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Solução simples para um problema complexo?

Fabiano Barreto e João Emilio Gonçalves

Dando sequência ao debate promovido no webinar “Patentes de vacinas para Covid-19: licenciamento compulsório é a solução?”, o Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Ipea convidou especialistas para debaterem a questão sob diferentes perspectivas. Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras (MSF), apresenta argumentos favoráveis ao licenciamento compulsório de patentes da vacina contra a Covid-19, enquanto Fabiano Barreto e João Emilio Gonçalves, respectivamente superintendente de desenvolvimento e coordenador de propriedade intelectual da Confederação Nacional da Indústria (CNI), apresentam argumentos contrários. Os textos foram publicados simultaneamente e refletem exclusivamente a opinião dos autores sobre esse tema controverso. ​

 

Solução simples para um problema complexo?

Fabiano Barreto e João Emilio Gonçalves

A fim de enfrentar o problema da escassez global de vacinas contra a Covid-19, diversas propostas legislativas estão em debate. Entre elas, o licenciamento compulsório de patentes, frequentemente chamado de quebra de patentes. A proposta parte da premissa de que as patentes seriam responsáveis por criar uma escassez artificial das vacinas e, portanto, sem as patentes, poderíamos produzir e distribuir mais doses.

Partindo de uma premissa errada, a proposta simplifica uma questão complexa e ignora os desafios de produção industrial em escala global. A proposta de licenciamento compulsório das patentes é ineficaz e não contribuirá para aumentar o acesso ou a produção de vacinas no Brasil.

Propriedade industrial

As patentes oferecem um direito temporário de exclusividade para que o titular tente recuperar os investimentos feitos no desenvolvimento tecnológico. O direito temporário de exclusividade não é uma garantia do retorno financeiro, pois é possível que um produto patenteado seja um fracasso comercial.

Por outro lado, sem as patentes, dificilmente uma inovação industrial seria economicamente sustentável. As invenções poderiam ser livremente copiadas e ofertadas por concorrentes que não investem recursos em pesquisa e desenvolvimento, não contratam pesquisadores e, sobretudo, não correm riscos. Sem a possibilidade de tentar recuperar o investimento, não haveria incentivo para o desenvolvimento de novos produtos.

Nesse cenário, quem perde é a sociedade, sem acesso a novas tecnologias, mais seguras e mais produtivas. Significa dizer que os benefícios da exclusividade temporária conferida pela propriedade intelectual são coletivos, não apenas privados. No Brasil, este caráter coletivo é ainda maior, pois os maiores titulares de patentes no país são as universidades públicas[1], com pesquisas financiadas pelo Estado.

De acordo com a lei brasileira, o pedido de patente tem de se referir a uma única invenção ou a um grupo de invenções inter-relacionadas, de maneira a compreenderem uma única concepção inventiva. Trata-se do conceito de unidade inventiva previsto na Convenção da União de Paris de 1883, o primeiro tratado internacional sobre propriedade industrial.

O desenvolvimento de produtos complexos envolve uma grande quantidade de desafios tecnológicos. Num carro, por exemplo, há questões relacionadas ao aumento do desempenho e eficiência do motor, à frenagem e ao travamento das portas, entre outros. Para cada uma dessas questões é possível ter uma solução tecnológica específica, uma patente específica. Ou seja, não existe a patente do carro, existem patentes para tecnologias específicas do carro.

É o caso das vacinas contra a Covid-19, que combinam diferentes plataformas tecnológicas. O produto final pode ser composto por diversas soluções, inclusive por técnicas já conhecidas, sem patentes, relacionadas a desafios tecnológicos específicos. Há exemplos de vacinas que combinam tecnologias desenvolvidas em 2011, 2013 e 2020, por agentes privados[2] e públicos[3]. Portanto, não há a patente da vacina X ou Y. O que pode haver são patentes para tecnologias que são utilizadas na vacina X ou Y.

As patentes são limitadas territorialmente, nacionalmente. Não existe uma patente global, válida em todos os países do mundo. Uma patente válida no país A que não foi solicitada no país B, pode ser livremente explorada em B.

Assim, o ponto de partida de qualquer debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas tem que ser, obrigatoriamente, a identificação das tecnologias necessárias para a produção que estão protegidas por patentes. Hoje, no Brasil, existem patentes protegidas relacionadas à produção das vacinas contra a Covid-19?

Sem a correta compreensão desses aspectos técnicos relativos ao funcionamento do sistema de patentes, no Brasil e no mundo, não é possível avançar nesse debate.

Capacidade industrial

Em todo o mundo, em diferentes momentos da pandemia, houve escassez de produtos de equipamentos de proteção individual para trabalhadores da saúde, como protetor facial, máscaras cirúrgicas, óculos de proteção, aventais e álcool em gel. São produtos básicos, cuja escassez foi causada pelo aumento súbito e generalizado da demanda, compra de pânico, acumulo e uso indevido[4], portanto, sem relação com a propriedade intelectual. 

No caso das vacinas, vencida a etapa de desenvolvimento, testes e registros, a escassez se dá pela dificuldade de produzir, em um curto espaço de tempo, o número de doses necessário para atingir a população global. São questões relacionadas à importação e produção de insumos, envase, logística internacional, etc.

Estima-se que uma fábrica típica de vacinas precise de 9.000 diferentes matérias-primas de 300 fornecedores em 30 países[5].

Se as vacinas dependem de uma cadeia de produção complexa, dispersa em diferentes países, o menor dos problemas em sua confecção e produção são as patentes ou mesmo a propriedade intelectual[6]. Assim, o segundo ponto a ser analisado no debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas é a identificação dos reais obstáculos para produção das doses.

As indústrias locais não estão conseguindo obter licenças das patentes necessárias para a produção? Sem as patentes, as indústrias locais teriam condições de atingir capacidade produtiva, incluindo acesso a insumos, em prazos compatíveis com a emergência da pandemia da COVID-19?

Propostas internacionais

A tentativa de resolver nacionalmente os problemas globais relacionados à pandemia não é exclusividade do Brasil. Diversos países vêm adotando medidas unilaterais[7], como a restrição de exportação de medicamentos e insumos. No âmbito multilateral, a proposta de quebra de patentes também foi apresentada.

Em outubro de 2020, Índia e África do Sul apresentaram uma proposta à Organização Mundial do Comércio (OMC) para suspender temporariamente obrigações internacionais relacionadas à propriedade intelectual, incluindo a suspensão de direitos sobre patentes, desenhos industriais e segredos industriais.

Até maio de 2021, a proposta ainda não atingiu o consenso necessário para ser implementada. Há países que não estão convencidos sobre a eficácia da suspensão de direitos de propriedade intelectual. Para esse grupo, a medida pode ser contraproducente e prejudicar os esforços de colaboração em andamento[8]. Há dúvidas sobre a existência de casos concretos que tenham relação com a propriedade intelectual[9]

O governo brasileiro apoia uma terceira via, focada em cooperação internacional para aumento da capacidade de produção e distribuição de vacinas[10]. A proposta brasileira é copatrocinada por Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia.

Mudanças na lei

E se a escassez das vacinas fosse relacionada com a propriedade intelectual? O Brasil precisaria de novas leis ou mudanças em tratados internacionais para enfrentar a situação? A resposta é não.

A legislação brasileira já prevê o licenciamento compulsório de patentes. Foi com base nessa lei que, em 2007, o Brasil concedeu licenciamento compulsório de patentes referentes ao Efavirenz (anti-retroviral utilizado no tratamento da Aids), para fins de uso público não-comercial[11].

Assim, outro ponto a ser analisado no debate sobre a relação entre patentes e acesso a vacinas é a real necessidade de mudanças na lei. Por que a legislação em vigor não seria suficiente?

A previsão legal do licenciamento compulsório, existente na nossa legislação, está em linha com as obrigações internacionais do Brasil. Ao manifestar o apoio à terceira via, o governo brasileiro lembrou que todos os países-membros da OMC estão habilitados pelo Acordo TRIPS a decretar o licenciamento compulsório de patentes como forma de atender a imperativos de ordem pública.

Até o momento, não há registro de que algum dos membros da OMC tenha concedido licenças compulsórias em seus países como meio de enfrentamento da escassez de vacinas. A própria Índia, autora da proposta na OMC e país com maior capacidade de produção de vacinas[12], não adotou a medida. Com sua capacidade produtiva no limite, a Índia conta com a ajuda internacional para atender sua própria demanda[13].

Conclusão

A escassez de vacinas não tem relação com a propriedade intelectual. Até o momento, não há detalhes sobre como seria a implementação de um licenciamento compulsório. Quais são as patentes? Estão protegidas no Brasil?

A escassez de vacinas está relacionada a questões industriais globais, como importação e produção de insumos, envase, logística internacional, etc. Também não se sabe como e quem produziria as vacinas no caso de um licenciamento compulsório.

Os laboratórios públicos, Butantan e Fiocruz, durante audiência pública na Câmara dos Deputados, já apontaram a ineficácia e inconveniência da proposta[14]. Os laboratórios privados nacionais e internacionais declararam que não existe relação entre a escassez de vacinas e as patentes[15].

A legislação brasileira permite e já foi utilizada para a concessão de licenças compulsórias de patentes. Nesse momento, a maior contribuição legislativa para fomentar o acesso dos brasileiros às vacinas passa por medidas que estimulem a cooperação internacional e a transferência de tecnologias, não por medidas que promovam o isolamento

 

[1] Instituto Nacional da Propriedade Industrial, 2019. Ranking dos depositantes residentes. Disponível em <https://www.gov.br/inpi/pt-br/acesso-a-informacao/pasta-x/estatisticas-preliminares/arquivos/documentos/ranking-maiores-depositantes-residentes-2019.pdf>

[2] Public Citizen, 2020. BioNTech and Pfizer’s BNT162 Vaccine Patent Landscape. Disponível em < https://www.citizen.org/article/biontech-and-pfizers-bnt162-vaccine-patent-landscape/#_ftn5>

[3] Public Citizen, 2020. Leading COVID-19 Vaccine Candidates Depend on NIH Technology. Disponível em <https://www.citizen.org/article/leading-covid-19-vaccines-depend-on-nih-technology/>

[4] World Economic Forum, 2020. Panic buying of face masks and other supplies puts healthcare workers at risk, says WHO. Disponível em <https://www.weforum.org/agenda/2020/03/stop-buying-facemasks-and-other-medical-supplies-urges-who-officials/>

[5] World Trade Organization, 2020. Developing and delivering covid-19 vaccines around the world. Disponível em <https://www.wto.org/english/tratop_e/covid19_e/vaccine_report_e.pdf>

[6] Bolle, Monica de, 2021. Não há autarquia nas vacinas. Disponível em <https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/nao-ha-autarquia-nas-vacinas-1-24961845>

[7] World Trade Organization, 2021. Covid-19: Measures affecting trade in goods. Disponível em  <https://www.wto.org/english/tratop_e/covid19_e/trade_related_goods_measure_e.htm>

[8] World Trade Organization, 2021. TRIPS Council to continue to discuss temporary IP waiver, revised proposal expected in May. Disponível em <https://www.wto.org/english/news_e/news21_e/trip_30apr21_e.htm>

[9] World Trade Organization, Council for Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, 2020. Communication from Australia, Canada, Chile and Mexico: questions on intellectual-property challenges experienced by members in relation to covid-19. Disponível em <https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W671.pdf&Open=True>

[10] Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Economia, Ministério da Saúde e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, 2021. Nota à imprensa nº 37: Brasil copatrocina iniciativa na OMC para ampliar a produção e a distribuição de vacinas. Disponível em <https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/nota-a-imprensa-conjunta-do-ministerio-das-relacoes-exteriores-ministerio-da-economia-ministerio-da-saude-e-ministerio-da-ciencia-tecnologia-e-inovacoes-sobre-vacinas-e-patentes>

[11] Brasil, 2007. Decreto nº 6.108, de 4 de maio de 2007. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6108.htm#textoimpressao>

[12] BBC News, 2021. Covid: How this Indian firm is vaccinating the world. Disponível em <https://www.bbc.com/news/business-56218058>

[13] Reuters, 2021. India expects biggest share of U.S. doses of AstraZeneca vaccine -govt sources. Disponível em <https://www.reuters.com/world/india/india-expects-biggest-share-us-doses-astrazeneca-vaccine-govt-sources-2021-04-27/>

[14] Folha de São Paulo, 2021. Fabricantes de vacina contra Covid dizem que quebra de patente não resolveria o problema do Brasil. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/fabricantes-de-vacina-contra-covid-dizem-que-quebra-de-patente-nao-resolveria-o-problema-do-brasil.shtml>

[15]Folha de São Paulo, 2021. Oportunistas usam Covid para quebrar patentes, dizem farmacêuticas. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/oportunistas-usam-covid-para-quebrar-patentes-dizem-farmaceuticas.shtml>