orçamentária, seja por alguma estratégia de inovação aberta, a instituição espera se beneficiar da disponibilidade de dados públicos (dados abertos) para que interessados possam desenvolver novos serviços/produtos voluntariamente ou por meio de estímulos econômicos.

Como mostram as atas das reuniões da Comissão de Gestão do Lattes, foi esta a intenção do  EXPOLattes (realizado em 2018). O ganhador do tema “produção de informações estruturadas por meio de rotinas dinâmicas para subsidiar processos de tomada de decisão” foi uma start-up da Universidade Federal de Pelotas que desenvolveu o Cientum, sistema de gestão de pesquisadores, com análises gráficas de forma qualitativa e quantitativa (BR 51 2017 001508 2). A mesma start-up apresentou outra tecnologia na categoria “integração com sistemas institucionais” chamada Ranquium.

Outros inventores têm desenvolvido autonomamente soluções tecnológicas a partir dos dados da Plataforma Lattes para gerar mecanismos imediatos de análises, com relatórios automáticos de produção técnica e bibliográfica, por exemplo[2]. Há também desenvolvimento de software open-sources como ScriptLattes e o e-Lattes.

O efeito do aprisionamento tecnológico

O conceito de lock-in se aplica especialmente no contexto de tecnologias que geram efeitos positivos de rede. As TICs, por exemplo, são mais valiosas quanto mais pessoas as utilizam. Esta externalidade pressiona o sistema na direção da padronização entre diversas tecnologias competidoras. Outro elemento que reforça o lock-in são custos de mudança: no caso emblemático do teclado QWERTY, digitadores precisavam investir em treinamentos de datilografia alternativos se buscassem mudar para máquinas com outros designs.

O conceito de lock-in não pode ser traduzido diretamente para o caso da Plataforma Lattes, dado seu caráter público. Ela não concorreu diretamente com outras tecnologias para se estabelecer. Foi definida pelo CNPq como o padrão e aos poucos aceita pelos dois principais grupos que utilizam a plataforma: pesquisadores e instituições científicas e tecnológicas (ICTs). No entanto, a analogia é válida para pensar sobre a brecha aberta e o futuro da Plataforma.

A Plataforma Lattes é um sistema digital composto pelo seu controlador (o CNPq) e dois grupos de usuários, que usufruem de efeitos de rede. De forma direta, quanto mais pesquisadores possuem um Currículo Lattes, mais ele se estabelece como o padrão de fato do portfólio científico nacional, aumentando o valor para o pesquisador que o possui. De forma indireta, para as ICTs, quanto mais pesquisadores cadastrados, mais faz sentido utilizá-lo como fonte de informação para processos dos mais diversos, da formação de banco de talentos à concessão de bolsas e financiamento. Também de forma indireta, quanto mais ICTs utilizam a Plataforma, maior o valor para o pesquisador que o possui.

Já o custo de mudança está relacionado ao potencial de “multihoming”, ou seja, o desenvolvimento ou o consumo de produtos/serviços em mais de uma plataforma. Desenvolvedores de aplicativos podem não estar satisfeitos com o sistema operacional iOS, mas é possível que o custo de desenvolver para Android seja proibitivo. Assim, o desenvolvedor estaria num clássico lock-in. No caso da Plataforma Lattes, não existe hoje nenhuma plataforma que seja uma substituta perfeita dos seus serviços. Assim, o multihoming não é possível não em função do custo, mas pela inexistência de alternativas razoáveis.

No entanto, os dois elementos que garantem o lock-in à Plataforma Lattes estão em processo de transformação. A plataformização da ciência avança com o estabelecimento de novas plataformas digitais dedicadas a distintas fases da atividade científica. Academia.edu possui hoje 163 milhões de usuários; ResearchGate, 20 milhões. A ORCID (Open Researcher and Contributor ID), com mais de 12 milhões de usuários, não apenas se estabeleceu como padrão de identidade única de pesquisadores como passa a lhes solicitar informações sobre seus currículos, formação e produção científica. O GoogleScholar, além de prover uma vitrine simples para as publicações acadêmicas, também criou seu indicador de impacto. Ou seja, parece razoável assumir que num futuro muito próximo a possibilidade de multihoming será real e usuários da Plataforma Lattes poderão migrar para estas novas intermediárias.

Uma vez iniciado um eventual processo de migração, entram em cena efeitos de rede negativos. Supondo que um grande volume de pesquisadores passasse a adotar outra plataforma, ou que ICTs com peso no sistema nacional de C&T (Fapesp?) se voltassem para outras soluções, pôr-se-ia em marcha uma dinâmica de efeitos de rede negativos. Menos ICTs solicitando o Currículo Lattes desincentivariam o pesquisador a possuir/atualizar seu cadastro. A espiral negativa poderia, em teoria, ocorrer em velocidade acelerada. O ecossistema de usuários construído ao longo de duas décadas poderia se perder, especialmente com “janelas de oportunidade” para o multihoming, como foi o caso do apagão recente.

Vale ressaltar que, no caso de uma substituição do padrão Lattes por outro qualquer, todos os grupos podem sair perdendo. A troca por uma plataforma intermediária privada poderia levar a resultados não desejados para a comunidade científica nacional, que poderia ter que se sujeitar a extração de dados, pagamento de subscrição ou exposição à publicidade. As cobranças em qualquer base também podem afetar as ICTs. Ao deixar de ser o ponto de passagem do fluxo de dados, o CNPq perderia o acesso a um banco de talentos e a um banco de dados sobre as capacidades e competências científicas nacionais. Estes são dois dos mais importantes grupos de dados para a geração de políticas científicas e tecnológicas baseadas em evidências.

Três cenários possíveis

Embora devamos celebrar a Plataforma Lattes como um patrimônio brasileiro que, inclusive foi louvado como “um importante exemplo de uma boa prática” pela Nature a combinação de orçamentos para manutenção e modernização cada vez menores e a entrada de novos atores na corrida tecnológica  que passaram a decolar no cenário mundial, coloca a Plataforma em um momento delicado. O “apagão dos dados” apenas mostrou a brecha.

Embora no Relatório de Gestão do CNPq, tenha sido afirmado que a Plataforma Lattes tenha se tornado “estratégica também para a formulação das políticas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e de outros órgãos governamentais da área de ciência, tecnologia e inovação”, para o governo federal, em sua Estratégia Nacional de Inovação para o período 2021/2024, não há menção à modernização da Plataforma Lattes em nenhum Plano de Ação, aliás há apenas menção ao “desenvolvimento de um novo sistema que substituirá a Plataforma Carlos Chagas” cujo orçamento alocado para 2021/2022 foi R$ 485 mil (sic!).

Ademais, embora a estratégia de dados abertos possa trazer benefícios de transparência e geração de valor econômico, é preciso ser criterioso quanto à delegação de responsabilidades pela geração de valor exclusivamente ao setor privado. Criar ferramentas para analisar os dados da Plataforma Lattes (analytics) dentro do CNPq é de suma importância para a geração de políticas científicas e tecnológicas baseadas em evidência. Para que isso seja viável, é preciso ocorrer o fortalecimento da Plataforma Lattes e sua consolidação como ponto intermediário de fluxo dos dados científicos nacionais.

Dado o exposto, é possível vislumbrar três possíveis cenários.

Num primeiro, sem investimento adequado para modernização e inclusão de novas funcionalidades, usuários passariam a superar o lock-in quando novas plataformas começassem a oferecer serviços superiores à Plataforma Lattes. Pouco a pouco, a Plataforma perderia relevância e definharia.

Em outro cenário de investimento inadequado, o CNPq conseguiria manter a obrigatoriedade do uso da Plataforma Lattes. Dado o previsível baixo custo para os usuários de utilizar mais de uma plataforma, se instauraria o multihoming: assim usuários seguiriam na Plataforma Lattes somente pela obrigação e adotariam outras plataformas pelo valor/conveniência. Neste cenário, a Plataforma Lattes tornar-se-ia uma tecnologia “morto-viva”, um “tecnossauro”.

Finalmente, em um terceiro cenário, com uma realidade orçamentária e investimentos adequados às necessidades do sistema, a Plataforma Lattes seria modernizada e passaria a atrair todos os grupos do seu ecossistema pelo valor que entrega.

Dada a centralidade da plataforma para o sistema de C&T brasileiro, o terceiro cenário é de longe o desejável, mas sua realização dependerá do MCTI e do CNPq adentrarem a era digital investindo recursos à altura.

 

 * Tulio Chiarini é pesquisador do IPEA; Victo Silva é pesquisador do DPCT/Unicamp.
 

[1] Obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação, Protocolo n. 01217.001918/2021-36.

[2] Ver, por exemplo, os registros BR 51 5051 001146 5 e BR 51 2021 001145 7 no INPI.